O disco fecha com A Casa da Mariquinhas, aquela casa que "em vez de ter um piano tem na sala uma guitarra". E isso tem graça porque aqui não há guitarras. Nem uma para amostra. Só há voz e piano. E muito fado..Camané e Laginha ouviram-se antes de se conhecerem e quando se juntaram pela primeira vez em palco, algures em 1998, perceberam imediatamente que esse seria só o primeiro de muitos encontros. "Conhecer, conhecer, acho que foi há 20 e tal anos, mas já nos cruzávamos por aí", recorda o pianista Mário Laginha. O fadista Camané corrobora: "A partir daí, pontualmente, fomo-nos encontrando e de vez em quando o Mário fazia uma orquestração para mim." Em 2008, Camané juntou a sua voz aos pianos de Laginha e Bernardo Sassetti no projeto Vadios e em 2013 Laginha compôs Ai Margarida, um dos temas inéditos do álbum de Camané. Ultimamente, juntavam-se em concerto duas ou três vezes por ano, "mas eram coisas isoladas"..Até que no ano passado Camané teve esta ideia: E se fizéssemos uma série de concertos? Não apenas um, mas escolher um repertório, ensaiar bastante e fazer uma série de apresentações. "A grande diferença é que tivemos mais tempo. Decidimos fazer uma coisa com mais tempo e mais profundidade. Ao princípio até nem havia uma ideia de fazer um disco, foi a continuidade dos concertos e ver a coisa a crescer que nos fez ter vontade de registar", conta o pianista.."Uma coisa era nós pontualmente fazermos um concerto, e era mais uma gracinha, mas neste caso tivemos de construir uma forma de estarmos juntos a tocar, tinha de ser com muito rigor, para fazer o melhor possível. Foi preciso muito trabalho", conta Camané. "O melhor quando se trabalha com outra pessoa é o modo como as músicas vão evoluindo, às vezes é quase inconsciente, porque nos vamos conhecendo melhor e instintivamente vamo-nos aproximando", explica Laginha..O primeiro concerto aconteceu em fevereiro. O disco chega no próximo dia 15. No dia 20 de dezembro, Camané e Mário Laginha tocam no Coliseu de Lisboa. "Se nós tivéssemos partido logo para um disco as coisas não funcionavam tão bem. Quando decidimos fazer o disco já havia essa ligação. O que nós fizemos foi gravar takes e escolher os que estavam melhor", diz Camané. "O mais difícil foi fazer os concertos, o disco já foi fácil", acrescenta Laginha. "Ao termos tocado tantas vezes juntos as coisas foram-se aprimorando e aprofundando, isso fez muita diferença.".O disco chama-se Aqui Está-se Sossegado, o que até parece uma provocação porque se há coisa que os músicos Camané e Mário Laginha não conseguem é estar sossegados, eles estão sempre envolvidos em vários projetos ao mesmo tempo. Mas depois começamos a ouvir o fado Não Venhas Tarde e o Com Que Voz e o Se Amanhã Fosse Domingo e continuamos por ali afora e o título começa a fazer sentido à medida que a voz de Camané e o piano de Laginha se vão entranhando um no outro, numa espécie de aconchego, como se não houvesse outra maneira de tocar e cantar estes fados..Com que voz se canta Amália?.Camané nunca tinha gravado um fado de Amália num disco seu. "Sempre tive o cuidado de não o fazer. As pessoas têm de fazer o seu caminho e gravar o seu repertório", explica, recordando que Amália Rodrigues teve um papel determinante na sua carreira, muito para além do facto de ser uma grande fadista e, inevitavelmente, uma referência para ele. "Foi ela que fez que eu gravasse o meu primeiro disco. Telefonou para o David Ferreira numa noite de Natal, a falar-lhe de mim e pouco depois do Ano Novo ele pediu-me para eu ir à EMI", conta. Nessa altura, Camané participava no espetáculo Maldita Cocaína e acabou por gravar Uma Noite de Fados (1995). Quem sabe como teria sido a sua carreira sem esse telefonema?."Houve uma vez que fui cantar a uma homenagem à Amália e tive de cantar cinco temas com a Amália sentada mesmo à minha frente", lembra Camané. "Eu era muito novo, muito tímido - sempre fui muito tímido mas consegui ultrapassar isso, não totalmente mas no palco tive de aprender a ultrapassar, esquecer-me de mim, das minhas paranoias, dos meus medos e pôr-me dentro daquilo que estava a fazer, ter essa humildade, não pensar em mim, isso foi difícil, foi um processo - mas nessa altura ainda não tinha isso, estava a cantar e acho que estava com a voz embargada.".Mas, desta vez, Camané atreveu-se. "Este ano faz 20 anos que Amália morreu e esta foi uma forma de a homenagear", explica. Neste disco, ele recupera Abandono, que já tinha gravado em 2015 no álbum de homenagem Amália - As Vozes do Fado. E grava pela primeira vez um dos temas mais conhecidos da fadista: Com Que Voz. E que foi escolhido como primeiro tema de apresentação do