Brasil: agora é a vez da classe média

No maior país de língua portuguesa, há um antes e um depois de Lula. As políticas sociais do ainda Presidente brasileiro permitiram a trinta milhões de pobres ascender à classe média. Amanhã – é praticamente garantido – o Brasil vai eleger Dilma Rousseff para a presidência da República, esperando que o país continue a crescer. Mergulho nos subúrbios do Rio de Janeiro, para assistir ao espectáculo de um país em mutação.<br />
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O metro para o Irajá, vinte quilómetros em linha recta a norte do Rio de Janeiro, atravessa em 48 minutos o novo Brasil. À medida que se avança na ferrovia, a Cidade Maravilhosa deixa de ser cidade e deixa de ser maravilhosa. Estamos no subúrbio, na zona das classes trabalhadoras, das maiores favelas, do grande dormitório carioca. Urbanisticamente é assim: construção de madeira e zinco na subida do morro, de cimento e tijolo junto ao asfalto. Depois há os casarios antigos, de pintura descascada e paredes grafitadas com os tags dos diferentes comandos que disputam cada milímetro do território. Lá em cima há botecos de má fama, tráfico e tiros todas as noites. Cá em baixo há comércio e escolas. Os favelados, antes, eram mais. Agora os asfaltados estão em maioria.

Às seis da manhã de um dia de semana, comprar o bilhete de metro para ir do Irajá ao centro do Rio chega a demorar mais de meia hora. Como não existem passes sociais, o povo faz fila para comprar ingresso e poder ir trabalhar. Segundo um estudo deste ano do município, 93 por cento da população activa do subúrbio está empregada. Destes, mais de metade têm contrato e décimo terceiro mês pago. Há dez anos, Irajá era terra de pé-descalço. Seis em cada dez habitantes não tinham ocupação. Ganhava-se a vida em biscates, «a ser correio de crack ou a assaltar turistas no Rio», diz Paulo Lopes, 32 anos, «residente desde garoto de fralda.»

Amanhã, o Brasil vai a votos e mais de metade dos eleitores do país pertencem à classe média. Em 2000, eram menos de quarenta por cento. Um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas, o principal centro independente de investigação científica do país, conclui que existem hoje mais de cem milhões de brasileiros em famílias médias cujos rendimentos mensais oscilam entre 1100 e 4800 reais (de quinhentos a dois mil euros, sensivelmente). É um aumento de 33 milhões de pessoas desde 2003. São dez milhões de pobres extremos e 23 milhões de pobres que deixaram de o ser. É uma renovada condição social. É um aumento brutal do poder de compra. É, grosso modo, uma revolução.

«A pobreza passou a ter um lado brilhante, um ponto de fuga», diz à NS’ Marcelo Neri, o economista que dirigiu este estudo. Para ele, as políticas sociais de Lula – como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida (ver caixa) – foram um incentivo importante. Mas o grande factor de mudança é outro. «Só entre 2008 e 2009 foram criados no Brasil 8,5 milhões de novos empregos formais, ou seja, com contrato e segurança laboral. Os brasileiros, que sempre foram cigarras, estão a tornar-se formigas. E depois, à medida que as pessoas ganham uma renda fixa, o consumo aumenta e a economia avança. A construção da classe média é um processo que não vai abrandar.»

O Brasil está a viver um momento único na história porque tem um novo grupo social dominante. Emir Sader, politólogo e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, esmiúça a ideia: «A classe média concentra pela primeira vez mais de metade da população, 52 por cento, e é o maior grupo em termos de poder de compra, ultrapassando de forma inédita as classes alta e média-alta. Isto obriga os políticos a apresentarem um novo discurso, porque a mutação social tem efeito nas urnas.» Sader dá o exemplo de Lula: «Ele tem hoje uma taxa de aprovação de 85 por cento, não apenas pelas reformas que fez, mas sobretudo pela imagem de homem simples, do povo. Isso é tão relevante que bastou ele apontar o nome de Dilma para toda a gente aprovar, sem um piscar de olhos.»

