Sábado à noite. Uma carrinha de distribuição de pizas, armadilhada com explosivos, explodiu em Londonderry, zona fronteiriça entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (Estado membro da UE). A polícia foi avisada minutos depois de a viatura ter sido abandonada numa rua da cidade com o mesmo nome e fez detonar o veículo-bomba a tempo. Embora as câmaras de videovigilância tenham captado imagens de um grupo de jovens a passar junto à carrinha pouco tempo antes, não houve registo de quaisquer vítimas relacionadas com o incidente..Domingo à noite. Autoridades anunciaram a detenção de quatro homens, entre os 32 e os 42 anos. São suspeitos de pertencer ao IRA Verdadeiro, uma dissidência do Exército Republicano Irlandês (IRA), que não aceita o Acordo de Sexta-Feira Santa, assinado a 10 de abril de 1998 pelos governos britânicos e irlandês, pondo fim a décadas de conflito sangrento entre republicanos (que defendem a unificação da ilha da Irlanda) e unionistas (que defendem a união ao Reino Unido). O balanço desse conflito, cujas feridas têm vindo a sarar de forma muito lenta, é de mais de 3500 mortos..Segunda-feira à tarde. Ministra do governo britânico para a Irlanda do Norte, Karen Bradley, garantiu que não existe uma relação entre esta carrinha-bomba e os sucessivos alertas que têm sido feitos no sentido de que o Brexit pode ter um impacto negativo no processo de paz da Irlanda do Norte, reavivando tensões ou, em última análise, reacendendo o conflito. "Ninguém deve tentar estabelecer uma ligação entre o que aconteceu no sábado à noite e as discussões em curso entre nós e entre nós e os nossos amigos na Europa", declarou a ministra de May, no Parlamento, no recomeço do debate sobre o Brexit. "São complôs e atividades que estas pessoas estão a tentar levar adiante há muitos anos e é preciso deixar bastante claro que este tipo de atividades não são bem-vindas e que isto não tem absolutamente nada que ver com o Brexit.".Apesar destas garantias deixadas em Westminster pela ministra de Theresa May, há quem refira que esta carrinha de pizas armadilhada serve para lembrar o quão delicada é a paz nesta região. Até porque foi precisamente a questão da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda no pós-Brexit que levou ao chumbo do acordo do Brexit no dia 15. Numa derrota histórica para May, deputados rebeldes conservadores aliaram-se à oposição contra o backstop, ponto do acordo relativo a um mecanismo de salvaguarda que pretende impedir o regresso de uma fronteira entre as duas Irlandas depois de o Reino Unido sair da União Europeia, conforme decidiu no referendo de 23 de junho de 2016, por 52% dos votos contra 48%..Apesar de tudo, na Irlanda do Norte, 56% dos eleitores votaram pelo ficar na UE, tendo o valor em Londonderry sido de 78%. Esta cidade é um símbolo maior das divisões passadas - e ainda latentes - entre republicanos católicos e unionistas protestantes. Ou seja, os primeiros chamam-lhe Derry, os segundos Londonderry. Foi aqui que aconteceu o Domingo Sangrento (imortalizado na música Sunday Bloody Sunday dos U2) a 30 de janeiro de 1972. Nesse incidente, 14 civis foram mortos pelas tropas britânicas e 13 outras pessoas sofreram ferimentos. Foi neste sítio que, em 2016, duas semanas antes do referendo, dois ex-primeiro-ministros do Reino Unido, Tony Blair (trabalhista) e John Major (conservador), atravessaram a chamada Ponte da Paz sobre o rio Foyle a defender a permanência na UE.."Ninguém quer o regresso da violência". "Ninguém quer o regresso da violência e isto é apenas um lembrete de que o processo de paz é frágil. O Brexit tem causado muitas divisões a nível político mas todos aqui continuam empenhados em não deixar o relógio voltar para trás, para os dias negros do nosso passado", disse Brenda Stevenson, uma terapeuta da fala de Londonderry, de 51 anos, citada pela Bloomberg.."Os últimos dois anos foram muito difíceis por causa da incerteza trazida pelo Brexit. A bomba de sábado vem mostrar-nos que ainda existem riscos em relação ao nosso processo de paz", afirmou, à mesma agência noticiosa internacional, Maeve Connolly, um professor de 50 