Os computadores podem ter substituído as gavetas cheias de fichas de indexação, preenchidas com a cuidada caligrafia dos bibliotecários de outrora, mas a lógica e o propósito mantêm-se. Graças à Classificação Decimal Universal (CDU), criada no final do século XIX pelos belgas Paul Otlet e Henri de la Fontaine, é possível navegar sem perder o norte pelo vasto espectro do conhecimento humano, da Matemática às Belas-Artes, do Japão ao Chile, da remota Antiguidade ao dia de hoje..Essa possibilidade de reunir sob um só telhado tudo o que sabemos sobre tudo levou o escritor argentino Jorge Luis Borges a considerar a biblioteca uma forma de paraíso terreno. Um bosque de palavras que convida à aventura do espírito. Umberto Eco, seguindo-lhe os passos (no pequeno livro A Biblioteca), viu nela "um universo à medida do homem", o que para ele queria dizer "também alegre, com a possibilidade de se tomar um café, com a possibilidade de dois estudantes numa tarde se sentarem num maple e, não digo de se entregarem a um amplexo indecente, mas de consumarem parte do seu flirt na biblioteca, enquanto retiram ou voltam a pôr nas estantes alguns livros de interesse científico (...).".Mais ou menos alegres, as bibliotecas, enquanto repositório do conhecimento humano, são quase tão antigas como a escrita, esse guarda fiel da memória. Pertenceram a cardeais, reis, cientistas e a Estados. Mas a noção de que elas devem servir quem delas se abeire em busca do pão do conhecimento é muito anterior à própria ideia de serviço público..Congresso, Washington.Se o leitor já publicou um livro, é bem possível que o encontre no catálogo da Biblioteca do Congresso em Washington D.C. O facto de estar em português não é impedimento, já que dos cerca de 130 milhões de títulos indexados constam obras em 450 idiomas, a maior parte bem menos falados do que o nosso. Fundada pelo presidente John Adams em 1800, quando a capital do recém-formado país se mudou de Filadélfia para a cidade onde ainda se mantém, é hoje a maior do mundo. Sofreu vicissitudes (como os incêndios de 1813, este causado pelo bombardeamento britânico no rescaldo da guerra da independência, e de 1851,) mas superou-as com o garbo monumental bem patente nos três edifícios que o compõem (além da videoteca sedeada em Culpeper, Virginia), unidos entre si por túneis pedestres: o Thomas Jefferson Building, o James Madison Memorial Building e o John Adams Building..Com um brilhante trabalho de digitalização, que, nos últimos anos, tem vindo a pôr à disposição da população mundial partes importantes do seu acervo (como os milhares de fotografias de várias épocas que compõem o projeto American Memory), esta é a biblioteca de referência dos Estados Unidos, com um código de classificação próprio, adotado pela generalidade das suas congéneres em todo o país. Entre os cerca de 61 milhões de manuscritos nela depositados, estão alguns tesouros da história mundial, como uma das Bíblias de Gutenberg impressa em velino e um rascunho da que viria a ser a Declaração da Independência americana..Alexandria, Egito.Provavelmente a biblioteca mais mítica de sempre. Na Antiguidade Clássica, foi um dos mais importantes centros de produção e divulgação de conhecimento. Embora os contornos da sua história se diluam facilmente na lenda, é possível estabelecer a criação no século III a.C no complexo palaciano da cidade de Alexandria, no Egito da dinastia dos ptolomeus. A sua criação pode ter sido proposta por Demétrio de Faleros, um estadista ateniense exilado, ao fundador da dinastia ptolemaica no Egito, Ptolomeu I, que buscava promover a difusão da cultura helenística no Médio Oriente. Coube, no entanto, ao filho deste, Ptolomeu II, concretizar o projeto, não só ordenando a construção do edifício como adquirindo ele próprio um grande número de rolos de papiro, que era a forma em que circulavam os escritos nessa época. Hoje não sabemos exatamente quantas obras continha o acervo, mas estima-se que ela chegou a reunir entre trinta mil e setecentos mil títulos literários, académicos e religiosos. Em determinado momento, a quantidade era já tão grande que justificou a criação de um segundo edifício, também em Alexandria..Além de glorificar interna e externamente a dinastia reinante, a Biblioteca teve um papel realmente significativo na emergência da cidade como sucessora de Atenas enquanto centro irradiador de conhecimento. Muitos dos mais importantes nomes da cultura clássica usaram-na como escritório e gabinete de estudo, não sendo de excluir que, entre eles, estivessem Arquimedes e Euclides. Calímaco terá criado mesmo um primeiro método de catalogação bibliográfica a que deu o nome de Pinakes..Assim foi durante séculos, à revelia das profundas transformações políticas e sociais no Egito e no mundo então conhecido, e não sabemos exatamente como é que essa luz se