Foram cinco horas de debate parlamentar a fazer lembrar tempos não muito distantes, embora com a limitação de lugares (intervieram cem deputados, com os parlamentares num constante entra-e-sai) e já sem John Bercow como presidente da Câmara dos Comuns. Mas desta vez as vozes dissonantes dentro do Partido Conservador foram insuficientes, de momento, para impedir a aprovação em primeira instância da controversa Lei do mercado interno: 340 deputados deram o sim, 263 recusaram a proposta, não sem antes o primeiro-ministro Boris Johnson ver os seus argumentos desfeitos por Ed Miliband..Nos próximos quatro dias o Parlamento vai continuar a trabalhar o documento (que poderá receber emendas) antes de ir a uma última votação na Câmara dos Comuns e, por fim, ser discutida e votada na Câmara dos Lordes..O governo avisara que a legislação, chamada de Lei do mercado interno, é necessária para estabelecer regras comerciais entre o Reino Unido e a UE se os dois lados não chegarem a um acordo até ao final do ano..Na semana passada, no Parlamento, Boris Johnson chamou ao projeto de lei uma "rede de segurança legal para proteger o país contra interpretações extremas ou irracionais do protocolo que poderiam levar a uma fronteira no mar da Irlanda"..A tensão aumentou dias depois, com Johnson a causar fortes reações na oposição e em várias capitais europeias ao afirmar que há na UE quem queira impedir a venda de produtos alimentares e agrícolas da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte..Na segunda-feira voltou ao tom dramático ao lançar o debate e defender a aprovação da lei. "Agora que saímos da UE precisamos que a nossa lei garanta a integridade política e económica do Reino Unido. Lamento ter de dizer à Câmara que nos últimos meses a UE tem sugerido que está pronta a ir até ao extremo e irrazoável da utilização do Protocolo da Irlanda do Norte de uma forma que vai muito além do razoável, simplesmente para exercer influência contra o Reino Unido nas nossas negociações para um acordo de comércio livre", afirmou.."Para tomar o exemplo mais gritante, a UE disse que se não conseguirmos chegar a um acordo a contento deles, poderão muito bem recusar-se a listar os produtos alimentares e agrícolas do Reino Unido à venda em qualquer parte da UE. E ainda fica pior. Porque ao abrigo do Protocolo isto cria uma proibição imediata e automática da transferência dos nossos produtos animais da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte.".Para o primeiro-ministro conservador esta é "uma ameaça extraordinária" que "nenhum primeiro-ministro britânico, nenhum governo, nenhum parlamento pode aceitar tal imposição".."Por muito absurda e autodestrutiva que essa ação fosse, mesmo quando debatemos este assunto, a UE ainda não tirou este revólver da mesa. Continuo a esperar que o façam. E que possamos também chegar a um acordo de comércio livre semelhante ao do Canadá", continuou, não sem antes rotular de "ameaça tão extraordinária, e parece tão incrível que a UE possa fazê-lo" que a lei serve para o governo se reservar ao direito de contra-atacar. "Porque receio que estas ameaças revelem o espírito com que alguns dos nossos amigos estão atualmente dispostos a conduzir estas negociações.".Depois o ex-correspondente em Bruxelas declarou que se as ameaças se concretizarem as tarifas no mar da Irlanda poderiam subir, por exemplo, 90% na carne escocesa. "Isto não é razoável, estão a ameaçar dividir a nossa terra. Assinámos o acordo na crença que a UE seria razoável. Eles não podem acreditar que têm o poder de desmembrar o nosso país.".A legislação proposta no Parlamento poderá desfazer as medidas de salvaguarda previamente acordadas pelo Reino Unido e pela UE para salvaguardar a paz na Irlanda do Norte. O projeto de lei permitirá ao Reino Unido renunciar aos procedimentos de fiscalização e documentação das mercadorias enviadas através do mar da Irlanda a partir da Irlanda do Norte para outras partes do Reino Unido. Permitirá também que o Reino Unido estabeleça as suas próprias regras para a concessão de auxílios estatais específicos a setores económicos na Irlanda do Norte, o que irá minar as exigências europeias de "igualdade de condições de concorrência"..A questão de como gerir a fronteira entre a República da Irlanda, que permanecerá na União Europeia, e a Irlanda do Norte, fora da União Europeia juntamente com o resto do Reino Unido, é uma das mais complexas na saga do Brexit..A Lei do mercado interno tem como finalidade assegurar que Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte não estejam limitados por regulamentos determinados por cada governo descentralizado..Visa também garantir que a comunidade internacional tenha acesso ao Reino Unido como um todo, sabendo que as normas e regras são as mesmas em todo o país..O projeto de lei quer criar regras comuns que se aplicam em todo o Reino Unido, substituindo na prática o papel da UE como árbitro das políticas comerciais..O projeto de lei propõe a consagração do "reconhecimento mútuo e a não-discriminação". O reconhecimento mútuo é definido no projeto de lei como assegurando que quaisquer bens e serviços que possam ser vendidos ou utilizados numa parte do Reino Unido possam também estar noutra parte do Reino Unido, com algumas exceções para a Irlanda do Norte..As leis de não discriminação tornariam ilegal para qualquer dos governos das quatro nações a introdução de regras ou regulamentos que favorecessem bens ou serviços numa parte do Reino Unido em detrimento de outra..No entanto, o projeto de lei violaria o Acordo de Retirada e em consequência o direito internacional, uma vez que estipula que os ministros poderiam ter o poder de "não aplicar" as regras previamente acordadas relativas à circulação de mercadorias, incluindo qualquer outra ao abrigo do protocolo da Irlanda do Norte..Diz também que os ministros podem prestar assistência financeira a qualquer pessoa ou empresa, o que significa que se sobrepõe às regras de ajuda estatal estabelecidas no Acordo de Retirada..Portanto, e como o ministro para a Irlanda do Norte, Brandon Lewis, admitiu, "isto viola o direito internacional", mas disse que era apenas de "uma forma muito específica e limitada"..Ele explicou que o projeto de lei se sobreporia essencialmente a uma parte essencial do acordo de retirada, o artigo 4, que tem precedência sobre o direito britânico..O protocolo da Irlanda do Norte é um anexo do Acordo de Retirada que tem como objetivo evitar a introdução de uma fronteira rígida na ilha da Irlanda no caso de um Brexit sem acordo..Afirma que a Irlanda do Norte continuará a fazer parte do território aduaneiro do Reino Unido, pelo que se o Reino Unido assinar um acordo de comércio livre com outro país, os bens da Irlanda do Norte serão incluídos..No entanto, a Irlanda do Norte terá de se ater a algumas regras da UE para permitir que as mercadorias circulem livremente na República da Irlanda..As mercadorias que se deslocam do resto do Reino Unido para a Irlanda do Norte não estarão sujeitas a uma tarifa, a menos que estejam "em risco" de serem posteriormente transportadas para a UE..As mercadorias provenientes da Irlanda do Norte para a Grã-Bretanha podem ter acesso "sem restrições", de acordo com a Lei do mercado interno..Isto significa que as mercadorias vendidas na Irlanda do Norte serão aceites em toda a parte no Reino Unido, mas o inverso pode não ser verdade..Pode ainda levar a um aumento dos controlos na fronteira com a República da Irlanda, o que o Reino Unido e a UE anteriormente acordaram que não poderia acontecer..Boris Johnson falou, sentou-se e nos minutos seguintes ficou a olhar para o chão, sem esconder estar agastado, ao ouvir Ed Miliband, que substituiu o líder da oposição Keir Starmer (em quarentena)..O antigo líder dos trabalhistas demoliu os argumentos de Boris Johnson um a um. "Nunca pensei que o direito internacional fosse matéria de debate. Será correto ameaçar infringir a lei da forma como o governo propõe, é necessário fazê-lo e será que ajudará o nosso país? A resposta a cada uma destas perguntas é não", afirmou Miliband.."O país que é conhecido por ser a mãe de todos os parlamentos, o país que é conhecido pelo estado de direito... A nossa reputação global de criar regras e não quebrar regras é uma das razões por que somos tão respeitados em todo o mundo. Isto não é um argumento sobre permanecer [na UE] versus sair, é um argumento sobre o certo versus o errado", prosseguiu..Enquanto Miliband dizia que o primeiro-ministro está "a destruir a reputação deste país e a destruir a reputação do seu gabinete" ao deixar o legado do Reino Unido "gravemente atingido", Boris, abanava a cabeça. ".Por fim, Miliband recordou que nos últimos dias Downing Street apresentou uma diversidade de argumentos para aprovar esta lei, mas escolheu e rebateu cinco. O primeiro é o dos bloqueios de produtos. "É o argumento mais ridículo, mesmo para os padrões do primeiro-ministro. Estou certo que conhece os pormenores, vá diga-nos que cláusula protege a ameaça