A rainha Vitória não era exatamente uma feminista mas não podia deixar de se referir à sua súbdita Florence Nightingale como "orgulho do nosso sexo." Informada da importância dos relatórios acerca da situação sanitária dos soldados britânicos na Crimeia, que esta enviava periodicamente ao Ministério da Guerra, Sua Majestade não tardou a dirigir-se à enfermeira, assegurando-lhe de que gostaria muito de a conhecer pessoalmente mal ela regressasse a Inglaterra. Numa dessas cartas enviar-lhe-ia mesmo, como penhor da sua consideração, uma pregadeira em ouro e diamantes com a divisa "Abençoados são os misericordiosos." Gravada no verso está a inscrição: "Para Miss Florence Nightingale, como sinal da estima e gratidão pela sua devoção aos bravos soldados da Rainha, Victoria Regina, 1855"..Nada poderia ser mais justo: mais do que uma mulher especialmente misericordiosa, Florence Nightingale revelaria a coragem própria de quem desbrava caminhos em territóriohostil. Nascida em Florença a 12 de maio de 1820, numa abastada família britânica, esperar-se-ia que a menina crescesse para fazer um casamento de acordo com esse estatuto e se tornasse uma esposa e mãe como mandava o figurino social. Mas não foi o que aconteceu. Florence revelaria desde cedo um gosto particular pelo estudo (nomeadamente de Matemáticas Aplicadas), que complementava com a assistência aos pobres das aldeias vizinhas. Muitos anos mais tarde, já uma figura internacionalmente conhecida, diria que, em plena adolescência, recebera um chamamento divino para fazer dos cuidados aos doentes a missão da sua vida. Mas o que hoje seria pacificamente aceite pela maioria das famílias, em meados do século XIX esbarrou num muro de incompreensão. Se, por um lado, os hospitais ainda eram apenas lugares onde os pobres iam morrer, por outro a enfermagem estava longe de corresponder a um futuro aceitável para uma rapariga dita de boas famílias. Aos 30 anos, Florence sentia-se inútil e sem propósito: "A minha vida presente é um suicídio", escreveu numa carta datada de 1850..Mas não se resignou. Um ano depois, ingressaria num curso de Enfermagem do Instituto de Diaconisas de Kaiserswerth, na Alemanha, sob a direção do pastor Theodor Fliedner. Mas não lhe bastava. Visitou hospitais em Dublin, Edimburgo e Paris, onde a impressionaria o recém-inaugurado Hospital Lariboisiére, em que, pela primeira vez, veria valorizado o papel do ar fresco e da luz no processo de cura. Em 1854, decidiu ir para o terreno: recrutou cerca de 40 enfermeiras e dirigiu-se à província de Scutari, na Turquia, onde o Exército inglês, integrado numa aliança com a França, o Império Turco Otomano e o reino da Sardenha, enfrentava os russos. Era a Guerra da Crimeia, que se estendeu entre 1853 e 1856, causando um número muito elevado de vítimas..À chegada aos hospitais de campanha, Florence compreendeu rapidamente que as deficientes condições de saneamento e higiene matavam tanto como a artilharia inimiga. Incansável, escrevia cartas e relatórios ao Estado-Maior, fazia propostas, reclamações e, de noite, zelava pelos doentes, acompanhada de uma candeia tradicional turca. No seu desespero após derrotas como a de Balaclava (que inspirou a Tennyson o famoso poema "A carga da brigada lendária"), os soldados atribuíram-lhe um carácter quase sobrenatural, chamando-lhe "senhora da candeia" ou "anjo da crimeia"..Ao regressar a Inglaterra, Florence não estava preparada para a popularidade de que desfrutava - a Crimeia foi um dos primeiros conflitos cobertos de forma moderna pela imprensa e a história dos seus feitos tornara-se tão conhecida nos palácios como nas fábricas. Surpreendida pelo fenómeno, usou-o não em benefício próprio, mas para melhorar as condições sanitárias dos hospitais civis e militares. Fez palestras, reuniu-se com as autoridades (desde logo, com a rainha e o marido desta, o príncipe Alberto), escreveu um volume com mais de 800 páginas a que deu o título de Notas sobre Questões Que Afetam a Saúde, a Eficiência e a Administração Hospitalar do Exército Britânico. Na sequência do seu esforço, foi criada a Comissão Real de Saúde do Exército..As bases da enfermagem moderna.Quando anos depois, durante a Guerra da Secessão americana, o Estado-Maior do Exército da União pediu conselhos a Florence Nightingale, há muito que se tornara evidente que ela era muito mais do que uma senhora caridosa. Algumas das bases da enfermagem moderna foram então lançadas por ela, como recurso à estatística, fundamental, como temos visto para acompanhar a evolução de doenças contagiosas, nomeadamente o tifo e a cólera, tão frequentes na Europa do seu tempo..Ela própria doente (a um episódio de tifo somar-se-ia uma prolongada depressão, que os seus biógrafos de hoje relacionam com stress de guerra), afastar-se-ia do trabalho nas enfermarias, mas continuaria a estudar e a lutar sem tréguas pela melhoria das condições hospitalares. Em 1859, desenvolveu o projeto da Escola de Enfermagem do Hospital St. Thomas, em Londres. De acordo com o modelo por si preconizado, o curso a tinha a duração de um ano e as aulas eram ministradas por médicos. Os conteúdos tinham exposição teórica e atividades práticas e deles constava, entre muitos outros aspetos, a importância da assistência à população carenciada e a necessidade de planear arquitetonicamente os edifícios hospitalares de modo a isolar focos de contágio. Paralelamente, Florence Nightingale nunca deixou de escrever, tendo deixado mais de 200 títulos que incluem livros, panfletos e relatórios onde decantou a sua experiência, observações e convicções sobre o exercício enfermagem. A sua obra mais popular - Notas sobre Enfermagem - tornar-se-ia, durante muitas décadas, um clássico do tema. Só a cegueira total, aos 80 anos, a impediria de prosseguir..Morreu dez anos depois, amplamente condecorada por organismos oficiais e instituições de saúde. Mil vezes lembrada em filmes, séries de televisão, em notas de 10 libras que circularam durante décadas e até numa boneca Barbie, voltou a ser recordada, em tempos de covid-19, com um dos hospitais de campanha de Londres a receber o seu nome. Porém, numa daquelas ironias em que o destino é pródigo, o confinamento ameaça de morte o museu que, também na capital britânica, lhe é dedicado. Os apelos à solidariedade podem ser encontrados na página oficial da instituição.