Para a professora associada do departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e editora da Revista Religião & Sociedade, Christina Vital da Cunha, o presidente usa os bispos e os deputados do Congresso Nacional para chegar ao povo evangélico, mas não o conquistará se não entregar o que prometeu em campanha: emprego e segurança..Em entrevista ao DN, em 2016, disse que o próximo passo de aproximação ao poder dos evangélicos poderia ser pelo poder judicial. O presidente JairBolsonaro fala em nomear "um juiz do Supremo terrivelmente evangélico". Chegou a hora da ofensiva sobre esse poder? Desde o início da década que estamos a acompanhar o trabalho de frentes religiosas no Congresso Nacional. Eleição após eleição, a gramática pentecostal e carismática vem assumindo força. Em 2014, tivemos a primeira candidatura confessional evangélica para a presidência da República. Naquela ocasião, fizemos entrevistas, inclusivamente com o então candidato pastor Everaldo. Após uma pergunta baseada em observações que vínhamos realizando, ele verbalizou a importância dessa aproximação dos evangélicos ao Supremo Tribunal Federal [STF]. Qual é o problema disso? É claro que os juízes, todos eles, podem ter religião ou ser ateus, a questão é que não se pode pensar em cargos públicos para atendimento de interesses sectários, de um grupo económico, religioso ou qualquer outro. Em sentido amplo, os juízes são funcionários públicos. Não são empregados privados que estão lá para atender aos interesses exclusivos de uma companhia. Os deputados, por exemplo, podem representar as suas bases políticas, mas como funcionários públicos devem manter o interesse público e não de um segmento em detrimento do bem público, do direito de todos. É este o ponto que a confusão pública se esquece de ressaltar. A declaração sobre um juiz no STF que fosse "terrivelmente evangélico" é estratégica. Visa agradar aos líderes evangélicos no Congresso Nacional e às suas bases no Brasil, que são crescentes. Devemos entender isso como um aceno a uma base social e política, que não significa necessariamente o fomento à religião seja no executivo seja no judicial. A religião é um detalhe que visa movimentar as emoções das pessoas. A questão é que estamos a acompanhar estratégias de ampliação e manutenção do poder. Não de um projeto de Brasil que seja religioso, como se a defesa da fé fosse o ponto central. Nem de um projeto conservador. Não. Observadas minuciosamente as ações políticas do executivo até agora, podemos dizer que elas se dão em torno da garantia do poder que vem sendo exercido em termos patrimonialistas e nepotistas..O excesso de conservadorismo dos evangélicos é alvo constante de críticas. É um problema? Qual é o problema de ser conservador? Nenhum. Isso faz parte da democracia. Os dois maiores problemas nessa representação política atual são o extremismo e a política do "meu quinhão". O problema de líderes religiosos e de políticos extremistas é que eles agem de modo a conquistar os seus interesses a qualquer custo, por meios violentos, sejam morais ou patrimoniais e físicos, pelo bloqueio de pautas que não são do seu interesse e pela revisão de garantias jurídicas de grupos identificados como inimigos; o segundo problema é a política do "meu quinhão", que esbarra justamente no "esquecimento" de que são todos funcionários públicos. Ou seja, representação não é igual a trabalhar para atender aos interesses sectários, sejam eles quais forem, em detrimento do bem público. Então, o problema não é o conservadorismo em si, mas sim a perda da razoabilidade democrática. Novamente afirmo, o conservadorismo faz parte do jogo político, democrático. Mas talvez o que estejamos presenciando agora não seja isso. A roupagem conservadora talvez encubra ações despóticas e economicamente interessadas..A opinião de muita gente no Brasil, e talvez mais ainda em Portugal, sobre as igrejas evangélicas é negativa por causa do lado aparentemente charlatão dos seus líderes e da pauta intolerante que apregoam. Mas certamente há lados positivos, caso contrário não atrairiam tantos fiéis. Quais são eles? Não é à toa que as igrejas evangélicas crescem no Brasil e no mundo. Elas oferecem um tipo de acolhimento e de organização de vida muito importante, sobretudo em contextos em que há muita desigualdade, falta de confiança institucional, falta de confiança coletiva. O crescimento é vertiginoso, sobretudo em favelas e periferias no Brasil e noutros países da América Latina, de África e até de pessoas em condições mais precárias da Europa. As igrejas evangélicas fornecem conforto emocional - há quem pare de beber álcool e de usar drogas graças à sua orientação - e redes de informação que proporcionam, por exemplo, a entrada no mercado de trabalho, o que é muito importante para as camadas mais vulneráveis..Mas há quem use bem esse acolhimento e quem o use mal? Observa-se em grupos muito sérios de trabalho responsável algumas instituições que manipulam e que usam exageradamente esses convertidos, por exemplo ex-toxicodependentes, como mão-de-obra para se propagar socialmente. O objetivo é o fortalecimento institucional e para esse fortalecimento há quem tenha mais e menos limites. No Congresso Nacional há cerca de 18 denominações evangélicas representadas, existindo no Brasil mais de mil. Ora, essas denominações mais fortes vão além do discurso social e moral e entram na necessidade de fortalecimento institucional por meio da política eletiva..Naquela mesma entrevista de 2016 referia que os evangélicos aspiravam a ter um presidente. Concorda que, mesmo criado no catolicismo, Bolsonaro é um presidente "politicamente evangélico"?.Não. Ele apenas tenta manipular um eleitorado muito importante na sua eleição - através da defesa dos valores da família, da retidão de carácter, da moral ilibada, do combate à corrupção -, tendo em vista fortalecer o seu capital político, perpetuar-se no poder, criar um projeto patrimonialista. Por isso, ele não é "politicamente evangélico", apenas usa estratégias para envolver os evangélicos. Mas os evangélicos brasileiros, assim como toda a gente no mundo inteiro, estão sobretudo interessados na sua vida quotidiana e, como a eleição de Bolsonaro ainda não se traduziu em mais segurança nem em mais emprego como prometido, a popularidade dele cai vertiginosamente também entre evangélicos. Quando ele foi à Marcha por Jesus [evento evangélico que reuniu em São Paulo, em maio, dois milhões de pessoas], foi aplaudido mas também vaiado. Ele fortalece-se apenas num pequeno grupo de classe média, os bolsonaristas convictos em torno da sua retórica, enquanto na base social evangélica ele não se sustenta..Mas aproxima-se das lideranças evangélicas no Congresso e fora dele... O facto de ele ir à Marcha por Jesus e aos cultos resulta da necessidade se associar aos líderes evangélicos no Congresso, porque eles representam as suas bases parlamentares, mas isso não significa o apoio das bases sociais. No Congresso, os líderes evangélicos estão de mãos dadas com ele por interesses políticos, económicos e institucionais, com vista à manutenção, por exemplo, da isenção de impostos sobre as igrejas, uma vez que tramitava no Congresso um projeto para rever essa isenção. Aliás, com [o anterior presidente Michel] Temer eles garantiram maior investimento do governo federal e com Bolsonaro viram esses recursos ampliados.