que diz estar preocupado com as exportações da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte, eu passo-lhe a palavra", desafiou o trabalhista..Twittertwitter1305546881272029188.Johnson volta a menear-se e a vice-presidente da Câmara Eleanor Laing intervém, lembrando que só poderia passar a palavra a quem a pedir, enquanto os deputados da oposição não deixaram de reagir a esta aparente humilhação de Johnson..Miliband não para e espeta mais uma farpa: "Aí está, não leu o protocolo, não leu a proposta de lei, não conhece a sua posição.".O segundo argumento usado pelo governo é o de proteger o Acordo de Sexta-feira Santa, algo que os antigos líderes John Major e Tony Blair criticaram em artigo conjunto assinado no The Times com o título "Johnson deve deixar cair a vergonhosa lei do Brexit sem acordo ou ser obrigado a fazê-lo pelos deputados"..Outro argumento, foi o de que o acordo de retirada, "o seu porta-estandarte", o "seu triunfo" e um acordo "pronto a ir ao forno" é "agora contraditório e ambíguo". "Que incompetência, que fracasso de governação!".Twittertwitter1305552766019006469.Ed Miliband prosseguiu, ao dizer que o quarto argumento era o do alarme de fogo: "Não queremos fazê-lo, mas podemos fazê-lo. Aprovar esta lei é em si uma ilegalidade, vamos dar ao governo o poder de fazer uma ilegalidade", advertiu. E por fim não deixou passar em claro a admissão do governo de que a lei "quebra a lei de forma limitada e especifica". Para o trabalhista, "é uma nova forma de pensar as questões do direito: havia a autodefesa, a defesa dos inocentes, a defesa do álibi e agora há a defesa de Johnson. Pode-se infringir a lei de forma limitada e específica."."O primeiro-ministro disse que quer trazer união ao país. Dou-lhe os parabéns, uniu os cinco predecessores", disse em referência às críticas ou advertências dos antigos chefes de governo britânicos vivos..A antecessora de Johnson, Theresa May, inquiriu na Câmara dos Comuns: "Como pode o governo assegurar aos futuros parceiros internacionais que se pode confiar no Reino Unido para cumprir as obrigações legais dos acordos que assina?"..Um segundo ex-primeiro-ministro do partido de Johnson, John Major, sugeriu que o Reino Unido estava a vender barato a sua confiança duramente conquistada. "A nossa assinatura de qualquer Tratado ou Acordo tem sido sagrada", disse Major numa declaração. "Se perdermos a nossa reputação de honrar as promessas que fazemos, teremos perdido algo que ultrapassa o custo e que poderá nunca mais ser recuperado"..Como referido, Major e outro ex-primeiro-ministro, Tony Blair, assinaram um artigo conjunto a demolir o projeto de lei. Gordon Brown disse que a legislação seria uma forma de o país causar dano a si próprio e, por fim, David Cameron afirmou ter "graves apreensões" sobre a proposta de Boris Johnson..O chefe do departamento jurídico do governo, Jonathan Jones, demitiu-se do seu cargo na terça-feira, alegadamente devido a preocupações com a legislação..O enviado especial do primeiro-ministro para a Liberdade de Religião ou Crença, o deputado conservador Rehman Chishti, também se demitiu. "Sempre agi de uma forma que respeita o Estado de direito. Votar a favor desta proposta de lei na sua atual formulação seria contrário aos valores que mais prezo.".O ex-procurador-geral Geoffrey Cox lamentou que o chefe do governo tenha causado danos "inconcebíveis" à reputação internacional do Reino Unido e disse ter suspendido o seu apoio ao projeto de lei na sua forma atual..O também deputado conservador Tobias Ellwood, questionou: "Como podemos olhar nos olhos países como a China e queixar-nos de que violam as obrigações internacionais sobre Hong Kong ou a Rússia com tratados de mísseis balísticos ou mesmo o Irão sobre o acordo nuclear se enveredarmos por este caminho?"."Muito preocupada com os anúncios do governo britânico sobre as suas intenções de violar o Acordo de Retirada", escreveu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no Twitter. "Isto iria violar o direito internacional e prejudicar a confiança"..Outros funcionários europeus confessaram não ter a certeza de como interpretar o que estava a acontecer.."Sabem, os britânicos e Boris Johnson em particular estão sempre numa estratégia de bluff. Devemos permanecer calmos, mas precisamos de estar preparados", disse o ministro francês do Comércio Franck Riester à rádio BFM Business. "Porque, em caso de não haver acordo, temos de estar absolutamente preparados para as consequências, que serão difíceis".