Já lá vão mais de dez anos, desde que um grupo de miúdos da Amadora, de seu nome Buraka Som Sistema, anunciou ao mundo ao que vinha, com um primeiro disco de título bastante premonitório - From Buraka to the World. Sobre eles já quase tudo foi escrito, correram o planeta e tornaram Lisboa no epicentro de uma nova música, eletrónica e urbana, nascida na periferia mas pronta para conquistar os maiores palcos internacionais. Foi sobre este legado que João Barbosa, o músico, produtor e DJ mais conhecido por Branko, 39 anos, se tornou, também ele, numa referência mundial da música eletrónica urbana, com uma carreira em nome próprio, mas também enquanto editor, produtor de programas de rádio ou apresentador de um programa de televisão. Agora, apresenta-se também como "artista", uma "evolução", como a classifica nesta entrevista ao DN, ocorrida durante as gravações de Nosso, o segundo álbum em nome próprio, que é hoje editado e no qual conta com as colaborações de gente tão diversa como a brasileira Mallu Magalhães, o português Dino D'Santiago, o americano Sango ou os peruanos Dengue Dengue Dengue, entre tantos outros..De regresso com um segundo disco, que surge quase quatro anos depois do primeiro. O que andou a fazer durante este período? Aproveitei esse tempo para pela primeira vez me dedicar a fazer um disco à séria, porque quando fiz o anterior, Atlas, os Buraka ainda existiam e eram a minha principal prioridade. O próprio conceito do disco era um pouco mais conceptual e fechado, enquanto neste valeu tudo, porque tinha mais tempo, mais espaço mental e toda uma série de experiências vividas durante esse período, em que até tive um programa de televisão. De certa forma, penso que este disco me permitiu construir aquilo que realmente hoje sou enquanto artista..Anteriormente apresentava-se sempre como produtor, já se considera um artista? Sim, porque era isso que eu era, um produtor que fazia parte de um grupo, mas com o tempo fui assumindo cada vez mais essa faceta de artista. Foi uma evolução muito forte e que acabou por ser marcante no modo como este disco foi construído. Mas não deixo de ser produtor, que, de certa forma, acabou por tropeçar no artista. Há 20 anos, quando começámos com os Buraka, era impossível ser considerado como tal, mas hoje, com a emancipação dos geeks, até eu consigo ser artista (risos). Acima de tudo, o que me interessa é explicar, através da música, aquilo que sou, do que gosto e a forma como tudo isso influencia o modo como faço essa mesma música. É toda uma série de elementos que acaba por construir a minha personalidade, que não se esgota na música e se estende depois a uma rede de artistas à minha volta, à editora Enchufada, aos espetáculos que fazemos e tudo isso está presente quando faço um disco, como agora..Considera que uma música tão global e abrangente como a sua acaba por ser também uma espécie de afirmação política, especialmente em tempos tão extremados como os atuais? Vivemos um período social complexo, de facto, de reação, mas também de discussão de tópicos muito importantes, que já deveriam estar resolvidos há bastante tempo. Não sei até que ponto a minha música pode contribuir para ajudar a encontrar uma direção, seja ela qual for. Mas sei que através dela tento sempre celebrar a diversidade, através das diferentes coordenadas musicais que hoje se cruzam em Lisboa e fazem desta cidade um epicentro cultural, especialmente ao nível da lusofonia. Isso sim, está sempre presente na minha música e, nesse sentido, espero que o Nosso seja mais um contributo para essa celebração da diversidade..Ao olhar para trás, como é que se sente ao ver a assimilação de uma música de periferia, quase de gueto, como era a dos Buraka Som Sistema, que se tornou com o tempo numa espécie de banda sonora oficial desta nova Lisboa do século XXI? Desde 2006, quando começámos o projeto dos Buraka Som Sistema, até agora, aconteceram uma série de coisas bastante interessantes, em Lisboa, que também tiveram o devido acompanhamento noutras partes do mundo. Falo em formas de pensar, daquilo que é chamado de progresso. E isso também passou pela afirmação de uma identidade pessoal, que contrariou a ideia de que para se ser músico era preciso fingir que se era americano ou inglês. Tudo