BRICS para que vos quero?

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Na semana passada, realizou-se na cidade sul-africana do Cabo uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os conhecidos Brics (sigla em inglês), formados em 2006 (a África do Sul juntou-se ao grupo quatro ano mais tarde, acrescentando a letra "s", de South Africa, à sigla inicial), com a pretensão geopolítica de constituir uma alternativa ao mundo unipolar nascido do fim da guerra fria e dominado pelos Estados Unidos da América. O objetivo da reunião foi o de preparar a próxima cimeira da organização, marcada para os dias 22 a 24 de agosto próximo.

Não foi fácil encontrar na imprensa portuguesa notícias completas sobre essa reunião. Os meios locais, talvez distraídos com os casos e casinhos locais ou, quiçá, mais ucraniano-macartistas do que outros órgãos ocidentais -- como a BBC, que deu o devido destaque ao encontro do Cabo --, focaram-se quase exclusivamente num assunto relacionado com o mesmo: irá Putin à África do Sul em agosto ou não? Se for, poderá ele ser preso pelas autoridades sul-africanas, cumprindo, assim, o mandato do TPI, de cujo tratado a África do Sul é signatário?

Curiosamente, e enquanto jornais considerados de centro-esquerda (seja lá o que isso for, neste momento, na velha Europa) resumiram o noticiário sobre a reunião ministerial dos Brics a esse tópico, foi um jornal de direita que deu o devido destaque à preocupação central dos países emergentes, neste momento: o facto de a guerra da Ucrânia estar a mobilizar não apenas mais atenção, como sobretudo mais recursos por parte dos países ricos, do que os seus compromissos com a erradicação da pobreza e outros problemas globais.

Disse Naledi Pandor, ministra sul-africana dos Negócios Estrangeiros, cujo país assumirá, a partir de agosto, a presidência rotativa dos Brics: "A atenção e os recursos dos nossos parceiros mais ricos foram desviados e as agendas das nossas organizações multilaterais já não respondem às necessidades e exigências do Sul Global."

A governante sul-africana insistiu que a erradicação pobreza é o maior desafio da humanidade, pelo que nenhum conflito localizado poderá fazer com que o mesmo seja esquecido. Por isso, e depois de observar que "o sofrimento dos pobres é esquecido", acrescentou que o grande objetivo dos Brics, neste momento, é "trazer de volta a atenção e os recursos do mundo" para esse problema central.

Acusou Pandor: "Os países desenvolvidos não cumpriram os seus compromissos para com o mundo em desenvolvimento e estão sistematicamente a tentar transferir a responsabilidade para o Sul Global."

Lembremos a todos aqueles que, do alto da sua pretensa superioridade, desvalorizam a importância de uma organização como os Brics, que estes, além de terem um PIB superior ao do G7, somam mais de 3,2 biliões de pessoas, ou seja, 40% da população mundial. Informe-se igualmente que uma série de outras nações do Sul Global já manifestaram o seu interesse em juntar-se ao grupo. O tema foi abordado na reunião do Cabo, na qual participaram, presencial ou virtualmente, os ministros dos Negócios Estrangeiros de quinze desses estados, entre os quais se incluem países como a Arábia Saudita, Argentina, Argélia e Indonésia, só para dar esses exemplos.

Como bem foi notado pela BBC, o grande objetivo estratégico dos Brics é "equilibrar a ordem global", tornando-a menos dependente do Ocidente. Os ministros dos cinco países que integram a referida organização foram claros. Assim, Subrahmanyam Jaishankar, da Índia, disse: "O mundo é multipolar, sendo necessário reequilibrá-lo. A origem dos problemas atuais está na excessiva concentração económica, que coloca a maioria das nações à mercê de muito poucas". O ministro brasileiro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, caracterizou os Brics como "um mecanismo indispensável para construir uma ordem multipolar, capaz de refletir as estratégias e necessidades dos países em desenvolvimento".

Lamento informar (aspas subtendidas) que os "Brics Plus", como alguns começam a designar este grupo de nações, na expetativa da admissão de novos estados dentro de dois meses, constituem, em termos demográficos, a maioria da população do planeta. Para esses biliões de homens e mulheres esquecidos pelos donos do mundo e os seus porta-vozes, o problema não é a Ucrânia, mas os profundos desequilíbrios globais existentes, fruto do unilateralismo vigente.

Antes que a Ucrânia se torne realmente o problema do mundo -- como esquecer o risco nuclear do atual conflito? --, a guerra tem de parar. Brics fortes e ampliados podem ajudar a encontrar uma paz "sem vencidos nem vencedores", como escreveu Sofia num dos seus poemas.

Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21

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