Com um cenário de perto de 2000 mortes diárias e hospitais à beira do colapso, Jair Bolsonaro e 19 dos 27 governadores estaduais do Brasil entraram em conflito aberto após o presidente da República tributar aos líderes estaduais a responsabilidade do caos no combate à pandemia e estes o acusarem de mentir, de matar e de desprezar o povo. A crise, defendem cientistas políticos, pode ser o gatilho para uma guerra civil estimulada pelo próprio Bolsonaro.."Bolsonaro traz a novidade à política do Brasil de querer entrar sempre em conflito com tudo e com todos mas ele, nas entrelinhas, parece ter um objetivo macabro: provocar uma guerra civil no país", diz ao DN Vinícius Vieira, professor da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação Armando Álvares Penteado.."No Brasil sempre tivemos uma dependência dos poderes regionais face ao poder nacional e vice-versa, num equilíbrio muito delicado, mas não me lembro de haver um precedente na história de uma rebelião de governadores estaduais tão alargada", continua o cientista político.."Não que uma guerra civil vá de certeza acontecer, não que seja algo organizado, mas se pararmos para pensar é uma conclusão inevitável: ele deseja armar a população, confia em poderes paralelos, como as milícias, e estimula a indisciplina dos escalões mais baixos da Polícia Militar, sendo que já houve até um motim no Ceará, no ano passado, que resultou num tiro contra o senador Cid Gomes", prossegue..As polícias militares são, por definição, "forças auxiliares e reserva do exército Brasileiro" que, desde o fim da ditadura militar e a constituição de 1988, estão subordinadas aos estados e não a Brasília.."E se a Polícia Militar passar para o comum do exército, os governadores perdem qualquer capacidade de resistir a um eventual levante do governo federal contra os seus direitos", sublinha o politólogo..Em janeiro, um mês antes da crise com os líderes estaduais, aliados do governo apresentaram no Congresso Nacional um projeto que restringe o poder de governadores sobre a Polícia Militar. O texto sugere que a nomeação do comandante saia de uma lista indicada pelos oficiais, prevê que a sua destituição por iniciativa do governador seja "justificada e por motivo relevante devidamente comprovado" e propõe uma estrutura hierárquica equivalente à das Forças Armadas. O deputado bolsonarista Capitão Augusto, líder da Bancada da Bala, constituída por defensores da flexibilização de posse de armas, é o relator do projeto..Vinícius Vieira destaca, além da Polícia Militar, as milícias como eventual suporte do presidente. "Talvez ele ambicione gerar, não algo organizado, longe disso, mas uma grande confusão, esticando a instabilidade gerada pela pandemia ao limite, para depois surgir como salvador da pátria, apoiado por Milícias, no sentido estrito e também no sentido de cidadãos comuns armados"..A propósito, Raul Jungmann, ex-ministro da Segurança Pública e da Defesa do governo Michel Temer, enviou uma carta ao Supremo Tribunal Federal (STF) ainda em janeiro afirmando que "a política armamentista do presidente Jair Bolsonaro pode gerar uma guerra civil no Brasil" e fazer com que o país "repita cenas como a da invasão do Capitólio norte-americano na eleição de 2022".."O armamento da população proposto - e já em andamento - atenta frontalmente contra o seu papel constitucional e é incontornável que façamos a defesa das nossas Forças Armadas. É inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para "a defesa da liberdade" evoca o terrível flagelo da guerra civil e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto", escreve o ex-ministro..Ainda segundo Jungmann, "ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo de serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão"..Fernando Abrucio, coordenador da área de Educação do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da Faculdade Getúlio Vargas, sublinha que "desde o início do governo, o presidente já havia pensado num novo tipo de federalismo"..O autor de Os Barões da Federação, obra sobre a relação entre o governo central e os governos estaduais no Brasil, afirma em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que "a partir da Constituição de 1988, passando pelos governos anteriores, vínhamos caminhando para um federalismo mais cooperativo". "Na cabeça do Bolsonaro, entretanto, o modelo sempre foi o da polarização e não o do compartilhamento (...) um modelo muito parecido com o do (ex-presidente norte-americano Donald) Trump, que parte de uma ideia de dar mais autonomia aos estados para, na verdade, desresponsabilizar o governo central"..Abrucio conclui, como Vinícius Vieira, que "o Brasil, desse jeito, vai para o modelo de guerra civil federativa"..Vieira regista ainda que, depois dos conflitos com o Congresso Nacional e o STF ao longo do primeiro ano e meio de mandato, Bolsonaro dava indicações de ter sossegado. "Mas quando ele parece estar a acomodar-se ao sistema, sempre volta a gerar conflitos com esse sistema, sendo esta questão com os governadores o último episódio".."A chave para derrubar Bolsonaro", defende o académico, "estaria na perda do apoio do exército mas o exército surpreendentemente parece que se rendeu ao lado corporativista, esquecendo-se de que na história sempre protegeu não o governante mas a nação, que está a morrer na pandemia"..O essencial do conflito entre Bolsonaro e os governadores começou a 28 de fevereiro quando o STF determinou que fosse o ministério da saúde, liderado pelo criticado general Eduardo Pazuello, a financiar os leitos nas emergências dos hospitais. A juíza Rosa Weber acolhera pedido nesse sentido feito pelos governadores do Maranhão (o comunista Flávio Dino, apontado como presidenciável em 2022), da Bahia (Rui Costa, do PT, especulado como alternativa a Fernando Haddad na corrida do próximo ano) e de São Paulo, (João Doria, do PSDB, de centro-direita, visto já como pré-candidato), todos opositores de Bolsonaro..Em resposta, as redes sociais do presidente publicaram uma lista das transferências financeiras efetuadas pelo governo federal aos governos estaduais em 2020 - a intenção era demonstrar que já havia passado verbas suficientes para que fossem os estados a arcar com os custos..Numa carta em que falam em informações distorcidas, de números falseados e de interpretações erradas, 19 líderes estaduais responderam que "no meio de uma pandemia de proporção talvez inédita na história, agravada por uma contundente crise económica e social, o Governo Federal parece priorizar a criação de confrontos, a construção de imagens maniqueístas e o enfraquecimento da cooperação federativa essencial aos interesses da população"..Segundo o jornal O Globo quem redigiu o texto foi Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul que disputa, dentro do PSDB, a nomeação como candidato à presidência com João Doria. O mesmo Leite que, para se distinguir de Doria, havia elogiado o presidente em entrevista recente ao jornal Folha de S. Paulo considerando que o seu partido "não deveria fazer oposição sistemática a Bolsonaro", acrescentou ainda à carta que "o presidente está a usar uma mentira absurda".."Não adianta evocar Deus e colocá-lo acima de todos, porque Deus coloca a vida em primeiro lugar. Então se é para obedecer mandamentos divinos, lembre-se que está entre os mandamentos não matar, e um líder na sua posição, que despreza os cuidados sanitários e despreza a sua gente, buscando algum proveito político ou desfazer-se de algum prejuízo que possam causar as medidas que devem ser tomadas, infelizmente está matando"..Entre os subscritores da carta estão também Ronaldo Caiado, de Goiás, Cláudio Castro, do Rio de Janeiro, e Ratinho Júnior, filho de um apresentador homónimo de trash tv, todos até agora aliados fiéis do governo.