isso validou a afirmação dos Buraka, que passava pela ideia de celebrar a periferia, como epicentro de criação cultural em todas as grandes cidades do mundo. É óbvio que o imediatismo e a facilidade de comunicação da música eletrónica ajudaram, mas foi apenas uma forma muito prática de criar cultura, atualizar tradições e criar novos laços. Na altura, os Buraka soavam a algo diferente, mas com o tempo houve uma gradual familiarização, que foi muito engraçada de se sentir..Na altura, mais ou menos ao mesmo tempo, existiram alguns fenómenos semelhantes, noutras partes do mundo. Sentem-se, hoje, os precursores de algo maior a nível musical? Sinto que fazíamos parte de uma ideologia musical que estava a acontecer simultaneamente em várias partes do mundo e esse movimento, sim, era precursor do que se viria a tornar o futuro, na forma como a maioria das pessoas encaram hoje a música. Nesse sentido, sim, porque fizemos parte de um conjunto de artistas que falavam e celebravam o sítio de onde vinham, a tal periferia, sem qualquer tipo de pudor. Artistas, muitas das vezes até bastante pouco musicais, para quem a música era mais uma declaração de princípios, mas que com o tempo acabaram por entrar na vida das pessoas, fosse através de uma única canção, da batida dessa canção ou porque de facto as fizeram pensar sobre outras realidades, sociais e artísticas. Não fomos os primeiros, mas estávamos em sintonia com o resto do mundo e acabámos por representar isso para Portugal..E à boleia desse movimento acabou por correr o mundo, com os Buraka e mais tarde também a solo... Quando se começa algo assim, nunca se tem uma ideia muito concreta sobre até onde podemos chegar. Nunca houve um plano de negócios (risos), mas reconheço que todos estes projetos tiveram sempre uma direção bem definida e constante, em termos de ideologia de uma música eletrónica e global. De ver a eletrónica como uma forma válida de música, que não tem de se resumir ao techno, à house e ser apenas ouvida entre as duas e as seis da manhã. É algo que se pode traduzir de diversas outras formas e funcionar como uma impressão digital do que está a acontecer naquele momento, em diferentes partes do mundo..Foi isso que tentou fazer no seu programa de televisão, Clube Atlas, que o levou a visitar diversas cidades do mundo, em busca dessa vitalidade musical mais subterrânea? Sim, fui a oito cidades, nas quais fiquei a conhecer muitos artistas e onde vivi uma série de experiências, pessoais e artísticas. Comi coisas diferentes, fui a festas, conheci a noite dessas cidades e isso permitiu-me criar um paralelismo entre essas cidades e o que também acontece em Lisboa..Também é isso que o move enquanto artista, essa possibilidade de estar constantemente a conhecer coisas novas? E como é que isso se traduz depois na sua música? É só isso que me move enquanto artista, nem sequer há espaço para um também. O objetivo disto tudo é conseguir criar algo que tenha tanto de inovador como de relevante, em termos sociais, que faça as pessoas divertirem-se, mas também pensar. Nesse sentido, o que retiro dessas experiências todas são mais elementos para acrescentar a essa equação mental constante em mim, que tem que ver com essa busca pelo que é novo e diferente..Essa também é a função de um artista, fazer as pessoas pensarem? Creio que isso faz parte do statement de um artista. De uma forma ou de outra, os artistas estão constantemente a venderem-se, seja através do estilo de vida ou da postura perante determinados assuntos ou simplesmente pela forma como se vestem. Há sempre alguém a ouvir-nos, a ver-nos e a conectar-se connosco das mais diversas formas. Aplicando isto ao que faço, o mais importante é manter a ideia de que a minha música começa e acaba em Lisboa, apesar de todas as outras cidades que existem lá pelo meio. Sou de uma geração para a qual isto parecia impossível, porque cresci com uma série de bandas que só queria ser igual ao que se fazia lá fora. E isso acabou por se tornar uma espécie de missão de vida para mim, mostrar às pessoas que existe um caminho e que as boas ideias e a criatividade são armas para chegar longe, mesmo vindo de um país como Portugal..Ainda existe esse estigma? Felizmente, é uma realidade cada vez mais distante, a desse