"Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora", afirmou Jair Bolsonaro no dia 11 de novembro, em resposta a uma ameaça de sanções económicas ao Brasil a propósito da Amazónia feita por Joe Biden, cuja eleição como presidente dos Estados Unidos o Palácio do Planalto só 43 dias depois reconheceu. A relação entre os dois maiores países americanos ou, pelo menos, entre os seus chefes de Estado não começa bem. Mas como vai acabar?."A relação tende a ser bastante tensa num primeiro momento porque o presidente norte-americano tem uma ambiciosa agenda ambiental: está a conversar com a Europa sobre ecologia, nomeou John Kerry, ex-candidato presidencial, ex-secretário de Estado no governo Obama e ex-senador, para a área, quer que os Estados Unidos recuperem a liderança nessa discussão e deseja apaziguar a ala esquerda dos Democratas com uma agenda verde", diz o cientista político Vinicius Vieira, professor da Fundação Armando Álvares Penteado com passado académico nas universidades americanas de Yale, Vanderbilt e Berkeley, ao DN..Para Vieira, "Biden mostra que está disposto a enfrentar as maiores ameaças ao meio ambiente no mundo e essas ameaças chamam-se Brasil e Jair Bolsonaro, que confundem soberania com destruição do meio ambiente".."E Bolsonaro falar em fraude eleitoral nos EUA, sem provas, na última semana de novembro, antes das municipais brasileiras, também não ajuda", acrescenta André Kaysel, professor de Ciência Política da Unicamp.."Claro que ele está a falar para a plateia radical dele, para os fundamentalistas que o cercam", pondera Kaysel, "mas tudo o que um presidente brasileiro fala acaba por ter impacto internacional"..Na ocasião em que usou a expressão da pólvora e da saliva, Bolsonaro referiu-se a Biden apenas como "um candidato à chefia de Estado", alinhando-se ao discurso do presidente cessante Donald Trump, que ainda não reconheceu a vitória do democrata.."Ele disse que poderia levantar barreiras comerciais contra o Brasil por conta de incêndios na Amazónia", prosseguiu o presidente brasileiro. "E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas a diplomacia não dá, não é, Ernesto [dirigindo-se a Ernesto Araújo, ministro brasileiro das Relações Exteriores]? Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão, não funciona. Não precisa nem usar pólvora, mas têm de saber que há.".Biden, por sua vez, sublinhara que "a floresta tropical do Brasil está a ser devastada" e prometera reunir-se com outros países para garantir 20 mil milhões de dólares para a preservação da Amazónia. "Parem de destruir a floresta e se não pararem então enfrentarão consequências económicas significativas", afirmou numa ocasião para, numa outra, usar mesmo a palavra "sanções".."Nesse cenário, sobram duas ou três opções a Bolsonaro", regista Vieira. "Ou insiste nessa lógica pseudossoberanista, fazendo vista grossa a queimadas, o que pode derivar em sanções contra, não o Brasil, mas indivíduos, como, por exemplo, impedir alguém do seu entorno, como [o presidente da Comissão das Relações Exteriores da Câmara dos Deputados] Eduardo Bolsonaro de entrar nos EUA, o que seria uma vergonha, embora nem o presidente nem Ernesto Araújo estejam preocupados por ser uma vergonha mundial, já que este último disse mesmo que, se for o caso, o Brasil será 'um pária'.".Outra via, segundo Vieira, é "irritar Biden, aproximando-se da China, o que, no entanto, gerará protestos da sua base ideológica, que considera a China comunista e anticristã, ou da Rússia, tendo em conta que Putin lhe fez 'declaração de amor', apreciando a sua masculinidade na condução da pandemia, ou até retomar contactos com a Índia, onde governa Modi, outro autoritário de direita"..O terceiro caminho será "perceber que precisa de mudar e usar uma diplomacia profissional, livrando-se para tanto dessa erva daninha Ernesto Araújo, encontrando-lhe uma saída honrosa, como fez com Abraham Weintraub, o ministro da Educação defenestrado para o Banco Mundial". O chefe da diplomacia brasileira, de 53 anos, é admirador de Trump, a quem chegou a chamar "divindade" num texto, discípulo do pensador de extrema-direita brasileiro Olavo de Carvalho e negacionista do aquecimento global, que considera uma conspiração marxista..Kaysel já nota que, discretamente, o governo brasileiro está a optar pela via da "acomodação". "O ministro do Meio Ambiente, o controverso Ricardo Salles, depois de um período de silêncio na sequência da derrota de Trump, reafirmou na quarta-feira passada o compromisso do Brasil com a redução dos gases de carbono até 2060, uma posição totalmente contrária ao discurso do governo até agora e que pode significar que se está a acomodar à administração Biden.".A relação entre Bolsonaro e Biden, porém, dependerá mais da vontade e da ação do segundo do que do primeiro, até porque os Estados Unidos têm, incomparavelmente, mais "pólvora" do que o Brasil nos sentidos literal e figurado.."Biden é diferente do presidente Trump, busca menos o confronto, é mais diplomático", defendeu Francis J. Kelly, chefe de relações com as Américas do Norte e Latina do banco alemão Deutsche Bank, à revista brasileira Exame.."Estávamos habituados ao Trump, que é muito decidido, move-se rapidamente, muda políticas e de repente você pensa 'uau, o que acabou de acontecer?'