Horas Vazias é o primeiro disco de Camané sem a direção artística de José Mário Branco. Sete anos depois de Infinito Presente, o seu último trabalho de originais, o fadista conta-nos como foi reunir várias participações para o disco, como transforma as canções em fados seus e como nomes como Carlos do Carmo o vão influenciar para sempre. Os tempos de pandemia deram-lhe tempo para fazer o novo trabalho, mas também incertezas para os concertos do futuro. Foi pai e isso tirou-lhe alguns medos. Camané falou com alma, ou não fosse esta uma conversa com um fadista..Desde 2015 que não gravava um trabalho seu de originais, porquê tanto tempo? Bem, continuei a gravar a seguir ao Infinito Presente (2015). Fiz um disco de estúdio a cantar Alfredo Marceneiro (2017), com produção do José Mário Branco. Depois, e em parceria com o Mário Laginha, fiz o Aqui Está Sossegado (2019), um disco que também é de fado e que tem temas novos e agora fiz o Horas Vazias. Foram discos onde estive sempre a cantar e que transportei para a minha forma de estar no fado... não foi assim tanto tempo..O que nos quer dizer com este Horas Vazias? Nos meus discos sempre escolhi uma frase de um poeta, de um dos fados do disco para o seu nome. Por exemplo, o Aqui Está Sossegado é de um poema do Fernando Pessoa. Agora escolhi "Horas Vazias" de um poema do Sebastião Belford Cerqueira e tem a ver com a nossa disponibilidade para alimentar a alma, com o espírito aberto quando ouvimos música ou lemos um livro, foi nesse sentido que escolhi esse título..Este novo disco tem originais de Sérgio Godinho, Jorge Palma, uma música do Pedro Abrunhosa, que é o primeiro single do disco, só para falar de alguns. Como foi reunir essas colaborações? As coisas foram acontecendo de uma forma muito natural. Falei várias vezes com o José Mário Branco do quão gostava que o Jorge Palma fizesse uma música para eu cantar, fomos falando, fomos adiando, até que um dia, pela 4 da manhã, ele envia-me uma música lindíssima com um poema lindíssimo: A Noite Transfigurada. Dizia-lhe sempre que tinha de transformar as músicas na minha estética, na estética do fado, e isso foi conseguido. Neste novo disco há 16 temas, mas tinha mais temas e muito bons que não usei porque não consegui transpor para o meu ambiente musical..Foi um processo difícil ter que escolher 16 entre outras? Foi natural, houve tempo para o fazer. Estava em casa, ouvia as músicas... geralmente não canto em casa, fico com as músicas e as palavras na memória e começo a pensar nelas e quando vou dormir oiço-me a cantar os temas e depois eles constroem-se naturalmente. E nos dias seguintes começamos a marcar ensaios, a mostrar a músicas e as coisas começam a funcionar. Neste novo trabalho eu, com os músicos Carlos Bica, o José Manuel Neto, o Carlos Manuel Proença, fomos construindo as músicas nos ensaios. Já acontecia com o José Mário Branco e agora com o Pedro Moreira [produtor do disco]. Sobretudo é dar continuidade a esta forma de estar no fado. Para mim, a construção dos fados é ir por dentro deles..Depois de transformar em canções suas, partilha com os autores? Sim, partilho, normalmente já quando estão gravadas. Partilhei com o Pedro Abrunhosa e ele gostou imenso. Este tema do Pedro Abrunhosa, Que Flor Se Abre no Peito, tinha sido feito para o Carlos do Carmo, que não o chegou a gravar. O Pedro Abrunhosa ligou-me uma tarde a dizer que tinha um tema e se eu queria ouvir. Primeiro fez o registo com cordas e depois ao piano, gostei imenso e foi dos primeiros temas a escolher. O tema é fantástico e tem tudo a ver com fado. Alguns fados tradicionais que estão no disco - como o fado da Bica (na música Amor Não Custa) ou o fado Rosa (na música Às Vezes Há Um Silêncio), um fado antigo dos anos 1920, que o Marceneiro cantava - peguei neles e pedi ao poeta Sebastião Belford Cequeira, de quem gosto imenso, para fazer umas letras. Enviei-lhe esses dois fados e mais uma música do Miguel Amaral (O Meu Amor) e ele fez três fados com uma linguagem moderna de muito bom gosto. Esta versão com o fado Rosa fizemos só com saxofone e foi uma ideia fantástica, mas está lá tudo do fado..Este é o seu primeiro álbum depois do desaparecimento de José Mário Branco e Carlos do Carmo. Como foi perder essas figuras tão importantes para si? A minha forma de estar no fado tem sempre a ver com as minhas referências. Comecei a ouvir fado muito novo e com oito anos já sabia a parte melódica dos fados tradicionais todos. E desde muito cedo comecei a fazer uma coisa: havia poetas populares nas coletividades que escreviam quadras, quintilhas, e eu colocava essas estruturas nos fados tradicionais que melhor se adaptavam, dependia muito do registo emocional, se a letra era mais triste ou mais alegre, e fazia os meus fados. Fazia essas experiências. Essa construção ajudou-me a crescer com aquilo e ficou cá. Tive fases da minha vida em que não sabia se ia continuar a cantar. Mas quando decidi ir para as casas de fado, esse trabalho anterior ajudou-me a fazer o meu primeiro disco, por exemplo. E quando comecei a trabalhar com o José Mário Branco, e também com o Pedro Moreira, eles perceberam perfeitamente a forma como eu queria, e quero, estar no fado. Mas Carlos do Carmo, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, João