Portugal afastado do mundo, mas na minha geração ainda existe um pouco essa ideia, de que nós estamos aqui em baixo e o resto do mundo está lá em cima..Quando os Buraka começaram também quase havia essa diferença entre a Amadora e Lisboa, concorda? Sim (risos), era a chamada fronteira dos Cabos de Ávila. Na verdade isso não estava muito presente na nossa mente, porque a comunidade artística em Lisboa, que na altura fazia música eletrónica, não era assim tão grande e movimentava-se toda mais ou menos no mesmo circuito, pelo que nunca tivemos grande dificuldade em chegar ao centro da cidade. O que era mais complicado era olhar para tudo isso com perspetiva e ver um só organismo, mais amplo do que o centro da cidade e as respetivas periferias. Difícil era chegar a Coachella, em 2010, e ter de passar meia hora a explicar onde era Portugal, quando nos perguntavam de onde éramos. Essa foi uma realidade que foi mudando com o tempo e foi muito interessante vivê-la na estrada, com os Buraka. E sinto que a música, decorrente da própria personalidade da cidade de Lisboa, foi muito importante para essa mudança, relativamente a Portugal..Considera que a sua música é identificável como portuguesa? A minha música não sei, mas o meu contexto e a minha narrativa, sim. Quem me segue, sabe de onde sou e para onde me direciono. Sinto, sim, que faço parte de um contingente de música, não necessariamente só portuguesa, mas de um conjunto mais amplo de países que partilham a mesma cultura. E acredito que isso pode vir a dar resultados muito maiores no futuro, da mesma forma que a música latina o conseguiu..Qual foi o critério de escolha para os inúmeros artistas convidados que participam no disco? É meramente musical ou também tem que ver com as relações pessoais que vai criando? Não existe grande critério e nem sinto que as pessoas convidadas tenham de encaixar no que quer que seja. Parte do disco foi gravado enquanto andava em digressão e as coisas foram simplesmente acontecendo. Desde contactos feitos pela internet a viagens feitas de propósito para gravar com alguém, aconteceu um pouco de tudo. Por exemplo, há uma cantora colombiana, a Catalina García, que participa num tema chamado Água com Sal, que conheci porque ela fez uma história no Instagram a dançar uma música minha. Não fazia ideia de quem era, fui investigar e acabei por convidá-la para participar neste disco. Depois há pessoas como o Pierre Kwenders ou o Sango, de quem sou amigo há algum tempo e com quem me identifico muito, em termos de narrativa e de carreira, que fazem todo o sentido aqui..Entretanto, vai também apresentar o disco em teatros, o que não é muito comum para este estilo de música. Sim, tem que ver com o que falava há pouco, de contrariar a ideia da música eletrónica como algo que se ouve só em clubes, a altas horas da noite. E ao contrariar isso, fui-me descobrindo cada vez mais, enquanto artista, porque comecei a necessitar de ter uma maior disponibilidade do público para me ouvir e não apenas para estar a dançar ao som da minha música..De que forma é que isso aconteceu? Percebi que consigo comunicar melhor se for colocado num palco, como num concerto normal, de uma banda ou de um músico. Ou seja, tenho o controlo do áudio e do vídeo e tento ter sempre alguns convidados vocais que vêm ainda enriquecer mais toda a experiência. Há uma série de informações na música e na componente visual dos meus espetáculos, que se tornam muito mais interessantes se as pessoas estiverem mais predispostas para estar atentas para elas. E para isso acontecer tive a necessidade de criar algo diferente, que foi tentar fazer, como DJ e produtor, o circuito dos teatros. Estamos a tentar convencer essas salas de que é possível ter uma atuação do Branko, DJ, às nove e meia da noite. Já temos algumas datas marcadas e estamos a correr atrás de muitas mais, porque me interessa essa ideia de explorar um caminho novo, na forma de comunicar com o público. No fundo, a grande transformação passa por começar a ver a música eletrónica como uma expressão cultural tão válida como qualquer outra, até porque é a forma mais simples de transpor todo um universo de tradições, ritmos e padrões para a atualidade. E não há nenhum outro género musical que o consiga fazer tão bem.