A primeira-ministra britânica já tinha uma tarefa complicada a tentar convencer os conservadores eurocéticos e os unionistas da Irlanda do Norte (DUP) a apoiarem o seu plano de Brexit. Mas o problema ficou ainda maior nesta segunda-feira, depois de o líder da Câmara dos Comuns, John Bercow, avisar que não aceitará uma terceira votação vinculativa sobre o acordo de saída da União Europeia se não houver mudanças significativas no texto.."Se o governo quer apresentar uma nova proposta que não é a mesma nem substancialmente a mesma que já foi rejeitada por esta Câmara a 12 de março, então isso estaria dentro das regras. O que o governo não pode legitimamente fazer é voltar a apresentar à Câmara a mesma proposta - ou substancialmente a mesma proposta - que na semana passada foi rejeitada por 149 votos. Esta decisão não deve ser vista como a minha última palavra sobre o tema. Serve simplesmente para indicar o teste que o governo deve passar para eu poder dizer que um terceiro voto significativo pode legitimamente ocorrer", disse Bercow numa declaração na Câmara dos Comuns..Bercow está a cumprir à letra as regras do Parlamento, conhecidas por Erskine May e datadas de 1604. Segundo estas, "uma moção ou uma emenda que é a mesma em substância que uma questão que já foi decidida pela afirmativa ou negativa durante uma sessão legislativa, não pode voltar a ser votada na mesma sessão legislativa"..Ou seja, mesmo que Theresa May consiga convencer os conservadores eurocéticos para aceitarem o seu plano e os unionistas do DUP, poderá não conseguir que Bercow aceite uma nova votação vinculativa sobre o acordo - após a rejeição a 15 de janeiro por 230 votos e a de 12 de março por 149 votos..Terceiro voto em risco.Depois de ter perdido novo voto vinculativo, a primeira-ministra submeteu a votação a ideia de uma saída sem acordo (foi rejeitada) e disse que pediria à União Europeia um adiamento de três meses do Brexit caso tivesse o aval dos deputados num terceiro voto vinculativo - que esperava pudesse acontecer nesta quarta-feira -, ou um adiamento mais longo caso estes o voltassem a rejeitar..Mas a dez dias da data prevista do Brexit e a dois dias do Conselho Europeu no qual os restantes líderes europeus devem discutir esse pedido para uma extensão do artigo 50 do Tratado de Lisboa, a realização de um terceiro voto parece contudo comprometida. Ministros britânicos já revelaram que May vai enviar uma carta ao presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, a pedir a extensão, não se sabendo ainda que prazo pedirá..Desde logo, porque May não tem ainda o apoio dos próprios aliados. A primeira-ministra estará contudo a negociar uma forma de ter os dez votos do partido unionista DUP. Mas, mesmo com esse apoio, precisará ainda de convencer os membros do seu próprio partido..O ex-chefe da diplomacia e um dos principais rostos do Brexit, Boris Johnson, defende que a primeira-ministra deve tentar negociar, no Conselho Europeu de quinta-feira, alterações ao backstop [o mecanismo de salvaguarda para evitar uma fronteira física entre Irlanda do Norte e República da Irlanda]. "Há um Conselho Europeu nesta semana. Não é tarde demais para conseguir uma mudança real na solução do backstop. Seria absurdo realizar a votação antes mesmo de ter sido tentada", defendeu nesta segunda-feira Boris Johnson, na coluna semanal publicada no diário The Daily Telegraph..Por seu lado, Jacob Rees-Mogg, o líder do European Research Group (ERG) que reúne 80 conservadores eurocéticos, admite que poderá votar no acordo de May se o DUP tiver sido convencido e se concluir que a hipótese de uma saída sem acordo já não é uma alternativa. "Um não acordo é melhor do que um mau acordo, mas um mau acordo é melhor do que ficar na União Europeia na hierarquia dos acordos", afirmou Rees-Mogg. "Uma extensão de dois anos é basicamente ficar na União Europeia", referiu, falando na hipótese de May ter de pedir uma extensão do prazo de saída do artigo 50..Contudo, 23 deputados conservadores defensores do Brexit rejeitam esta ideia de que o acordo de May é melhor do que nada. Numa carta publicada no The Daily Telegraph, disseram que não vão votar com May, preferindo que o Reino Unido saia da União Europeia sem acordo, considerando que isso é o caminho para "um acordo muito bom". E alegam: "Não foi por nossa culpa que estamos confrontados por duas escolhas inaceitáveis, mas será culpa nossa se votarmos a favor de um por medo de outro", indicam..A carta na manga de May.Caso May consiga o apoio dos seus aliados para o seu atual plano, há uma possível jogada que poderá fazer para ultrapassar o problema causado pela decisão de Bercow..É que as regras de Erskine May dizem que o mesmo texto não pode ser votado novamente "na mesma sessão legislativa". Logo, May poderá pedir a "prorrogação", isto é, o fim da atual sessão parlamentar, que já dura há mais tempo do que o normal (que é de um ano, a começar na primavera) - a atual começou a 21 de junho de 2017, depois das eleições, e supostamente devia acabar só no verão. As leis normalmente não passam de uma sessão parlamentar para a outra, salvo exceções..Em 1948, como uma lei para diminuir os poderes da Câmara dos Lordes estava bloqueada por esses mesmos lordes há duas sessões legislativas e era preciso uma terceira para os deputados poderem passar por cima deles, o governo de Clement Attlee prorrogou o Parlamento e começou uma nova sessão especial que durou apenas 12 dias - de 14 a 26 de setembro desse ano, tendo incluído o tradicional Discurso do Rei, que marca o início da nova sessão..Reagindo à decisão de Bercow, o vice-procurador-geral, Robert Buckland, disse que o Reino Unido está numa "crise constitucional" e deixou no ar a ideia de que o Parlamento poderia ter de ser prorrogado. Mas que isso traria problemas, desde logo porque implicaria tempo (uns dias, na melhor das hipóteses). Depois, porque as leis que atualmente estão no Parlamento teriam de ser terminadas ou teria de haver uma decisão de as levar para a próxima sessão legislativa.