Bolsonaro e a orquestra do Titanic

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A cena já é clássica: o Titanic à deriva e os passageiros com a água no pescoço, enquanto a orquestra do transatlântico, alheia ao clima de cada um por si e Deus por todos, segue os acordes em meio ao caos e à iminente tragédia, afinal, enquanto houver pelo menos um ombro de um músico a salvo, o violino tem a missão de manter o tom de normalidade.

A melancólica tentativa de se manter o tom de normalidade diante de uma tragédia é o fio que une Titanic a outro clássico do cinema, o Anjo Exterminador. No filme de Buñuel, sai o navio e entra uma mansão, porém, à parte do cenário diferente, as personagens são as mesmas, uma aristocracia vetusta, cafona e cínica que se nega a largar o osso do faustoso banquete.

Neste fim de semana, convocada por Bolsonaro, a classe média empreendedora brasileira, a nossa versão da aristocracia cafona e cínica de Buñuel, foi às ruas em SUV climatizadas, escudada por vidros blindados - que, segundo o presidente, são tão à prova de balas como de vírus - exigir o retorno imediato ao trabalho dos funcionários em confinamento profilático.

Exigir que a orquestra siga a tocar.

Outros populistas, como Boris Johnson e até Trump, a quem Bolsonaro esforça-se em ser uma patética paródia, ensaiaram o mesmo, mas já saltaram do barco. Perceberam que a pandemia era apenas a ponta do icebergue, que talvez não seja possível resolver os novos desafios com as fórmulas antigas. Que não é o momento de pensar no custo de salvar vidas, mas de salvar vidas a todo custo.

Assim como o maestro do Titanic, Bolsonaro quer manter o tom de normalidade rumo à deriva. Os músicos do filme são a metáfora dos trabalhadores obrigados a seguir a partitura da sinfonia do caos capitalista, destinados a naufragar com o navio enquanto a aristocracia pisoteia os passageiros de segunda classe, confisca os coletes salva-vidas e fura a fila dos botes, tentando salvar o próprio pescoço.

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