Ferreira Rosa, Vicente da Câmara, entre outros, estão cá sempre, aprendi a ouvir fado com eles todos. Foram eles que me deram esta forma de cantar, que tenho desde miúdo. É algo que não se explica, mas tem a ver com o ser ou não ser fadista. Adquiri uma característica e uma estética na forma de cantar e não consigo fugir dela. Aliás, quando era miúdo ia ao Faia com os meus pais ver o Marceneiro e dar beijinhos à Amália. Um dia perguntaram-me se queria cantar e eu disse que só cantava se o Carlos do Carmo fosse ouvir. Aprendi muito com o Carlos do Carmo, ele tinha uma grande generosidade com todos, aprendi muitas coisas, a forma como ele dividia as palavras, a sincopada, que ninguém percebe, e como ele canta como o Sinatra..E o que é ser fadista atualmente? É a mesma coisa que era antes. Ser fadista é como ser um cantor de blues ou de flamengo. Tem a ver com as características da forma de cantar e nas escolhas do repertório, na minha opinião há uma série de escolhas que me ajudam a não fugir dessa expressão que é o fado. Já experimentei outros géneros, mas foram casos muito pontuais, como cantar com o Sérgio Godinho em alguns espetáculos. Ou cantar com o Vitorino, ou mesmo quando fizemos os Humanos. Só fizemos um disco e três espetáculos, não fizemos mais nada. Acho que todos nós, que participámos no projeto, não queríamos ficar catalogados com aquele caminho..Como olha para a nova geração de fadistas? O fado é uma música que evolui de dentro para fora. Acho que há muita gente boa e há muita gente que fez escolhas com as quais não me identifico. O fado não é para ficarmos famosos, a vida depois e o tempo é que nos podem dar isso, ou não. Se formos verdadeiros, honestos e tivermos talento... o fado é uma maratona, é para a vida. O José Mário [Branco dizia-me muito isso, é para ir construindo. É não desvirtuar o ambiente e estética do fado..Há pouco falou dos Humanos, que teve imenso sucesso. Nunca mais surgiu a ideia de voltarem a gravar? Já existiram uns convites, mas naquela altura tive alguma dificuldade em lidar com a mediatização que existiu à volta do projeto. Lembro-me de me abordarem na rua por causa da música Maria Albertina e aquilo incomodava-me porque não queria ficar agarrado a esse registo, de qualquer forma ajudou-me, depois, a chegar a um público mais novo. Mas, por exemplo, as minhas participações nos concertos dos Xutos & Pontapés partiram apenas de brincadeiras que comecei a fazer com o Zé Pedro. Vivíamos perto um do outro na altura..E como está a ser passar por este presente com a covid a afetar a vida de todos? Seria desonesto da minha parte dizer que me afetou assim tanto. Continuei a fazer concertos, mais do que era a minha perspetiva. Entretanto fui pai e isso ajudou a que a vida fosse mais preenchida. E salvo os confinamentos continuei a cantar em vários locais. Fui fazer espetáculos no Luxemburgo, em Madrid, ainda há dias cantei no Funchal e depois em Istambul. Mas é tudo uma incógnita, concertos que vou fazer em janeiro e que são ainda uma incógnita. Ainda tenho concertos para dar do disco com o Mário Laginha. Mas nada é garantido agora..Entretanto, em fevereiro tem um concerto na Trindade e ainda há um no CCB agendado para o segundo semestre... À partida tenho o concerto no Teatro da Trindade, que é algo que sempre sonhei fazer porque será um concerto só com músicas do novo disco. Quando tinha 15 anos fui assistir a um concerto do Carlos do Carmo e foi um espetáculo só com o repertório de um disco, e sempre sonhei fazer o mesmo. E em outubro vou ter, espero, concerto no CCB. Ainda é cedo para falar desse concerto. O da Trindade, a 15 de fevereiro, vai ser especial..Foi pai. Isso mudou alguma coisa no Camané fadista? Acho que me ajudou, sobretudo no palco, a não estar tão centrado em mim. Ajudou-me a ir para palco e não ter que esperar pela quarta música para me começar a libertar. Ser pai ajudou-me a não estar tão preocupado em fazer o meu trabalho. Sou fadista e não sei fazer mais nada, esse medo provocava-me uma certa timidez. Ser pai ajuda muito nessas coisas. Ele adora piano, por causa do disco que fiz com o Laginha. E, se calhar, vou consegui passar-lhe o gosto pela música e o gosto pelo fado, mas que seja aquilo que ele quiser. Ele agora está na fase Justin Bieber, mas do Bieber na fase atual, que é melhor. (risos).E o Camané, o que ouve? Gosto do jazz francês, da música clássica, da música norte-americana. Gosto de tudo. A música para mim é sempre uma descoberta e as músicas influenciam-se muito umas às outras..Viaja muito, leva o fado aos quatro cantos do mundo, sente o peso de representar um país quando está perante o publico estrangeiro? Dou o meu melhor, mas sinto que há uma coisa na música que ultrapassa a barreira da língua. Ultrapassa tudo. Lembro-me de em criança ouvir Sinatra e Aznavour, e não percebia nada, mas adorava. E mesmo os The Beatles, que ouvia compulsivamente. A verdade é que, por exemplo em Istambul, numa sala onde já tinha cantado, para um público que fala uma língua completamente diferente, foi fantástico. Até dá medo. Eles não percebem nada, mas ao cantar com emoção a barreira da língua ultrapassa-se. Não é preciso cantar em inglês para tocar as pessoas..filipe.gil@dn.pt