O presidente do Partido Liberal (PL), a formação que hospeda Jair Bolsonaro desde o ano passado, dizia em fevereiro desejar ardentemente que o ex-presidente voltasse dos Estados Unidos para liderar o quanto antes a oposição ao governo de Lula da Silva. Nos primeiros dias de março, entretanto, Valdemar Costa Neto já confidencia a aliados que prefere mantê-lo longe do Brasil para que a sucessão de escândalos que se abateu sobre ele não contagie o PL..Em causa, sobretudo, o caso das joias sauditas. Em outubro de 2021, o então ministro das Minas e Energia de Bolsonaro trouxe de visita oficial a Riade um estojo com joias, no valor de três milhões de euros, destinado, segundo o regime de Mohammed bin Salman, à primeira-dama Michelle. Na alfândega, o presente foi descoberto dentro da mochila de um assessor do ministro e retido até pagamento de 50% do seu valor, ao abrigo da lei, conforme revelou o jornal O Estado de S. Paulo..Bolsonaro pressionou então os funcionários do fisco brasileiro, por oito vezes, a última das quais na véspera de partir para a Florida, três dias antes da posse de Lula, a entregarem-lhe as joias. Sem sucesso..No domingo dia 5, o ex-presidente lamentou estar a ser "crucificado" por causa de um presente que nem sequer recebeu. Porém, na quarta-feira, dia 8, soube-se que ele está na posse de um outro estojo com joias sauditas masculinas, de valor idêntico, que conseguiu, ao contrário do das joias femininas, superar o controle alfandegário..Por sua vez, a suposta destinatária do presente, Michelle Bolsonaro, começou por culpar a imprensa mas acabou a afirmar que, "como qualquer mulher traída", foi "a última a saber" da existência das joias..O ministro da Justiça de Lula mandou a polícia federal investigar um escândalo que pode configurar os crimes de "descaminho", "peculato" e "lavagem de dinheiro", segundo o código penal brasileiro..Valdemar Costa Neto ainda não reagiu publicamente ao caso envolvendo a maior "estrela" do PL. "[Ele] tem recebido apelos da ala moderada do partido para que não abrace a defesa de Michelle e Jair Bolsonaro (...) A avaliação levada a Valdemar é que o próprio clã Bolsonaro ainda não deu uma "versão convincente" sobre a entrada das joias apreendidas", regista a coluna da jornalista Bela Megale O Globo.."A leitura dessa ala é que, se Valdemar sair em apoio ao casal antes que seja apresentada uma linha de defesa sólida, ele pode trazer a crise para dentro do partido", acrescenta..Com a ausência de Jair na Florida, Valdemar apostou nas últimas semanas no suposto carisma de Michelle, a quem ofereceu o cargo de líder do PL Mulher. Em virtude do escândalo, no entanto, a tomada de posse dela, prevista para dia 8, o Dia Internacional da Mulher, foi suspensa - e o regresso de Bolsonaro, anunciado com pompa pelo primogénito, o senador Flávio, para dia 15, também..Para Alberto Bombig, colunista do portal UOL, "o presidente do PL já caminha na direção do centro" e, até, do apoio, negociado, ao governo Lula. Considerado um dos mais experientes políticos brasileiros, ex-aliado do PT e ex-detido no escândalo de compra de deputados conhecido como Mensalão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Valdemar acredita que os 77 deputados do partido, a maior bancada da Câmara, possam servir para trocar apoio legislativo por cargos, verbas e poder no executivo..Outro sinal da guinada ao centro de Valdemar a presença num jantar de apoio a Ricardo Nunes, atual prefeito de São Paulo. Nas eleições para o governo da cidade, em 2024, Nunes, do MDB, de centro-direita, terá seguramente entre os rivais à reeleição um bolsonarista convicto - o próprio Eduardo Bolsonaro, terceiro filho de Jair, é equacionado..Nem só as joias, entretanto, contribuíram para a derrocada da reputação de Bolsonaro no PL: primeiro, ao contestar o resultado da segunda volta presidencial, assumindo uma guerra pessoal do então presidente, o partido teve as contas bloqueadas pelo Supremo; depois, sofreu por tabela os efeitos da invasão, por bolsonaristas radicais, às sedes dos Três Poderes a 8 de janeiro. Valdemar queixou-se ainda de ter sabido da intenção de Bolsonaro de se refugiar na casa de um lutador de UFC em Orlando pela imprensa..Para o jornalista e escritor Josias de Souza, "Bolsonaro acha que é uma coisa mas a sua reputação revela que ele já se tornou outra". "Sustenta que não há ninguém mais apto do que ele a liderar a direita no Brasil e apresenta-se como organizador desse nicho ideológico. Será? Prevalecendo os factos e a lógica, Bolsonaro terá os direitos políticos suspensos pelo Tribunal Superior Eleitoral e passará a roçar as grades da cadeia na condição de político tóxico e inelegível"..Para Souza, "um pedaço do conservadorismo que via em Bolsonaro a alternativa ao PT já navega noutras águas". "Governadores que Bolsonaro considera submetidos à sua hipotética liderança -Tarcísio de Freitas, em São Paulo, e Romeu Zema, em Minas Gerais- percorrem a conjuntura nacional caminhando com as próprias pernas e, se tiverem juízo e desempenho, chegarão a 2026 de costas para Bolsonaro", conclui..Nem mesmo ministros que revelavam fidelidade canina ao então presidente, parecem hoje dispostos a defendê-lo . "A crise com os yanomami [tragédia humanitária do povo indígena potenciada pelas políticas do governo anterior] é mencionada como exemplo disso", afirma Caio Junqueira, colunista da CNN Brasil, citando Damares Alves (ex-ministra dos Direitos Humanos), Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga (da pasta da Saúde) ou Tereza Cristina (da Agricultura), todos em silêncio, deixando o ex-líder desgastar-se sozinho. Bento Albuquerque, o ministro das Minas e Energia que trouxe as joias, também se mantém calado.."A leitura", remata Junqueira, "é que o ex-presidente se tornou politicamente tóxico, fazendo com que mesmo seus antigos aliados não mais o defendam"..Leonardo Sakamoto, em podcast do portal UOL, sublinhou que "Bolsonaro sempre foi tóxico": "a diferença agora é que muita gente perdeu o interesse nele porque ele perdeu o poder". Para o politólogo Thomas Traumann, o 8 de janeiro foi o princípio do fim: "os bolsonaristas que vandalizaram as sedes dos Três Poderes queriam dar uma demonstração de força contra Lula e terminaram tirando a legitimidade de Bolsonaro como líder da oposição"..dnot@dn.pt