Brasil: uma república, sete governos

Presidente diz uma coisa. Vice-presidente diz outra. Os ministros, uma terceira. Os governadores estaduais ignoram o presidente. O Congresso idem. A OMS impõe as suas regras. E, nas favelas, traficantes e milícias agem mais depressa do que o poder público. Uma pandemia e um pandemónio
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Na manhã de quarta-feira, um inquilino de um prédio no interior do estado de São Paulo, no Brasil, requereu ao zelador do condomínio a chave que dá acesso à piscina comum, com base no discurso da véspera de Jair Bolsonaro, presidente da República, a estimular o fim da quarentena forçada em virtude da pandemia de coronavírus.

O zelador recusou-se, dada a determinação do poder estadual de restringir o acesso a locais desse tipo.

O inquilino argumentou que até o ministro da saúde Luiz Mandetta, depois de implorar pela quarentena, já considera essas medidas exageradas.

O zelador reagiu, citando o ministro da justiça, Sergio Moro, que ameaçou há uma semana com pena de prisão quem não cumprisse o isolamento, o vice-presidente Hamilton Mourão, que reforçou horas depois do presidente que a ordem do governo é para os cidadãos ficarem em casa, as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), afixadas nos elevadores do edifício, e até o comportamento das favelas cariocas, mais rápidas a agir contra a pandemia do que o poder público do Rio de Janeiro.

O inquilino alertou que o país, assim, irá à falência.

O zelador informou-o que o Congresso Nacional, pela voz do presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, manifestou disposição de aprovar uma renda mínima para os cidadãos durante a quarentena.

A cena, que deve ter tido réplicas mais ou menos parecidas por todo o país, reflete o estado de confusão que se apoderou dos brasileiros na última semana, sob o governo de Jair Bolsonaro. E sob o governo do seu vice-presidente, dos seus ministros, dos governadores dos estados, do Congresso Nacional, da OMS, dos traficantes e das milícias.

"Devemos sim voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fecho do comércio e o confinamento em massa", disse o presidente brasileiro no tal discurso em rede nacional na terça-feira à noite sob panelaços - protestos ruidosos das varandas dos prédios - nas principais cidades do Brasil.

Na manhã seguinte, Bolsonaro reforçou à porta do Palácio do Alvorada, a sua residência oficial, que "o mundo tem mostrado que o grupo de risco são pessoas acima de 60 anos, então, por quê fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas com menos de 40 anos de idade". E imediatamente as autoridades registavam um aumento de pessoas a circular pelas ruas de São Paulo e de outras metrópoles - da mesma forma que aquele inquilino se sentiu habilitado a já usar a piscina do seu prédio.

Executivo desordenado

Mas, horas depois, Hamilton Mourão, durante conferência de imprensa sobre a preservação da Amazónia, reafirmava que "o que fica claro é que a posição do governo, até ao presente momento, é pelo isolamento e pelo distanciamento, ainda se vai discutir a questão de prazos e até onde isso deverá ser levado".

Mais ou menos a posição do ministro da saúde, o rosto do governo durante a crise do covid-19: na linha de Mourão, por dias seguidos Luiz Mandetta, um médico com discurso técnico, convocou os jornalistas para sublinhar a importância do confinamento; mas, na quinta-feira, depois do pronunciamento à nação de Bolsonaro, já considerou ser necessário "melhorar esse negócio da quarentena, que foi precipitado e desarrumado". E, muito menos técnico do que antes, até recomendou "chá, canja de galinha e orações" contra o vírus.

Ainda na semana anterior, o ministro da saúde assinara uma portaria conjunta com o titular da justiça e ministro mais popular do governo, o ex-juiz Sergio Moro, onde se determinava que "o descumprimento das medidas previstas [a quarentena obrigatória], acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores".

O governo brasileiro deu, portanto, em cerca de uma semana, as seguintes orientações aos seus cidadãos: abrir escolas, comércio e transportes, segundo Bolsonaro; manter o isolamento, segundo Mourão; restringir ao máximo as saídas de casa, segundo Mandetta: relaxar nessas medidas, de novo segundo Mandetta; prender quem descumpra a quarentena, segundo Moro.

A confusão no poder executivo não fica por aí: dos 27 governadores estaduais do Brasil, 25 deles informaram que vão manter as regras de isolamento, apesar das declarações do presidente na noite de terça-feira a pedir a "volta à normalidade", "o fim do confinamento em massa" e a atribuir aos meios de comunicação "a disseminação do pavor".