Os dias gordos
Aos domingos de manhã há feira no Irajá e a estrada Padre Roser, a partir das oito, fica um mar de gente. Bancas dos dois lados da rua apertada, uma multidão carregada de sacos de compras a fluir ao ritmo do sambinha que ecoa das colunas de um comércio de CD piratas. Banana-prata tem desconto na venda da dona Rosa, um cacho é um real, mas ela sugere a especialidade da semana, banana-pão a real e meio. Também há pastel de carne e suco de cana, varas de açúcar espremidas para um copo de gelo. Brinquedos made in China, revistas pornográficas dos anos oitenta, loiça usada, o que se quiser. Lá ao fundo, mesmo no fim do mercado, fica a venda do peixe. Paramos aqui.

Há controvérsia encostada à corvina. O Palmeiras ganhou na véspera ao Flamengo e a discussão segue brava. Atrás do balcão, Marcelo devia estar a atender os clientes e Calú a amanhar o pescado, mas só ligam ao pedido de uma velhota após uns valentes 15 minutos de sururu. «Aqui tudo é fresquinho», Marcelo a fazer o troco. «Chegamos às cinco à colónia de pescadores, lá em Copacabana, e só levamos produto do dia.» Carregam a carrinha antes das seis e às sete já estão a montar a venda – é rotina com mais de 12 anos. «A grande diferença é que a gente hoje traz cinco vezes mais do que trazia. Tem até vezes que chega a dez e já vendemos o peixe todo.» Quem compra? «Todo o mundo.»

Apesar de o Irajá ter uma rede satisfatória de transportes públicos, o comércio automóvel está a crescer como nunca. Quem o diz é um empresário do subúrbio, Ronaldo Almeida. Está com o filho, um garoto de 4 anos chamado Cristiano Ronaldo, de roda do pula-pula, o enorme trampolim que o município instala numa praça recôndita em dias de festa religiosa. O pai no boteco, a dar conta de uma cervejinha. O rapaz a disputar espaço com os outros moleques na tela.

Ronaldo pai, nome português mas fisionomia nórdica, anda a vender uns seis carros por mês, «tudo chapa gasta».Ou seja, automóveis usados, muitas vezes batidos, com ou dez 15 anos de rodagem. Custam cinco mil reais, no máximo oito mil. Um «carro de zero» – portanto novo – sobe aos trinta mil. O homem só não enriquece porque tem cinco filhos. Roupa, alimentação e colégio saem caro. «A verdade é que a coisa melhorou muito. O negócio ainda não está como eu quero, mas dá para notar uma grande diferença. Hoje até tem dois táxis aqui. Quem é que haveria de imaginar isso há uns anos?»

Antes de ser eleito pela primeira vez em 2002, Lula fez um discurso que se tornou famoso dentro e fora do Brasil. Dirigindo-se aos apoiantes de uma favela do Rio, o líder do PT disse: «Um dia você vai ter o seu carro. Um dia vai ter geladeira com freezer, vai ter televisão e DVD, vai ter lava-roupa. Oiçam o que eu digo: esse dia está próximo.» Olhando para o Irajá, a profecia cumpriu-se. Mas também é verdade que a política financeira do governo incentivou os bancos a darem cartões de crédito às pessoas mais pobres. O Banco do Rio de Janeiro tem inclusive um cartão favela, específico para os habitantes do morro. Será o sonho de consumo real?

Já vimos a hecatombe deste lado do oceano. Nos anos noventa também emergiu em Portugal uma nova classe social. Ficaram conhecidos como «novos-ricos», pessoas que tiveram um rápido acesso ao dinheiro e começaram a comprar produtos e serviços a que antes não acediam. Uma década depois, o país debate-se em vez disso com uma nova pobreza, gente que estava habituada a um elevado padrão económico e que caiu com as dívidas que acumulou nos anos dourados do consumismo.
José Eduardo Dutra, chefe de campanha de Dilma e presidente do Partido dos Trabalhadores, não acredita que o mesmo aconteça no Brasil.

Respondeu apenas isto à NS’: «Fomos o primeiro país do mundo a sair da crise. E estamos conscientes em criar uma riqueza sustentada, para todos. O crédito é uma consequência natural do crescimento da economia, são coisas que caminham paralelas. Não podemos esquecer que toda a sociedade aumentou a sua renda, sejam pobres, classe média ou ricos. Os bancos vão atrás.»