anos, garantindo que os que puseram a bomba "não têm respeito pela vida humana" e "não falam de certeza em nome de toda a população de Derry".."Não devemos tentar arranjar explicações para ações diabólicas", declarou, por seu lado, à Bloomberg, Jeffrey Donaldson, do Partido Unionista Democrático (DUP), sublinhando que não "qualquer justificação política" para estes atos. O DUP, partido unionista da Irlanda do Norte, liderado por Arlene Foster, também votou contra o acordo do Brexit de May no dia 15, por não concordar com o ponto do backstop e querer que a primeira-ministra arranje outra formulação - em conjunto com a UE - para resolver a questão da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Como o Partido Conservador não tem maioria no Parlamento britânico, May depende, em muito, do apoio dos deputados do DUP para aprovar um novo acordo sobre o Brexit - se e quando conseguir chegar a algum consenso sobre um plano B. 29 de janeiro é a próxima data-chave, mas também já se fala em 26 de fevereiro, o que seria o limite dos limites, tendo em conta que o Brexit é a 29 de março..Numa entrevista recente ao DN, o professor Colin Harvey, da Queen's University de Belfast, na Irlanda do Norte, referiu: "Depende do que vai acontecer a seguir. Mas um cenário de Brexit sem acordo é um desastre para a Irlanda do Norte. Há muita ansiedade, uma preocupação tremenda nesta sociedade, relativamente a um cenário de Brexit sem acordo. Todos esperam que não estejamos aí dentro de alguns meses. Um cenário sem acordo será um desastre, e não apenas a nível comercial, terá impacto nas relações entre as pessoas. Esta ilha habituou-se à invisibilidade daquela fronteira. O ressurgimento de uma fronteira física na ilha da Irlanda seria uma tragédia e uma coisa imperdoável no contexto da atual discussão. Por isso é muito importante que este protocolo seja aceite. Os que querem criar a ideia de que uma saída sem acordo não teria qualquer problema estão a agir de forma muito irresponsável. Uma saída desordenada teria um grande impacto na ilha da Irlanda.".Irlanda do Norte está há dois anos sem governo. Muita gente pode não ter dado por isso, mas a Irlanda do Norte está, há dois anos, sem governo autónomo. O executivo anterior colapsou em janeiro de 2017, depois de Martin McGuinness, vice-primeiro-ministro, se ter demitido. Devido às circunstâncias históricas, unionistas e republicanos têm de liderar em conjunto o governo da Irlanda do Norte. Desde 2007, o DUP é o maior partido unionista e o Sinn Féin, o maior partido republicano..Sempre com mais votos, o DUP tem tido direito ao cargo de primeiro-ministro, o Sinn Féin tem ficado com o cargo de vice-primeiro-ministro, mas, na prática, sublinha o jornal Independent, ambos os gabinetes têm o mesmo poder e só podem existir se se apoiarem de forma mútua. Assim foi, até 2016, quando um escândalo levou à queda do governo autónomo..Em causa esteve o chamado escândalo "dinheiro por cinzas" a partir do programa Renewable Heat Initiative, destinado a subsidiar o uso de sistemas de aquecimento a partir de energias renováveis ou biomassa. Abusos cometidos a pretexto deste programa lesaram os cofres públicos em 400 milhões de libras, ou seja, cerca de 460 milhões de euros..O escândalo levou McGuinness a demitir-se perante a recusa da então primeira-ministra, Arlene Foster, em sair do poder e abrir caminho a uma investigação independente sobre o que se tinha andado a passar. "O Sinn Féin não irá tolerar a arrogância de Arlene Foster e do Partido Democrático do Ulster", afirmou, na altura, McGuinness..Depois disto, o Sinn Féin, partido que recusa ocupar os seus lugares de deputado no Parlamento do Reino Unido, anunciou que não iria substituir McGuinness no cargo de vice-primeiro-ministro e o executivo colapsou. McGuinness, que era natural de Derry, morreu entretanto, a 21 de março de 2017, aos 66 anos..Houve depois eleições antecipadas na Irlanda do Norte e, de novo, DUP e Sinn Féin foram os partidos mais votados. Mas com uma diferença de apenas mil votos entre um e outro. E pela primeira vez o DUP perdeu a maioria absoluta no Parlamento de Stormont. Passadas as três