"O cinema foi a minha primeira paixão", conta ao DN Caetano Veloso, convidado de uma sessão especial de Democracia em Vertigem, um filme de Petra Costa, num Cinema Ideal a abarrotar. O filme que está em streaming na Netflix passou em Lisboa numa iniciativa do centro comunitário Casa Mídia Ninja Lisboa, site criado para dar voz ao povo brasileiro..Um documentário que narra o historial da queda de Dilma Rousseff até à chegada de Bolsonaro. Cinema de denúncia com uma ideia marcante de narração na primeira pessoa - o efeito da crise democrática do Brasil é como um trauma pessoal para Petra Costa, filha de pais revolucionários nos tempos da ditadura militar..O debate em torno do filme colocou lado a lado a realizadora e Caetano, fã do filme que começou a sua intervenção no palco do Ideal a dizer que já o viu duas vezes e que ainda vai ver uma outra. Uma hora depois, numa mesa do bar do cinema garante ao microfone do Diário de Notícias que acredita realmente em Democracia em Vertigem: "O cinema ainda pode ser uma arma. O filme de Petra é uma prova disso. Este filme está a causar um grande impacto! É um filme forte, capaz de ensinar o Brasil aos brasileiros e a quem não é brasileiro. Quem não está por dentro do problema atual que veja este filme!".Caetano está também convencido de que se trata de uma obra que incomoda: "O problema é que poderia incomodar muito mais a opinião pública no Brasil se a grande imprensa não olhasse de lado, mas claro que depende... Quando os filmes têm uma presença grande internacionalmente não há como não noticiar... Neste momento, a imprensa no Brasil está a ter que enfrentar a inimizade que o governo está a criar depois das eleições, mesmo os grandes jornais e a emissora que pertence às grandes famílias ou, mais recentemente, a uma igreja evangélica"..E é de cinema que Caetano fala com um sorriso que traz ternura. "Sabe que eu nos anos 1960 escrevi crítica de cinema?", pergunta a rir. Vem também à conversa Cinema Falado, filme-ensaio que realizou em 1986: "nossa! Isso já foi há tanto tempo! Continuo a gostar muito de ver cinema! E o cinema brasileiro está a reagir muito bem a este período negro. Democracia em Vertigem já bastaria, mas a Petra não é a única cineasta a fazer este tipo de cinema. Diria que Democracia em Vertigem é quase um complemento a O Processo, de Maria Augusta Ramos, embora o da Petra seja um processo mais íntimo e detalhado"..Uns minutos antes, na sala e para o público, Caetano falava de como a influência da colonização portuguesa formava vícios anti-democráticos nas famílias que mandam no Brasil e lembrava que os seus apelidos são portugueses... Sobre este tema é o próprio músico que admite a possibilidade dos recorrentes equívocos: "Quando se fala da colonização portuguesa no Brasil há sempre mal-entendidos e esses mal-entendidos são normais num país tão mal resolvido como o nosso. Mas o que incomoda? Gosto muito do livro da Alexandra Lucas Coelho, Deus-dará. Ali está tudo o que acho ser importante saber desse tema. Seja como for, sou suspeito: de certa maneira sou sebastianista... De uma certa mirada, é uma benção termos sido colonizados pelos portugueses. A expansão da Europa com as colonizações é brutal! E o facto de termos herdado a língua portuguesa é óptimo para nós. Dou graças ao facto de o português não ter tanta expressão na América"..Apesar de ter admitido que chorou a ver Democracia em Vertigem, Caetano contou ao público do Ideal que sentiu que é possível ainda ter esperança numa utopia de mudança: "Temos que olhar para a eleição de Bolsonaro como um percalço de um caminho. Se não aparecem percalços, não há caminho. Enfim, um percalço tão evidente é mesmo prova de caminho e exigência de ação! Mas a ação tem de ser feita de uma maneira muito cuidadosa". E também a realizadora Petra acredita que é preciso acreditar numa mudança: "sei que a História tem sempre mais imaginação do que nós. O Chris Marker já dizia isso num filme seu. É claro que estou surpreendida de forma traumática com a realidade mas tenho mesmo essa fé que a História tenha imaginação para dar a volta"..Os aplausos comovidos foram de uma plateia maioritariamente brasileira mas também foram notadas presenças de figuras das artes portuguesas como Maria de Medeiros; Tomás Wallestein, dos Capitão Fausto; Sérgio Godinho; Carminho ou o produtor Luís Urbano.