Na última quarta-feira, Abraham Weintraub lançou nas redes sociais a imagem de uma bíblia com uma pistola dentro. Era uma provocação a Milton Ribeiro, pastor evangélico que disparou, inadvertidamente, segundo o próprio, uma arma de fogo no aeroporto de Brasília. Weintraub foi ministro da Educação de Jair Bolsonaro. Ribeiro também. A tensão entre os dois é só o último episódio dos conflitos entre as quatro (ou mais) fações do bolsonarismo, já chamado de "bolsocanibalismo"..Weintraub pertence, como os também ex-ministros Ricardo Salles (Ambiente) ou Ernesto Araújo (Relações Exteriores) à ala programática - os detratores chamam-lhe "ala psiquiátrica" - dos apoiantes de Bolsonaro, composta por antigos alunos do excêntrico Olavo de Carvalho, guru da extrema-direita do Brasil falecido no início do ano. Ele caiu do Ministério da Educação em 2020 por ter insultado os juízes do Supremo Tribunal Federal..Já Ribeiro, sucessor de Weintraub, é da ala evangélica. Demitiu-se no mês passado por se ter envolvido num esquema de corrupção com outros pastores que ofereciam verbas do ministério a prefeituras em troca de barras de ouro e dinheiro nas contas pessoais..Há ainda a ala militar, composta por generais e demais patentes: o vice-presidente, general Hamilton Mourão, dez ministros e mais 6000 fardados assumiram cargos civis na máquina pública com a ascensão de Bolsonaro..E, finalmente, a cada vez mais poderosa, em detrimento das outras, ala dos políticos profissionais, conhecida como "centrão". O centrão é o grupo de cerca de 200 parlamentares de aproximadamente uma dezena de partidos que há décadas, em troca de nacos generosos do orçamento, apoia o governo, seja qual for o presidente..No caso do governo de Bolsonaro, esse apoio traduz-se no bloqueio da centena de pedidos de impeachment esquecidos na gaveta de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados e um dos líderes do "centrão"; e os nacos generosos do orçamento recebidos em troca traduzem-se em 150 milhões de reais sob gestão do grupo assumidamente clientelista.."Aliados de Bolsonaro perderam o palco principal para políticos profissionais e temem ser espremidos nas eleições de outubro por integrantes da nova órbita expandida do presidente", escreveu o colunista Bruno Boghossian, no jornal Folha de S. Paulo.."Weintraub, Salles e Ernesto tentam vender-se como únicos e genuínos representantes da ideologia presidencial. Eles perceberam, no entanto, que também há produtos genéricos nas prateleiras. O espaço eleitoral nesse campo será disputado com bolsonaristas intermitentes, envernizados e pragmáticos, o centrão".."Não há votos disponíveis para tantas facções diferentes, e parece improvável que aquele bolsonarismo puro-sangue aceite uma aliança com os demais", conclui..Para Bolsonaro, conciliar radicais, evangélicos, militares e profissionais da política nunca foi tarefa fácil. Logo em 2019, o radical Olavo de Carvalho chamava, entre palavrões, o general Mourão de "idiota" e "adolescente desqualificado" e os demais militares do governo de "fofoqueiros" e "desocupados". Mourão rebateu - "ele não passa de um astrólogo", aludindo à formação profissional do guru - e o general Santos Cruz, então no governo, fez coro: "Olavo é um vigarista profissional"..Silas Malafaia, um dos líderes evangélicos mais próximos do Planalto, atacou, a espaços, outros bolsonaristas. E os deputados Alexandre Frota e Joice Hasselmann saíram da base do governo a trocar insultos com Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro, dois fiéis do presidente, o segundo dos quais chamado de "filho 03" pelo pai..As querelas constantes levaram a uma cisão no partido pelo qual Bolsonaro ganhou as eleições - metade do Partido Social Liberal (PSL) rompeu com o presidente, a outra metade continuou