"Eu dantes usava calças. Ele nunca me disse "tens de usar saia comprida, porque é o hábito..." Não, nunca me disse, mas eu, como gosto dele e o quis respeitar, a maneira de ser dele, da família, pronto... Então comecei-me a adaptar à maneira deles, a usar saias compridas. Até já me sinto mal ao pé do meu sogro se tiver uma blusinha de alças. E há hábitos que nós costumamos ter e eles não, por exemplo: ir à praia... Vou, mas já não é como antes. Usava fato de banho, agora não, é um calçãozinho de licra e uma T-shirtzinha.".É a fala de uma muçulmana? De uma judia ortodoxa? De uma mórmon? Não. É da alentejana Carla, 34 anos, entrevistada num episódio da série documental da RTP A Vida Normalmente, de 2008. Carla casou com Bruno, cigano, teve duas meninas (10 e 9) e um rapaz (7), e explica que o marido lhe diz para "ter cuidado com as meninas. Na etnia deles as meninas têm de se preservar, não podem falar delas. Começam logo desde pequenos a pôr coisas em cima das crianças"..No mesmo documentário, surge Guadalupe, 35 anos, de negro da cabeça (coberta) aos pés. Guadalupe é cigana e ficou viúva muito cedo. É ela que, depois de assistir a uma parte das filmagens, aborda a equipa. Fala, muito baixo, sobre ter tido de rapar o cabelo e nunca mais poder dançar - e como gostava de dançar - ou sequer ouvir música. Fala da tristeza que sente, da alegria que, acha, nunca mais conhecerá, da condenação à qual se sente votada. Quer falar disso tudo, aceita ser entrevistada. Mas no dia da entrevista está menos faladora: há uma mulher mais velha a assistir. Ainda assim, Guadalupe atreve-se: "Tradição é assim, nós quando ficamos viúvas temos de ficar para o resto da vida e temos de servir com o preto até morrermos. Não é que concorde muito com a tradição dos ciganos, não concordo, mas sinto-me bem, não é dizer que me sinto bem com o preto porque é um desgosto na minha vida, mas para mim não é a parte que condeno mais nos ciganos. Esta parte não condeno, porque acho que é certo, viver só para os meus filhos e não para mais ninguém. Mas há muita coisa que se condena, não é? Nem tudo nós podemos explicar, mas há muita coisa que sei que é errado. Acho que têm mais direitos, os homens, mas era para ser igual, era para ser igual, não é?".É capaz de haver alguma razão para que tanta gente que tanto se revolta e se sente "provocada" com a opressão das mulheres muçulmanas simbolizada nos hijab (lenço), roupas "recatadas" e burquínis nunca ter tomado sequer conhecimento da "lei cigana" e do que esta impõe às mulheres. Nunca viram? Nunca ouviram? Nunca se interessaram? "É lá com eles"? Mas como, lá com eles, se nos enfurece tanto a desdita das mulheres de burquíni sem nunca termos dado de caras com uma? Às tantas é porque não é, nunca foi e nunca será com as mulheres e a sua opressão que estamos ralados, verdade?