O tempo da integração?
Em 1991, o escritor canadiano Douglas Coupland escreveu o mítico Geração X, em que escarnecia da sociedade de consumo e definia os que nasceram depois da Segunda Guerra Mundial como puros hedonistas, e por isso esvaziados de qualquer pensamento utópico. Nesse livro, Coupland inventou também um termo que com o tempo haveria de se tornar extremamente popular. Brasileirização, o que significa uma sociedade de grande desigualdade social em que há apenas ricos e pobres e os ricos exploram os pobres.

A ideia instituída no mundo pode estar desactualizada, mas é esta: o Brasil é um país onde não existe classe média. No imaginário colectivo, há mauricinhos e pés-descalços, os primeiros esbanjam dinheiro, os segundos roubam dinheiro. Mesmo que partilhem geografias próximas – e em nenhum sítio isso acontece tanto como no Sul do Rio de Janeiro, onde encostados aos bairros finos do Leblon, Ipanema e Copacabana vivem milhares de cariocas em condições degradadas –, nunca se misturam.

A Cruzada São Sebastião, no alto do Leblon, é um conjunto habitacional de classes baixas construído há mais de meio século. Tem nitidamente o seu beat, com Zeca Pagodinho e o velhinho Tom Zé a cantarem nos rádios virados para as janelas a igualdade e os direitos de toda a gente. Dificilmente alguém passa e pensa que aquilo é só música. Também é uma afirmação e um cartão-de-visita a quem chega de fora. «Durante anos, nós sentimo-nos discriminados», diz Lília Pinheiro, 37 anos, mãe de três filhos. «Agora a coisa começou a mudar.»

O filho mais novo de Lília é excelente aluno. Tanto que ganhou bolsa de estudos num dos colégios mais cotados da cidade, o São Paulo, em Ipanema. As leis do governo Lula criaram essa oportunidade – mesmo no ensino privado, onde estão as melhores escolas, pobre tem direito a vagas gratuitas, desde que com mérito. Miguel Pinheiro estuda com os meninos ricos que moram de frente para a praia. Ele também tem quarto com vista atlântica, mas num sítio estigmatizado. «Quando os garotos tinham trabalhos de grupo, teve mães ali que proibiram os filhos de vir aqui na Cruzada, por acharem o lugar perigoso.»

O tráfico de droga reinou ali anos, mas já era. Muito por culpa da abertura de uma esquadra de polícia a cem metros dos prédios de oito andares, 24 apartamentos por piso. Hoje, nos blocos da Rua Humberto de Campos, quase toda a gente trabalha e muitos estão a dar-se bem na vida. Ana Carolina Canegal, socióloga e investigadora no Centro Universitário Integrado da Universidade do Rio, explica o que está a acontecer. «Com a melhoria do nível de vida, as pessoas conseguiram organizar-se e trabalhar em conjunto. Têm orgulho em viver ali e, aos poucos, vão conseguindo passar essa imagem para fora.»

Uma casa na Cruzada tem dois quartos, salão, cozinha e banheiro. O aluguer custa 350 reais, mais oitenta de condomínio. «Mais de noventa por cento das famílias têm as contas em dia», diz Eduardo Goulart, administrador do condomínio do Bloco 10. O prédio acabou de renovar a pintura da fachada, amarelo-pálido e cor de vinho. «Já vem gente granfina perguntar se há casa para vender. A localização é excelente, estamos perto de tudo e temos uma das melhores vistas do Rio. Mas agora que a gente gosta de morar aqui ninguém vai sair, né?»

Quando foi construída, em 1955, a Cruzada São Sebastião teve logo direito a estabelecimento de ensino, um privilégio pouco comum na altura em zonas de classe baixa. Hoje, por ironia, o nível de vida melhorou e a prefeitura do Rio de Janeiro está a ponderar encerrar a Escola Municipal Santos Anjos. Cléa Pache, directora, concorda com a ideia. «Se retirarmos as crianças daqui e as misturarmos com a demais garotagem do Leblon, podemos combater melhor o preconceito que existe em relação à Cruzada.» Não faz falta uma escola perto de casa? «Pode até ser, mas faz mais falta eles sentirem-se gente.»

