Na terça-feira, dia 17, Jair Bolsonaro foi acusado de falsificação de documentos. Cinco dias antes, de partilhar informação sigilosa. Na véspera, de curandeirismo e charlatanismo. Dia 2, fora incluído num inquérito que apura fake news a propósito do voto eletrónico usado nas eleições. Só em agosto, portanto, o presidente da República do Brasil tornou-se suspeito de praticar quatro crimes na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado, no Supremo Tribunal Federal (STF), no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Contabilizadas, as investigações já ultrapassam as duas dezenas.."Não aceitarei intimidações: vou continuar exercendo o meu direito de cidadão, de liberdade de expressão, de criticar, de ouvir, e atender, acima de tudo, a vontade popular", reagiu Bolsonaro..Para a maioria dos observadores, o presidente da República sente-se escudado: em Augusto Aras, o procurador-geral da República (PGR) a quem o presidente já prometeu publicamente um cargo no STF; e em Arthur Lira, o dono da chave do cofre onde estão guardados os pedidos de impeachment, eleito presidente da Câmara dos Deputados em janeiro com o apoio do Planalto..Advogado especializado em direito público e professor universitário, Michael Mohallem concorda que "são muitas investigações, muitas suspeitas e muitos inquéritos, o que demonstra fragilidade do presidente".."No entanto, os crimes comuns, aqueles que continuarão a ser investigados mesmo que ele saia da presidência, vêm sendo bloqueados pelo PGR, aliado dele", continua. "E os de responsabilidade, aqueles que podem levar ao impeachment, bloqueados pelo presidente da Câmara dos Deputados, outro aliado dele".."Logo, se por um lado as suspeitas são um sinal de fraqueza perante a sociedade, é difícil que prosperem, a não ser claro que a conjuntura política mude - e ela muda", adverte o especialista..Contribuiu para o número expressivo de acusações, a CPI que, desde maio, apura eventuais crimes do governo no combate à pandemia. No início, a comissão centrou-se na desinformação e negligência do executivo, ao recusar adquirir vacinas, desacreditar as existentes, promover aglomerações, desestimular uso de máscaras e vender a ilusão do tratamento precoce da doença, à base de cloroquina, medicamento comprovadamente ineficaz contra a covid-19..Assim, o relatório final da CPI deverá indiciar Bolsonaro pelos crimes de "charlatanismo, prática de curandeirismo e divulgação de propaganda enganosa", disse Randolfe Rodrigues (Rede), vice-presidente da comissão. E senadores afirmam que ele incorre ainda no crime de "infração sanitária", pelo desrespeito ao distanciamento e o estímulo a aglomeração..Análise preliminar da área legislativa do Senado mostra também que o presidente pode ser enquadrado no crime de "epidemia", que prevê pena de reclusão de 10 a 15 anos a quem "propague germes patogénicos", sendo que a pena pode dobrar se o facto resultar em morte..Nos últimos dias, surgiu ainda o eventual indiciamento por "falsificação de documentos". Alexandre Marques, membro do Tribunal de Contas, disse que elaborou um parecer sobre suposta sobrenotificação do número de casos de covid-19 no país para posterior debate com os colegas. O parecer foi imediatamente rejeitado, por falta de provas. Porém, o funcionário já o havia encaminhado para o pai, que o partilhou com Bolsonaro, de quem é amigo. E o presidente referiu-se ao documento como se fosse oficial, enquanto na internet o rascunho era disseminado até com cabeçalho falso do Tribunal de Contas..A meio dos trabalhos da CPI surgiram também denúncias de corrupção na aquisição da vacina indiana Covaxin por 1,6 mil milhões de reais. Bolsonaro foi informado em reunião com o deputado Luís Miranda (DEM), cujo irmão trabalha no ministério da Saúde, mas não fez nada para pôr fim à ilegalidade. "Ele [Miranda] pediu uma audiência para conversar comigo sobre várias ações. Tenho reunião com mais de 100 pessoas por mês, dos mais variados assuntos. Eu não posso simplesmente, ao chegar qualquer coisa para mim, tomar providência", admitiu o presidente, incorrendo assim no crime de "prevaricação"..Esse crime já chegou ao STF, onde correm ainda mais quatro processos contra o presidente. Um deles busca identificar autores de notícias falsas contra juízes do próprio STF; outro, os membros da "quadrilha digital" por trás das manifestações a favor da ditadura militar, do ato de 1968 que permitiu tortura e censura no país e de uma intervenção armada. Bolsonaro e três dos seus filhos foram citados no inquérito..O presidente da República pode vir a ser acusado, por outro lado, de falsidade ideológica, coação, advocacia administrativa, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada, prevaricação, denunciação caluniosa e crime contra a honra se forem provadas as acusações de Sergio Moro, ex-ministro da Justiça, de que interferiu na polícia federal para proteger parentes e amigos..O mais recente dos inquéritos no STF, entretanto, é o de fuga de informação, em plena live semanal, de inquéritos sigilosos da polícia para averiguar invasão hacker a sistemas eletrónicos da justiça eleitoral..No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), aliás, estão mais duas investigações contra o chefe de estado: por disparos em massa de fake news via Whatsapp na campanha eleitoral de 2018 e por divulgação de mais notícias falsas sobre o voto eletrónico..Quase todas estas investigações no STF e no TSE foram pedidas pelos juízes Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, razão pela qual o presidente ameaçou pedir o impeachment de ambos..Além dos crimes listados na CPI, no STF e no TSE, o presidente da Câmara dos Deputados tem mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro por crimes de responsabilidade para apurar. Um deles, assinado por 46 organismos e associações, entre os quais 11 partidos da oposição, enumera 23 transgressões, incluindo "exposição do país ao perigo de guerra", por hostilizar países estrangeiros, incitação de militares à desobediência ou sabotagem à proteção dos direitos dos povos originários e ao meio ambiente..Bolsonaro viu ainda o seu nome ser citado em gravações de uma cunhada, a que reportagem do portal UOL teve acesso, no caso das "rachadinhas" - desvio do salário dos assessores para o próprio bolso. O esquema milionário atinge também o vereador Carlos Bolsonaro, segundo filho do presidente, mas sobretudo o primogénito, o senador Flávio Bolsonaro, denunciado por organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita. Segundo a investigação, Flávio lavava o dinheiro numa loja de chocolates, num esquema milionário que envolve a milícia, máfia do Rio de Janeiro, e a aquisição de um imóvel de luxo em Brasília..Além de Jair, Flávio, Carlos e Eduardo, também Jair Renan, o quarto filho, tem a justiça à perna num caso de suposto tráfico de influência e lavagem de dinheiro sob investigação da polícia federal..O caso que envolvia a primeira-dama Michelle Bolsonaro, que recebeu na sua conta dezenas de cheques de Fabrício Queiroz, o operacional das "rachadinhas" que esteve escondido em casa de Frederico Wassef, advogado de Bolsonaro, foi, entretanto, arquivado..Sobre estes pretensos crimes, o próprio Wassef disse ao jornal Folha de S. Paulo que "só há uma conclusão de todos esses inquéritos: o presidente é vítima". "A todo o momento criam crimes que não existem, a cada hora com personagens diferentes, a cada hora com histórias diferentes".