Caetano, o penitente

Dificilmente Caetano representou uma oposição à ditadura, as convicções dominaram a sua ação política, e tem de ser responsabilizado pela sua queda. A manutenção teimosa da guerra no ultramar foi das piores consequências de tudo o que se passou sob a sua égide.
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A biografia política de Marcelo Caetano, o homem que, em 1968, o Presidente Tomás, juntamente com o Conselho de Estado, escolheu para substituir Salazar no lugar de presidente do Conselho, está bem fornecida de trabalhos de síntese e divulgação e alguns de interpretação. Convém refletir sobre essa biografia, pois ela ajuda a melhor compreender a ditadura e o país.

Comecemos por aquilo que Caetano não foi, isto é, comecemos por descartar a interpretação simples segundo a qual era um homem do regime, que o regime pôs de parte e que, por motivos insondáveis, recuperou para se reconverter, a partir de dentro, sem sucesso por causa dos "militares conservadores" e da guerra do "ultramar". Também não foi o homem de uma "primavera" política que quis e não pôde fazer. Foi menos do que isso. Foi um arrependido das ideias radicais de juventude, da luta pela mudança interna da ditadura, da fugaz tentativa de "abertura" política ou, já no exílio no Brasil, da fraqueza com que tentou controlar a oposição.

Caetano começou por ser um "reacionário" assumido. Nos anos 1926-1927, dirigiu a Ordem Nova, uma revista que tinha como subtítulo "Revista antimoderna, antiliberal, antidemocrática, antiburguesa e antibolchevista, contrarrevolucionária; reacionária; católica, apostólica e romana; monárquica; intolerante e intransigente; insolidária com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais das letras e da imprensa". As palavras importam e os tempos não servem para justificar o extremismo. Alguém, alguma vez, algum dia, poderia confiar, mesmo 40 anos depois, num homem que subscreveu ideias dessas? Mário Soares nunca acreditou. Sá Carneiro foi inexperiente quando acreditou.

Tendo sufragado tais opiniões extremas, ficou obviamente de fora do quadro central da ordem política criada a partir do golpe de maio de 1926. Conseguiu, todavia, sobreviver nas margens da ditadura, calcorreando lugares políticos formalmente relevantes, na Mocidade Portuguesa, na União Nacional, na Câmara Corporativa, num ou noutro ministério, mas de importância política efetiva secundária. Salazar era quem mandava. Talvez o único cargo verdadeiramente importante que assumiu tenha sido o de reitor da Universidade de Lisboa, do qual se arrependeu, em 1962, quando viu que lhe causava demasiados problemas políticos.

Não temos cartas nem documentos oficiais e nunca os teremos, pois assim se passavam as coisas, sem registo ou escrutínio. Mas a hipótese de que o Presidente da República e o Conselho de Estado, em 1968, sabiam quem escolhiam para suceder ao ditador fundador é a mais plausível. Sendo ou não, os factos viriam definitivamente a confirmá-lo.

Mas os factos ainda tardariam, pois, durante um par de anos, Caetano conseguiu conquistar alguns apoios de uma oposição moderada, de que Sá Carneiro e Pinto Balsemão foram os nomes que mais perto chegaram dos dias de hoje. A limpeza da ditadura foi um fracasso anunciado e os costumes mantiveram-se, na repressão política, nas cadeias e nos tribunais especiais, na censura, nas eleições simuladas para a Assembleia Nacional, na recondução do Presidente Tomás, no dogma colonial consagrado na Constituição. Cá dentro, Caetano não se enganava, mas nunca deixou de procurar enganar. Na televisão, as Conversas em Família, vistas hoje, revelam até onde tentou ir. Ainda por cima, para mal das suas penitências, mostra ser um homem muito inteligente. Lá fora, ao contrário, enganou-se e muito, aparentando fraca consciência do alcance das suas posições, como aconteceu na sua famosa viagem a Londres, em julho de 1973, pautada por ruidosas manifestações de rua. Acabou da pior forma. Em abril de 1974, conta Vasco Pulido Valente, o historiador que, corretamente, mais importância lhe dá, quis militares armados a avançar sobre a multidão do Largo do Carmo.

O que aprendemos? Aprendemos que dificilmente Caetano representou uma oposição interna à ditadura, que as convicções dominaram a sua ação política, e que tem de ser responsabilizado cabalmente pela sua queda. A manutenção teimosa da guerra no ultramar não foi causa do seu infortúnio, mas uma das piores consequências de tudo o que se passou sob a sua égide.

Claro que Caetano não estava sozinho. Acompanhavam-no uma fileira de "altos dignitários" do regime, da política e da economia, e uma opinião pública ainda em grande parte mantida na escuridão. Também o ajudaram uma economia ativa, algumas medidas de "modernização" administrativa, grandes investimentos por todos desejados e por ele anunciados, assim como alterações mínimas na rede de segurança social. Foi tanto o líder arrependido quanto o instrumento político à mão de quem não queria mudar. E foi, acima de tudo, a prova de que não há, nunca houve, nunca haverá, terceira via entre ditadura e democracia.

Investigador da Universidade de Lisboa

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