semanas para chegar a um acordo, sem acordo nenhum acontecer, o então ministro para a Irlanda do Norte, James Brokenshire, decidiu não convocar novas eleições..Brokenshire foi substituído, em janeiro de 2018, por Karen Bradley. Esta tem tentado, sem êxito, um diálogo entre o DUP e o Sinn Féin. À falta de entendimento, as opções não são muitas: ou Londres chama a si o total controlo total e direto da província da Irlanda do Norte ou convoca novas eleições. Risco: o de o Brexit ser o principal ponto da campanha. Até porque o Sinn Féin tem defendido a realização de um referendo sobre a unidade irlandesa (hipótese que apesar de contemplada no Acordo de Sexta-Feira Santa nunca foi usada). .Backstop, solução, problema ou outro?. Depois de, no dia 15, o Parlamento britânico ter chumbado o acordo do Brexit de May por causa do protocolo relativo ao backstop, são muitas as alternativas que têm sido faladas. "Se a Irlanda desse um sinal à UE sobre a alteração do acordo com o Reino Unido no que diz respeito às disposições sobre o backstop, de modo a ser aplicado apenas temporariamente - digamos cinco anos - a questão ficaria resolvida", declarou nesta segunda-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Jacek Czaputowicz, ao jornal Rzeczpospolita..Considerando que um cenário de Brexit sem acordo seria "um verdadeiro dilema" para a República da Irlanda, o primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, afirmou nesta terça-feira: "Tanto o Reino Unido como a Irlanda teriam a obrigação de honrar o Acordo de Sexta-Feira Santa, proteger o processo de paz e honrar o compromisso para com os povos da Irlanda e da Irlanda do Norte, no sentido de que não haverá uma fronteira física", afirmou o chefe do Estado irlandês, dias depois de o governo de May ter desmentido notícias sobre a intenção de o Reino Unido procurar chegar a um acordo bilateral com a Irlanda para ultrapassar o impasse do Brexit..Apesar de sempre ter dito que não aceitaria, sob forma alguma, uma hard border entre as duas Irlandas, de ter contado com o apoio da UE, declarado e reiterado por líderes como o presidente francês Emmanuel Macron, o primeiro-ministro Varadkar está sob crescente pressão para tentar, também ele, encontrar uma solução.."Se nos comprometemos com o não regresso de uma fronteira física em caso de um Brexit sem acordo, então será muito bem-vinda - da parte dos nossos cidadãos também - uma explicação sobre como é que isso vai ser possível e o que é que vamos fazer sobre isso", declarou Lisa Chambers, porta-voz do Fianna Fáil, principal partido da oposição na Irlanda.."Do ponto de vista do mundo dos negócios, o mais importante é o tempo, então se chegarmos a um caso de Brexit sem acordo, precisamos de uma transição. Podem ser encontrados mecanismos para manter o statu quo durante um certo período de tempo", declarou Fergal O'Brien, da Irish Business and Employers Confederation (IBEC).."Olhando de forma objetiva, tenho a impressão de que o backstop não é a questão central. Ultimamente, o debate no Reino Unido é sobre a forma que o Reino Unido vai ter no futuro. Acredito que poderemos ultrapassar as várias dificuldades e discutir essa questão em conjunto", declarou o negociador chefe da UE para o Brexit, Michel Barnier, em entrevista publicada nesta quarta-feira no Luxemburger Wort..Barnier avisa que voto contra no deal Brexit não impedirá o no deal Brexit. Apesar de Theresa May ter pedido diálogo a todos os partidos, incluindo o Labour, o líder dos trabalhistas, Jeremy Corbyn, afirmou que só falaria com a primeira-ministra conservadora se ela tirasse de cima da mesa a opção de um no deal Brexit, ou seja, uma saída desordenada do Reino Unido da UE, não enquadrada por qualquer acordo, a 29 de março. May fez saber que tal compromisso não é possível..Entretanto, no decorrer dos debates no Parlamento britânico, cresce o apoio do Labour à emenda da deputada trabalhista Yvette Cooper. Esta, a ser votada na próxima terça-feira, dia 29, abre caminho a mandatar os ministros para pedir uma extensão do artigo 50.