Bolívia. Pelo "comboio da morte"

Mala de viagem (23). Um retrato muito pessoal da Bolívia
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Quando comecei a organizar o périplo por alguns países da América do Sul, verifiquei que, por via terrestre, as rotas de entrada clássicas para a Bolívia são por San Pedro de Atacama, no Chile, penetrando na Reserva Natural Eduardo Avaroa, embora a fronteira entre a Bolívia e o Chile esteja constantemente bloqueada pelos mais variados motivos. Também se pode entrar por Corumbá, no Brasil, para tomar o comboio entre Puerto Quijarro e Santa Cruz de la Sierra, o famoso e denominado "comboio da morte". Este suscitou-me a curiosidade. Quando cheguei a Corumbá, vi uma cidade grande no meio do Pantanal. Depois da aventura que foi para aí chegar, por território brasileiro, ali estava para debater-me com esse comboio de nome maldito. Antes, segui de autocarro até à fronteira, carimbando a saída do Brasil e a entrada na Bolívia. E logo apanhei um táxi, com outros pretendentes à mesma aventura. Pagas as taxas da bagagem, entrei na carruagem coincidente com o que estava escrito no bilhete. O comboio é confortável, os acepipes nem tanto. Os perigos, afinal, não existiam, pois o nome deriva, apenas, do facto de esta linha ter transportado mortos causados pela febre-amarela, no início do século XX. Mas, naquele dia, com tanta pouca comida, não seria difícil ficar amarelo de fome. Felizmente, a mochila tinha alguns mantimentos adquiridos em Corumbá. Chegado ao Terminal Bimodal de Santa Cruz, a escolha de um pequeno hotel serviu para a curta estada, pois a ideia era seguir para Machu Picchu, no Perú. A cidade é extensa e populosa, localizada no centro do país, e considerada o motor económico da Bolívia. É um importante polo da produção petroquímica, em especial da produção de gás natural, que exporta para países vizinhos, sendo que os principais setores que movimentam a economia são os hidrocarbonetos, as empresas florestais e a agroindústria. Conta-se que o primeiro núcleo populacional, construído nas margens do rio Piraí entre as décadas de 1590 e 1620, fora habitado por espanhóis e portugueses, atraídos pelo planalto pré-andino. Na praça principal da cidade (24 de Septiembre), uma cerveja de nome Paceña serviu para provar a primeira bebida loura boliviana, que veio acompanhada de amendoins e batatas. Admirei-me de não ver grupos de música andina, até porque em Portugal isso era comum. Terão zarpado para a Europa? Para comer, tinham-me informado no hotel que um novo restaurante abrira recentemente ali mesmo no centro histórico, El Aljibe, um restaurante-museu, o que espicaçou a minha curiosidade, o primeiro a experimentar logo naquela noite. Entrei numa casa com aspeto colonial, aparentemente recuperada e com esmero. Remonta ao final do século XIX e pertenceu à família Menacho Carrillo. Agora pertence à família Vallejosque, quando souberam da minha origem e paixão pelas coisas do passado, me apresentaram à historiadora Susana Hurtado que, por acaso, ali se encontrava. Ela fora consultora e investigadora das receitas antigas para o cardápio do restaurante. No final do jantar, em que falámos dos dois países, surgiu a ideia de um prato novo que combinasse a comida andina com a portuguesa. Afinal, também nós, portugueses, estivemos ali noutros tempos.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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