Em conferências de imprensa para os media dos seus estados, 19 desses 25 governadores criticaram abertamente o discurso do Planalto, redigido por Bolsonaro e pelo "gabinete do ódio", como é conhecido na gíria de Brasília o grupo de conselheiros, liderado pelo seu filho Carlos Bolsonaro, encarregado de manter em estado de ebulição os seus apoiantes mais ferrenhos nas redes sociais e de atacar velhos e novos inimigos.

Entre esses 19 críticos, contava-se Ronaldo Caiado, governador de Goiás, médico de profissão, e bolsonarista de primeira hora. "Ponto final, não tem mais diálogo com esse homem [Bolsonaro]", afirmou. "Ele está mais preocupado com CNPJ [registos jurídicos das empresas no Brasil] do que com CPF [registo jurídicos dos cidadãos no Brasil]", resumiu.

Outro dos críticos, João Doria, governador do estado de São Paulo, o mais rico, populoso e influente do país, mas também o mais visado pela pandemia, afirmou lamentar a posição presidencial. "Na condição de cidadão, de brasileiro e também de governador lamento os termos do seu pronunciamento à nação, o senhor, como presidente da República, tem que dar o exemplo, tem que ser mandatário para comandar, para dirigir e liderar o país e não para dividir", disse numa reunião por teleconferência com Bolsonaro em que foi acusado pelo presidente de "demagogia".

Os outros seis governadores, mesmo discordando, optaram por não criticar o presidente. Os mandatários de Rondônia e Roraima, por sua vez, não se pronunciaram.

Dos 15 governadores aliados do presidente no início do seu mandato só sobram quatro a seu lado, um ano e dois meses depois.

Todos os governadores continuam fiéis, entretanto, às recomendações da OMS que chegam pelos meios oficiais e pela comunicação social: lavar as mãos e evitar aglomerações. Sem a adoção das recomendações, número de casos do coronavírus podem dobrar a cada três dias, diz a organização.

A agenda do Congresso

No Congresso Nacional, o presidente da Câmara acusa Bolsonaro de agir pressionado por investidores na bolsa. "Esse enfrentamento sobre sair ou não sair do isolamento nada mais é que a pressão de milhares de pessoas que aplicaram seus recursos na Bolsa. E a gente não pode deixar de cuidar das pessoas porque alguns estão perdendo dinheiro na Bolsa", disse Rodrigo Maia.

"O mercado financeiro vive de estatística. Todos nós que fazemos política vivemos de vidas, então é isso que a gente tem que saber equilibrar, as vidas e os empregos", prosseguiu.

Maia, um dos alvos da manifestação promovida por Bolsonaro no último dia 15, disse ainda que vai mudar uma proposta de criação de uma renda mínima. "O governo já aceitou um valor maior, mas vamos colocar um valor ainda maior em discussão. Os mais vulneráveis precisam de um apoio maior por parte do governo".

E que vai derrubar medida do governo que permitia a suspensão de contratos durante o isolamento. "Eu disse ao governo que, se o governo não mandasse, o Congresso iria legislar. A gente não podia deixar esse assunto continuar avançando sem uma solução", desafiou.

Tráfico e milícias organizados

Já considerados poderes paralelos no Brasil em circunstâncias normais, os líderes do tráfico de droga e das milícias, máfias que oferecem proteção às populações em troca de pagamento de serviços básicos, vêm decretando recolher obrigatório e confinamento por causa do vírus no Rio de Janeiro. Reportagens de jornais locais, como O Globo e Extra, noticiam que Rocinha, Cantagalo, Manguinhos, Brás de Pina e Rio das Pedras, a comunidade controlada pelos milicianos acusados de executar a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, estão proibidos de sair.

"A partir das oito horas da noite, eu disse oito horas da noite, quem estiver na rua de sacanagem ou batendo perna vai receber um corretivo", ouve-se todos os dias de um altifalante de um carro da liderança do tráfico que atravessa a Cidade de Deus, favela mundialmente famosa após o filme homónimo do realizador Fernando Meirelles.

Até à noite de sexta-feira estavam contabilizadas 92 mortes por coronavírus no Brasil, 194 pacientes internados nas emergências, 205 em enfermarias e mais de 3000 casos de pessoas infetadas em todas as regiões do país.

Segundo o secretário executivo do ministério da saúde do Brasil, "a previsão é de 30 dias muito difíceis". "Provavelmente nós estamos na fase crítica da pandemia. Nós não vamos começar a reduzir os casos em 30 dias, nós temos uma estimativa maior para ter a redução dos casos", disse Gabbardo Reis.

A OMS informou também até essa altura que, nos últimos dois dias, o mundo registou mais 100 mil novos casos de coronavírus. Ao todo, já são mais de meio milhão de pessoas infetadas.

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