º do Tratado de Lisboa (que regula a saída de um país da UE) na iminência de haver um Brexit sem acordo. Vários países, incluindo Portugal, estão a preparar-se para este cenário com planos de contingência..Falando em Bruxelas, o negociador chefe da UE para o Brexit deixou o seguinte aviso aos deputados britânicos: "Parece haver agora uma maioria nos comuns para travar um no deal [Brexit], mas a oposição a um no deal não impede que um no deal aconteça no final de março. Para conseguir impedir um no deal, é preciso que apareça uma maioria positiva para encontrar uma solução" alternativa..No mesmo dia, o líder dos eurocéticos conservadores, Jacob Rees-Mogg, também líder do think tank European Research Policy, sugeriu que, no limite, Theresa May feche o Parlamento, temporariamente, se for necessário, no sentido de impedir os deputados de votar qualquer legislação que impeça um no deal Brexit. No entender do homem que em dezembro apresentou - e perdeu - uma moção de desconfiança interna contra a líder conservadora, uma saída do Reino Unido da UE sem acordo é a melhor opção..E, segundo a Press Association, a Comissão Europeia adotou duas propostas legislativas para suavizar o impacto de um eventual no deal Brexit no setor das pescas. As propostas, citadas pelo The Guardian, preveem compensações para os pescadores e operadores que forem afetados em caso de o acesso às águas do Reino Unido ser, subitamente, vedado a embarcações da União Europeia. Ainda segundo a mesma fonte, Bruxelas prepara-se para propor a Londres o acesso dos seus barcos a águas europeias até final de 2019, com a condição de que o Reino Unido faça o mesmo em relação às embarcações da UE..Isto depois de o The Guardian, precisamente, ter citado o vice-presidente do Comité National des Pêches Maritimes et des Élevages Marins, Olivier Leprête, a dizer: "Se formos sacrificados pelo Brexit, então não temos nada a perder. Vamos livrar-nos de todos os navios de bandeira britânica, independentemente de quem seja o seu dono. Os oportunistas terão pouca sorte." E ainda: "Nem um único quilo de pescado britânico entrará na Europa.".Sturgeon volta à carga com novo referendo escocês. Depois de se reunir nesta quarta-feira em Downing Street com Theresa May, a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, disse que a melhor opção é a chefe do governo britânico pedir uma extensão do artigo 50.º e aceitar um segundo referendo sobre o Brexit..Mais tarde, já no debate no Parlamento, em Westminster, instada a desfazer dúvidas sobre um segundo referendo, sim, mas sobre a independência da Escócia, May retorquiu: "A última coisa que queremos é um segundo referendo. O Reino Unido devia estar unido, não dividido.".Sturgeon, do Partido Nacionalista Escocês (SNP), não gostou do que ouviu. "Theresa May teme perder um segundo referendo e claramente foge a sete pés do veredicto do povo escocês - o qual já está cansado de ouvir aquilo que a primeira-ministra quer. Francamente, o que a Escócia precisa vai muito para lá do que a primeira-ministra quer. Numa base diária, aquilo que o Brexit ilustra é um ponto fundamental - a Escócia precisa de assumir o poder de tomar as suas próprias decisões.".No referendo sobre a independência da Escócia em 2014 (autorizado pelo governo britânico), 55,3% dos eleitores votaram contra a independência, 44,7% a favor. No referendo do Brexit, a 23 de junho de 2016, 62% dos escoceses votaram a favor da permanência do Reino Unido na UE, 38% votaram contra..A desunião do Reino Unido está, cada vez mais, em realce."Uma coisa de que é preciso falar é qual será o impacto de tudo isto na moldura constitucional do Reino Unido em si. A Escócia não quer o acordo de May, não quer uma saída sem acordo, antes prefere uma união aduaneira de qualquer espécie. Qualquer novo acordo terá impacto ao longo dos próximos dez anos. A Escócia irá provavelmente fazer um novo referendo sobre a sua independência e há mesmo o risco de, desta vez, ela passar. Quando ouvimos os ingleses a falar, uns falam sobre a nação, outros sobre o país, mas não sabemos se estão a falar de Inglaterra, do Reino Unido...", declarou, em entrevista recente ao DN, Lee McGowan, professor da Universidade de Queen's, Belfast, na Irlanda do Norte.