Novo Brasil, nova família
Para Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, há um outro factor determinante na ascensão da nova classe média brasileira. «As famílias no Brasil eram tendencialmente muito numerosas, o que ampliava o risco de pobreza extrema. Hoje, a média nacional é de 1,9 filhos por casal, o que é sem dúvida uma mudança importante. Também há uma enorme preocupação com a educação, coisa nunca antes vista. O sistema público é fraco e a maioria das famílias médias tenta colocar os filhos em colégios, para que aprendam melhor e possam um dia subir na vida.»

Voltamos ao Irajá, lá no Norte do Rio. Hugo Duarte é português da Covilhã. Há cinco anos conheceu Hágata Pires num chat da internet. Começaram a falar, apaixonaram-se e ele veio visitá-la ao Brasil. No bilhete de retorno tinha brinde: a rapariga engravidou. Passados uns meses, mudou-se para Portugal com a filha, Beatriz. «Como não dava para aguentar o frio, decidimos tentar a sorte no Rio de Janeiro», conta ela.

Primeiro instalaram-se em Santa Teresa, mas cedo se cansaram de não dormir à noite por causa dos tiroteios entre os comandos rivais das favelas. Então mudaram-se para a zona norte, onde ainda vivem. «Eu cresci na favela da Malvina, aqui no Irajá. O meu pai ainda aí vive, mas nós agora encontrámos esta casa, estamos bem.» Esta casa é um rés-do-chão com três assoalhadas, com quintal e sala de máquinas. Como quase todas as famílias do subúrbio, têm internet e televisão por cabo. Da electricidade têm gato, uma puxada ilegal. Água está incluída no contrato de arrendamento, quinhentos reais por mês.

Hugo tinha deixado em Portugal meio curso de Gestão de Empresas, agora trabalha como canalizador e faz um tubarão por mês. Um tubarão são mil reais. Hágata está no último ano de Dança na Universidade Federal, ganha provisoriamente o mesmo que o marido a fazer censos para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A Beatriz, de 4 anos, frequenta a pré-primária numa escola evangélica. «Nós não somos religiosos, antes pelo contrário», avisa logo Hugo. «Mas pagamos setenta reais por mês e a criança tem excelentes condições. Melhor era difícil.» Mais filhos não querem, pelo menos por agora. «Educar uma criança em condições requer tempo e despesa», diz a mãe.

Almoço em casa luso-brasileira. O pai chega ao fim da manhã com um DVD de desenhos animados para a filha. «Nossa, que fixe», exclama Beatriz, num português em versão transatlântica. Hágata trata da roupa, Hugo agarra-se aos tachos. Envolve umas postas de anchova em farinha de milho e frita-as. O arroz e o feijão-preto já estão no tacho – «aqui cozinha-se para a semana toda, deixa-se a panela no fogão e depois é só aquecer». Está uma delícia. A cervejinha a acompanhar é ritual luso, «os brasileiros bebem refrigerante com a comida mas muito chope no boteco.»

António Lavareda, sociólogo, analisou o voto por estratos de rendimento nas últimas cinco eleições presidenciais e acredita que, no Irajá, o PT vai obter um resultado histórico. «Vamos ter votação expressiva na Dilma em camadas mais baixas e na classe média e predomínio da oposição na parte superior da pirâmide social. De certeza.» O cientista político Marcus Figueiredo, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, alinha pela mesma batuta. «Essa nova classe média é eleitora do PT porque se beneficiou de três elementos-chave: aumento real do salário mínimo e da massa salarial e expansão do emprego com carteira», dizia há dias ao Globo.

Amanhã de manhã, Hugo e Hágata sairão de casa bem cedo rumo à escola da Rua Marthin Luther King Júnior, para irem votar. À tarde hão-de sair e encontrar os amigos do bairro, tudo famílias com um ou dois filhos que estudam em escolas privadas. Vai haver churrasco e pagode, mas não dura até tarde, que o dia seguinte é de trabalho para toda a gente. «Isto é o que a gente planeia», e Hágata abre um sorriso. «Se a Dilma ganhar, as ruas do Irajá vão ter tanta festa que ninguém vai conseguir dormir.»

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