a apoiar o governo..O Aliança Pelo Brasil, um partido de extrema-direita criado em torno de Bolsonaro em 2019, com o senador Flávio Bolsonaro, o "filho 01", como vice-presidente, foi fundado na sequência mas não vingou por falta de assinaturas suficientes..Bolsonaro transitou então, já este ano, para o Partido Liberal (um dos pilares do centrão, liderado por Valdemar Costa Neto, ex-preso no escândalo do Mensalão), levando consigo 45 deputados do PSL e de outras formações..Em ano eleitoral, com muitos candidatos para poucas vagas no Congresso ou no governo dos estados, a gestão das diversas sensibilidades, e das vaidades pessoais, é ainda mais árdua..O referido Weintraub, além de fazer piadas com o sucessor evangélico, ainda se envolveu em controvérsias dentro da ala programática. Depois de perceber que Bolsonaro lhe recusaria apoio numa eventual corrida ao governo do estado de São Paulo a favor do ministro da infraestrutura Tarcísio Freitas, preferido pelo "centrão", partiu para o ataque ao presidente. Foi chamado de "ingrato" pelo deputado Eduardo Bolsonaro e de "opositor sonso" pelo ex-secretário da Cultura Mário Frias, ambos "olavistas", como ele..DestaquedestaqueEm ano eleitoral, com muitos candidatos para poucas vagas no Congresso ou no governo dos estados, a gestão das diversas sensibilidades, e das vaidades pessoais, é ainda mais árdua..Ernesto Araújo, o ex-ministro das Relações Exteriores também devoto de Olavo de Carvalho, acusou Fábio Faria, ministro das Comunicações ligado ao "centrão", de "diluir e enfraquecer o projeto conservador original do governo"..Janaína Paschoal, deputada estadual em São Paulo reverenciada pela direita desde que redigiu o pedido de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, veio a público criticar a candidatura de Damares Alves, ministra dos Direitos Humanos, ao Senado, promovida pelo próprio Bolsonaro. "Com a habilidade que Bolsonaro tem para reunir a direita, em 2023 teremos um Senado vermelho para dar sustentação a Lula", disse Paschoal. É o braço-de-ferro na, digamos, sub-ala feminina do bolsonarismo..Reportagem da revista piauí, onde foi utilizado o termo "bolsocanibalismo" pela primeira vez, dá conta do clima de guerra também na sub-ala dos aliados "plebeus" do presidente, aqueles que o acompanham desde os tempos em que ele não passava de mais um deputado falastrão do baixo clero..Fabrício Queiroz, o assessor que se tornou célebre por ser o pivô do esquema de "rachadinhas" da família (desvio de salários dos assessores para o bolso de Bolsonaro e filhos), quer ser candidato a deputado federal pelo Rio Janeiro. Mas Max Guilherme, segurança do presidente, e Waldir Ferraz, assessor de imprensa nos primórdios da carreira de Bolsonaro, tiveram a mesma ideia. Os três, Max, Ferraz e Queiroz, disputam a candidatura na qualidade de "amigo pessoal do presidente" e vão trocando acusações nas redes sociais e nos jornais. "Traste" e "papagaio" têm sido alguns dos adjetivos utilizados..Acresce que até a guerra na Ucrânia dividiu o bolsonarismo. "A direita bolsonarista é qualquer coisa menos uma massa uniforme. Sempre foi assim. Existem alguns grupos", resume David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita e professor de relações internacionais. "Um grupo dentro da base bolsonarista, que eu chamaria tranquilamente de extrema direita, inspirou-se muito em duas organizações anti-Rússia que nasceram na Ucrânia, o Batalhão Azov e o Pravy Sektor", disse à Folha de S. Paulo.."Mas há os bolsonaristas pró-Rússia, pela via do [estratega de Donald Trump] Steve Bannon, que se reuniu com Eduardo Bolsonaro e tornou-o representante na América do Sul de um movimento contrário à modernidade liberal, que inclui também Marine Le Pen, Matteo Salvini e Vladimir Putin"..dnot@dn.pt