. Não deve ser esse o caso com Biden. Na relação com o Brasil não acredito que vá haver movimentos repentinos de nenhum dos lados, vai haver muita diplomacia. Nós não acreditamos que Biden espalhe terror, essa era uma estratégia do presidente Trump, mas não deve ser uma estratégia do novo governo."."Pelo lado de Biden não haverá antagonismo ou hostilidade com o Brasil. Ele valoriza alianças e conhece muito bem a América Latina", concorda Rubens Ricupero, ministro do Meio Ambiente e da Economia no governo de Itamar Franco e ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos, lembrando à versão brasileira do diário El País que o novo presidente estado-unidense foi duas vezes presidente de Comissão de Relações Exteriores do Senado americano..Biden, que esteve na tomada de posse de Dilma Rousseff, estabeleceu relação próxima com a antiga presidente. E o ex-presidente Michel Temer também afirmou ter "boa amizade" com o recém-eleito.."Com a mudança do poder, de Trump para Biden, Bolsonaro vê desabar a coluna mestra da sua política externa, seria portanto uma oportunidade para reexaminar as coisas e tentar uma evolução mas não sei se isso vai acontecer", prossegue o diplomata, que também avalia a cúpula do Ministério das Relações Exteriores do Brasil como "um grupo péssimo". "E, infelizmente, Ernesto Araújo é o pior."."O governo sente que não sabe muito bem o que fazer, além de perder Trump, com o qual mantinha relação de subserviência, na Bolívia, Evo Morales voltou, no Chile, haverá mudança da Constituição, na Argentina, o peronismo ganhou, ou seja, não está numa posição tão confortável como quando se elegeu", lembra Kaysel..Mas se o pragmatismo norte-americano na relação com o Brasil pode prevalecer em áreas marcadamente económicas, sobrará sempre o ruído no ambiente que gerou o choque inicial. "A nomeação de Kerry, nesse sentido, é muito marcante. O retorno ao Acordo de Paris, que ocorrerá nos primeiros dias do governo, também. Portanto, onde existam políticas claramente diferentes das que Biden colocará em prática nos âmbitos interno e externo, haverá tensões", afirma Jorge Castañeda, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros mexicano à BBC Brasil..Ainda na questão ambiental, Barack Obama disse que "o Brasil foi um líder no passado, seria uma pena se parasse de ser"..Mas, em ações de promoção no país sul-americano do seu novo livro, Uma Terra Prometida, o presidente dos EUA de 2009 a 2016 disse ter "esperança de que, com a nova administração de Biden, haja uma oportunidade de redefinir a relação [com o Brasil]".."Sei que ele vai enfatizar que a mudança climática é real, que Estados Unidos e Brasil têm um papel de liderança a desempenhar, assim como sei que ele vai valorizar a ciência sobre a covid-19, e o facto de que o vírus é real", afirmou, em entrevista à TV Globo. Em suma, disse Obama, "o progresso que precisa acontecer, não só no hemisfério sul, mas no mundo, vai ser, em parte, determinado pela qualidade da relação entre os dois países"..Joe Biden, presidente eleito dos EUA Duas vezes líder da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, o presidente eleito dos Estados Unidos visitou 16 vezes a América Latina, mais do que qualquer presidente ou vice-presidente antes ou depois dele. No Brasil, estabeleceu relações cordiais com Dilma Rousseff e Michel Temer, antecessores de Bolsonaro..Jair Bolsonaro, residente do Brasil "I love you", disse Bolsonaro a Trump, na ONU. Já na campanha eleitoral, o hoje presidente declarava ter no candidato derrotado em novembro, que visitou duas vezes em menos de dois anos de mandato, a sua referência política. É, ao lado dos homólogos mexicano, russo e norte-coreano, um dos quatro presidentes que ainda não reconheceram a vitória de Biden e, volta e meia, fala em "fraude eleitoral"..John Kerry, nviado especial para o clima dos EUA Candidato presidencial derrotado por George W. Bush, pilar do governo Obama e experiente senador, Kerry foi nomeado por Biden o "czar do meio ambiente" da nova administração. Um sinal de que, por exemplo, a Amazónia será questão estratégica para o novo presidente dos EUA..Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores do Brasil Chamou Trump de "ente divino" e de "salvador da civilização ocidental" e nega o aquecimento global, que apelida de "climatismo", uma estratégia da China para sufocar o Ocidente e o capitalismo. Desacreditado no meio diplomático, é visto como ameaça à relação entre o Brasil de Bolsonaro e os EUA de Biden.