álbum:.Além destes, há mais um tema inédito de Oulman e ainda quatro originais de Mário Laginha: dois deles instrumentais e dois com poemas, de João Monge e Maria do Rosário Pedreira. Depois há temas de outros fadistas (por exemplo, de Marceneiro) e outros do próprio Camané. "A primeira escolha foi feita para o concerto e fomos escolhendo naturalmente o que achámos que fazia sentido. Para o disco tivemos de cortar alguns temas", conta o fadista. "Há temas que eu nunca tinha cantado como o Não Venhas Tarde, que surgiu como uma brincadeira: reparámos que muitas pessoas chegam atrasadas aos concertos, a meio do primeiro tema, então decidimos cantar o Não Venhas Tarde, que é a canção que abre os concertos mas que também é mais do que isso, é um tema lindíssimo com uma música fantástica.".Um encontro não é uma fusão."Eu não gostava nada de fado", diz o pianista Mário Laginha a meio da conversa. "No fim da adolescência, quando eu mergulhei no jazz, apaixonado, a estudar muito, achava que o fado era uma chatice, sempre a mesma coisa. Típico de quem não conhece. Tinha ouvido muito pouco. E lembro-me perfeitamente que foi a ouvir o Camané a cantar, na rádio, que eu pensei: isto está a soar-me bem. Ele canta tão bem que isso me fez querer ouvir mais. Fui ouvir os clássicos e não só e percebi que, afinal, há muito fado de que gosto.".Nos últimos anos, Laginha atreveu-se a tocar alguns fados sempre respondendo a desafios de Camané. Se para o fadista isso de interpretar temas que já foram cantados por outros é algo banal, para Laginha tocar ao piano as músicas que conhecemos tão bem geralmente com guitarras não podia deixar de ser um enorme desafio. "Uma pessoa tem de não ter medo", declara. "Não ter medo de experimentar é essencial para uma pessoa se lançar nisto. Tem um lado de aventura, é muito fascinante, é um desafio. Uma das coisas que aconteceu é que eu, para aprender a tocar melhor fado, ouvi muito, e ouvia músicos que tocam muito bem, mas depois a uma determinada altura eu tenho de começar a tocar e tenho de perceber que eu não vou substituir nada nem imitar nada, vou fazer outra coisa. E isso pacificou-me um bocado. Eu vou fazer uma coisa diferente. E é preciso descontrair.".Esta ideia de tocar fado com piano nem sequer é assim tão inovadora, fazem questão de dizer, lembrando que no início o fado começou por ser acompanhado ao piano. E Alain Oulman, também é bom recordá-lo, compôs grandes fados ao piano. O mais importante, explica Camané, que tanto canta acompanhado por duas guitarras como por grandes orquestras, é perceber o que é que funciona e encontrar essa ligação entre a voz e o instrumento, entre o cantor e o músico: "Esse foi o maior desafio. Nós encontrámos essa ligação.".A ideia não foi "trazer o jazz para o fado", dizem, unânimes. Nada disso. "Tanto eu como o Mário não gostamos muito de fusão. Achamos que as músicas têm um ambiente e têm um tempo. A ideia era fazer um disco de fado", explica Camané. Laginha conclui: "A ideia foi eu entrar no fado, ouvir, perceber e tentar respeitar um universo, entrando nele com coisas minhas, que podem vir da minha experiência porque as coisas não são absolutamente estanques e há uma porosidade, felizmente, nas fronteiras dos vários estilos.".Este é o alinhamento:.1. Não Venhas Tarde (Aníbal Nazaré/João Nobre) Criado por Carlos Ramos em 19582. Com Que Voz (Luís Vaz de Camões/Alain Oulman) Criado por Amália Rodrigues em 19703. Quadras (Fado Alfacinha) (Fernando Pessoa/Jaime Santos) Gravado por Camané em 2000 no álbum Esta Coisa da Alma4.Se Amanhã Fosse Domingo (João Monge/Mário Laginha) Inédito5.Rua da Fé (Mário Laginha) Instrumental inédito6. Aqui Está-se Sossegado (Fado Espanhol) (Fernando Pessoa/José Júlio Paiva) Gravado por Camané em 2015 no álbum Infinito Presente7.Dança de Volta (Fado Bailarico, Fado Lopes) (Luiz de Macedo/Alfredo Marceneiro, José Lopes) Gravado por Camané em 2008 no álbum Sempre de Mim8. Abandono (David Mourão-Ferreira/Alain Oulman) Criado por Amália Rodrigues em 1962. Gravado por Camané em 2015 no álbum Amália - As Vozes do Fado9.Rua das Sardinheiras (Maria do Rosário Pedreira/Mário Laginha) Inédito10.Ela Tinha Uma Amiga (Manuela de Freitas/José Mário Branco) Gravado por Camané em 2001 no álbum Pelo Dia Dentro11.A Guerra das Rosas (Manuela de Freitas/José Mário Branco) Gravado por Camané em 2010 no álbum Do Amor e dos Dias12.Amor é Fogo Que Arde sem se Ver (Luís Vaz de Camões/Alain Oulman) Inédito13. Fado Barroco (Mário Laginha) Instrumental inédito14. A Casa da Mariquinhas (João da Silva Tavares/Alfredo Marceneiro) Criado por Alfredo Marceneiro em 1961. Gravado por Camané em 2017 no álbum Camané Canta Marceneiro