Boris Johnson foi bem-sucedido naquilo em que Theresa May falhou. Em 2017, quando a anterior líder conservadora antecipou eleições para reforçar a sua posição nas negociações do Brexit, o Partido Conservador recebeu mais votos e subiu na percentagem, mas perdeu 13 deputados e, em consequência, a maioria parlamentar. O seu sucessor apostou de novo nas eleições para desatar o nó górdio de um Parlamento paralisado, reforçar o poder interna e externamente e clarificar a paisagem política - desta vez com sucesso. "O padrão estava lá em 2017. Eram exatamente estas as pessoas que queríamos. Muita coisa aconteceu em dois anos. Tivemos uma série de votações diferentes e que foram bloqueadas pelo Parlamento, por isso penso que o contexto é ligeiramente diferente neste ano", comentou Fiona Hill, que foi chefe de gabinete de Theresa May..O Partido Conservador elegeu 365 deputados em 650 e de uma só vez acabou com a ilusão de quem não queria sair da União Europeia (UE) - segundo as sondagens, paradoxalmente, mais de 50% dos eleitores - e com as lideranças dos partidos trabalhista e liberal democrata. Mas a sua vitória também põe em causa o futuro do Reino Unido, com os nacionalistas escoceses e irlandeses a querer um referendo à independência. Indiferente a essas tomadas de posição, o primeiro-ministro dirigiu-se aos britânicos na sexta-feira à tarde, tendo apelado ao fim do debate e ao "sarar das feridas". Ao mesmo tempo garantiu que o governo "nunca irá ignorar os bons e positivos sentimentos de carinho e simpatia [dos eleitores] para com as outras nações da Europa"..Brexit: o primeiro dia do resto das suas vidas.As eleições legislativas na prática funcionaram como um plebiscito ao programa de Boris Johnson e o seu lema "Get Brexit done"- cumprir o Brexit. Na hora da derrota, os trabalhistas reconheceram-no. "A grande questão era o Brexit. Parece que as pessoas queriam uma decisão. Devíamos ter escolhido [permanecer ou ficar na UE]", disse John McDonnell, o número dois do Labour, que enquanto ministro-sombra das Finanças anunciou um plano de investimento de 400 mil milhões de libras e nacionalizações de empresas..Se no discurso que realizou em Downing Street Boris Johnson apelou à concórdia e à unidade, tendo elegido o serviço nacional de saúde como a prioridade do governo, a hora é de avançar com o Brexit. Primeiro com a formação do governo e a reabertura do Parlamento, ao que se seguirá o momento pelo qual os conservadores se batiam há muito - a aprovação final do acordo de retirada pelos deputados e pelos lordes. Mas se no dia 31 de janeiro o Reino Unido sai do clube europeu, já as negociações entre ambas as partes entram em nova fase. É o período de transição, concebido para as empresas e os cidadãos se adaptarem à saída do Reino Unido, e que, em teoria, deverá acabar a 31 de dezembro de 2020 com um outro acordo selado entre Bruxelas e Londres..Durante esses 11 meses, o Reino Unido mantém as obrigações enquanto Estado membro e continua na prática a fazer parte do mercado único e da união aduaneira, mas perde os direitos de participação nas instituições europeias..Se até 1 de julho concluírem que não vão conseguir chegar a acordo em tempo útil com a UE, os britânicos podem requerer o prolongamento do período de transição até ao final de 2022. Se o governo de Boris Johnson não estiver interessado numa saída com acordo sobre a futura relação com a UE, o vínculo entre ambos seria regido pela regras da Organização Mundial do Comércio. Apesar de o discurso atual do primeiro-ministro negar quer um crash quer um pedido de prolongamento da transição, este último cenário é tido como o mais provável. Há um obstáculo pelo caminho. Caso o governo britânico peça a continuidade até 2021 ou 2022 no período de transição, Londres terá de participar no orçamento plurianual..Na noite eleitoral, duas figuras tão coloridas quanto opostas estiveram de acordo quanto aos próximos tempos. "Acho que vamos entrar em três anos de negociações bastante agonizantes. Quanto maior for a maioria conservadora, claro, menor será a influência que o ERG [European Research Group, grupo de deputados conservadores pró-Brexit] e os eurocéticos terão, pelo que se chamará Brexit, mas não o será", disse Nigel Farage, líder do Partido do Brexit. "O acordo deve ser aprovado, mas há muito mais a fazer para que seja uma realidade e isso levará anos, disse por sua vez o ex-presidente da Câmara dos Comuns John Bercow..Do lado de Bruxelas está tudo a postos para as negociações. "Estamos prontos. Definimos as nossas prioridades", declarou Charles Michel, o novo presidente do Conselho Europeu. O belga deseja que a nova fase seja marcada pela "calma e pela tranquilidade, mas com grande determinação". Os 27 devem manter o francês Michel Barnier como negociador chefe da Comissão Europeia. Os europeus prestarão especial atenção à "integridade do mercado interno" e à garantia de que a futura relação permita condições de concorrência equitativas entre as duas partes, destacou Michel. "Se o Reino Unido se tornar um cruzamento entre um casino e uma Singapura no Tamisa, estaremos muito focados nas questões de concorrência equitativa", disse um diplomata europeu à Reuters..Escócia e Irlanda Referendos, se faz favor.As eleições na Escócia tiveram um sabor agridoce para os nacionalistas. O SNP foi o grande vencedor, com 48 eleitos em 59 (apesar de não ter chegado aos 55 que as projeções apontavam), mas como partido pró-europeu a vitória de Boris Johnson foi um revés. No referendo de 2016, os escoceses votaram pela permanência na UE (62%-38%). "É altura para Boris Johnson começar a ouvir-nos. Aceito, com pesar, que esteja mandatado para o Brexit em Inglaterra, mas não tem mandato algum para tirar a Escócia da UE", disse a chefe do governo escocês, Nicola Sturgeon. A líder do SNP anunciou que na próxima semana vai publicar um projeto para um segundo referendo sobre a independência da Escócia. Boris Johnson ligou a Sturgeon para manifestar a oposição ao referendo..Na Irlanda do Norte, os partidos nacionalistas, que apoiam uma reunificação com a República da Irlanda, passaram pela primeira vez a maioria em relação aos unionistas. A líder do Sinn Féin, Mary Lou McDonald, disse que é hora de avançar com um referendo sobre a reunificação - que está previsto no Acordo de Sexta-Feira Santa. "Estamos a caminho de uma eleição sobre a fronteira, não posso dar-vos uma data definitiva, mas temos de fazer o trabalho de preparação agora e de nos preparar", afirmou..Trabalhistas Choque na liderança, raiva nas bases.Jeremy Corbyn, o deputado esquerdista que até 2015 ninguém acreditava que pudesse chegar à liderança do partido, varreu em definitivo o New Labour de Tony Blair para baixo do tapete, guinou à esquerda e desde o primeiro até ao último momento manteve uma ambiguidade sobre a União Europeia que provou ser um erro estratégico. A sua liderança foi ainda salpicada por queixas de um crescente antissemitismo no partido, algo a que só tardiamente reagiu..A sua proposta de negociar um outro acordo de saída com a UE (seria o terceiro) e depois levá-lo a referendo em conjunto com a possibilidade de o país permanecer no clube europeu não vingou. Mas na hora da derrota (a pior em 80 anos), dizem as sondagens e confirmaram vários militantes - em especial nas redes sociais -, foi Corbyn quem não vingou. O antigo sindicalista de 70 anos era extremamente impopular. Uma sondagem da Opinium realizada junto de mais de 5000 britânicos à boca das urnas concluiu que o motivo pelo qual a maioria não votou nos trabalhistas foi o seu líder (37% dos votantes que trocaram o Labour por outro partido). Segundo a YouGov, Corbyn recolhia 70% de impopularidade. Ainda assim, segundo a Sky News, a direção do partido não esperava os resultados e ficou "em choque" ao saber das projeções, mais tarde confirmadas, de uma perda em toda a linha, inclusive em circunscrições que sempre votaram Labour. Resta a Corbyn sair de cena, como reconheceu nas primeiras horas de sexta-feira..Liberais democratas De futura PM à demissão.Depois de uma bem-sucedida campanha para as eleições europeias, na qual o partido foi o segundo mais votado, com o lema "Bardamerda para o Brexit", o Partido Liberal Democrata fez campanha para que a jovem líder Jo Swinson fosse a "próxima primeira-ministra". Mas Swinson, de 39 anos, não conseguiu mobilizar o eleitorado - e de nada valeu ao partido ter sido o porto de abrigo de desiludidos deputados trabalhistas e conservadores. Contas feitas, os liberais democratas elegeram apenas 11 deputados, menos um do que em 2017, e a líder ficou fora da Câmara dos Comuns. "O nosso país está nas mãos do populismo, com o ressurgir do nacionalismo em todas as suas formas", lamentou no discurso em que anunciou a demissão..Próximas etapas.Discurso da rainha O calendário legislativo vai ser lido por Isabel II na quinta-feira, desta vez sem carruagens nem luxos reais..Acordo aprovado Com uma larga maioria parlamentar, o acordo de saída da UE deve ser validado pelos deputados antes do Natal, a 20 ou a 23..Saída Até 31 de janeiro, a Câmara dos Comuns e a dos Lordes têm ainda de aprovar legislação relativa ao Brexit a tempo de o acordo de retirada receber o selo real. Inicia o período de transição, até 31 de dezembro, no qual há que negociar as futuras relações comerciais com a UE.