Bolsominions: modo de usar

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No dia 10 de março, foi apresentado na Câmara dos Deputados do Brasil o projeto de lei 582 de 2020.

O texto defende "a amputação das mãos de político condenado por crime de corrupção contra o património público" e saiu da cabeça do deputado Boca Aberta, 48 anos.

Boca Aberta, nascido Emerson Petriv, e pai do deputado estadual Boca Aberta Junior, nascido Matheus Petriv, começou a carreira política montado numa bicicleta a gritar palavras de ordem pelas ruas da cidade de Londrina.

Se os parágrafos acima lhe deram vontade de rir, reconsidere. Há uns cinco anos era um outro deputado, com ainda mais filhos na política, que exercia o papel de populista patético e perigoso - e olhe onde ele chegou.

Para lá chegar, bastou surfar na onda da Operação Lava-Jato - assim como o pouco recomendável Berlusconi surfou a Mani Pulite em Itália - e arregimentar um exército de apoiantes pelas redes sociais, a que se convencionou chamar de bolsominions.

Esses apoiantes são heterogéneos - há dos chamados farialimers, os yuppies da Faria Lima, a Wall Street brasileira, que querem faturar a todo o custo independentemente de quem exercer e como exercer o poder, aos humildes devotos de Edir Macedo, Silas Malafaia e de outros charlatães, alienados pelo vírus do neopentecostalismo, passando pelos anti-esquerdistas primários que atribuem todos os males do mundo a Lula da Silva.

Mas na heterogeneidade há um padrão: o exército é sobretudo composto por ressentidos.

Gente que se sente despeitada por ter estudado pouco, por ter viajado pouco, por pensar pouco, por criar pouco. Daí o ódio à universidade, aos jornais, à ciência, à arte.

O atual presidente "empoderou-os". Este parêntesis da história do mundo e do Brasil poderá vir a ficar conhecido, aliás, como "o empoderamento do imbecil" - sou menos estudado, sou menos viajado, penso pouco, não crio nada, mas... não sou menos do que você.

Não sei onde começa e acaba a América Latina, acho que África é um país, não tenho a mais vaga ideia de quem foi Darwin, mas tenho um sem fim de preconceitos e estereótipos na minha cabeça que, graças a este presidente, se tornaram ideário e até política pública - este parágrafo foi baseado em factos reais.

Apesar de simplório, o comportamento do bolsominion deve, no entanto, ser objeto de reflexão científica.

Enquanto esse estudo não chega eis um ou dois exemplos avulsos do seu comportamento.

Após a última catástrofe dita pelo presidente, daquelas que deixam o mundo civilizado de boca aberta (nada a ver com o deputado dos início do texto), o bolsominion fica paralisado por não ter poder de reação.

A reação só surge umas 48 horas depois. Sempre em grupo. Na forma de um meme recheado de fake news disseminado nas redes sociais e nos aplicativos pelos bolsominions liderantes, ligados à família presidencial.

Do género, o presidente acusa Di Caprio de incendiar a Amazónia. O mundo ri-se dele. Dias depois aparece nas redes, lançada pelos bolsominions liderantes, uma foto do ator com uma citação falsa a tentar dar razão ao alucinado discurso presidencial. Os bolsominions comuns espalham-na.

Outro exemplo de como os bolsominions liderantes domesticam a cabeça dos bolsominions comuns, sem estes se aperceberem: os primeiros publicam online um meme tosco e descontextualizado a comparar o atual presidente com a oposição. Do tipo, "neste governo foram criados x postos de trabalho, mais do que nos anteriores somados".

E depois rematam com a frase fétiche "tire as suas conclusões".

O bolsominion comum não tira conclusão nenhuma - é induzido a tirá-la pelo bolsominion liderante - mas achou que tirou e se libertou das amarras dos mass media tradicionais que não contam a verdade.

Os bolsominions, entretanto, caem em número e em força.

Alguns deles, por serem altamente suscetíveis, como verificado, ao efeito manada - por alguma razão, além de bolsominions, também são chamados de gado - já debandaram ou sentem vontade de debandar. Outros, teimosos, mantêm-se leais ao presidente e aos bolsominions liderantes e até com mais fanatismo interior por se sentirem em perda.

Um dia, porém, serão reduzidos ao seu estatuto de minoria residual, como todos os extremistas ao longo dos tempos. Mas convém observá-los, estudá-los, vigiá-los porque voltam sempre - a história está aí a prova-lo.

No Brasil, quem sabe, regressarão na forma de apoiantes do Boca Aberta ou do Boca Aberta Junior.

Correspondente em São Paulo

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