extinguiu definitivamente. Pelo fogo, dizem muitos. A versão mais popular desta história diz que a biblioteca foi destruída por ordem de Alas Amir, governador provincial do Egito, em nome do califa Omar pouco depois da conquista árabe em 642, mas a verdade é que nunca o saberemos..A ideia de reconstituir na era contemporânea a mítica Biblioteca foi proposta pela primeira vez em 1974, durante o mandato de Nabil Lotfy Dowidar como reitor da Universidade de Alexandria. Mas só viria a ser concluída em 2002, com a colaboração da UNESCO, e a arquitetura futurista do estúdio norueguês Snohetta. A Biblioteca Alexandrina, assim foi designada, é a maior do Egito e uma das maiores de África..Vaticana.Nenhuma biblioteca no mundo intrigou tanto os escritores e até os teóricos da conspiração. Foi concebida à imagem da biblioteca florentina de São Marcos por iniciativa do Papa Nicolau V, humanista, grande colecionador de manuscritos de todo o tipo, que, ao morrer, deixou uma biblioteca privada de mais de 800 códices latinos e 350 gregos, que constituiriam o espólio original da Vaticana. O seu projeto foi realizado durante o pontificado de Sixto IV, sob a direção de Bartolomeu Platina, e consagrado por uma bula de 1445, declarando a intenção de criar uma biblioteca pública "para o decoro da Igreja militante, difusão da fé católica e em proveito e honra dos eruditos e literatos.".O crescimento substancial do espólio (nomeadamente após a invenção da imprensa em 1455) levaria o Papa Sixto V a mudá-la de local, encomendando a obra ao arquiteto pontifício Domingos Fontana. A Biblioteca do Vaticano é composta por um grande salão com mais de 70 metros de comprimento e 11 metros de largura e acomoda a história e os pensamentos da humanidade através de arte, literatura, matemática, ciência, direito e medicina, do início da era cristã até os dias atuais, em diversos idiomas. Inclui também o chamado Arquivo Secreto que tantas imaginações desencadeou e que serve de repositório de todos os atos promulgados pela Santa Sé, além de correspondência dos Papas e documentos administrativos. Dirigido pelo cardeal português, José Tolentino de Mendonça, mudou há bem pouco tempo de nome, passando a ser designado por Arquivo Apostólico do Vaticano..San Lorenzo de El Escorial, Espanha.Quem cultiva a "lenda negra" de Filipe II de Espanha, I de Portugal, acentua os fumos da Inquisição mas tende a esquecer a sua vasta cultura humanística e a verdadeira paixão que tinha pela arquitetura, de que resultaram obras por si supervisionadas, como o Mosteiro do Escorial, a cerca de 40 quilómetros de Madrid, ou a Igreja e Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa. Ora, seria precisamente no primeiro, que, na segunda metade do século XVI, se construiria uma das mais monumentais bibliotecas da Europa, a pedido de humanistas como Juan Páez de Castro, que, num longo memorial, expôs ao rei a necessidade de a Espanha ter uma biblioteca pública capaz de ombrear com o que já existia noutros países, nomeadamente em Itália (São Marcos de Veneza, Laurenciana de Florença e a Vaticana). Aí, propunha Castro, reunir-se-iam os autênticos tesouros manuscritos ou impressos que estavam dispersos por toda em Espanha, em bibliotecas de mosteiros, catedrais ou de particulares..A obra do Mosteiro levou 21 anos a ser concluída, mas antes disso, em 1565, já os primeiros livros lá chegavam (muitos deles provenientes da riquíssima biblioteca pessoal de Filipe II) fundamentalmente para uso dos monges jerónimos. O salão principal, com 56 metros de comprimento e dez de altura, está decorado com frescos de Pellegrino Tibaldi e quadros de pintores como Carreño de Miranda ou Pantoja de la Cruz, que complementam as estantes concebidas pelo próprio arquiteto do Escorial, Juan de Herrera. Apesar de tragédias como o incêndio de 1671 ou o saque realizado pelas invasões napoleónicas no princípio do século XIX, a Biblioteca do Escorial continua a ser celebrada, não apenas pela sua beleza monumental mas também pela riqueza dos catálogos não apenas em língua castelhana, mas latim, grego, árabe e hebraico..Tianjin Binhai, China.Inaugurada em 2017, parece uma nave espacial chegada do futuro. Desenhada pela empresa de arquitetura holandesa MVRDV, em parceria com o Instituto de Planeamento e Design da cidade de Tianjin, esta biblioteca corresponde muito provavelmente, como escreveu a Newsweek à data da inauguração, à realização do "sonho mais louco de um bibliófilo." Com uma área de 33 700 metros quadrados, tem um acervo de mais de um milhão de obras, mas mais impressionante do que estes números é a própria conceção do espaço, que permite ao leitor escalar as estantes do primeiro ao quinto piso como se estivesse na montanha. Tudo isto em torno de um globo luminoso - intitulado The Eye - dentro do qual está o gigantesco auditório da instituição. Escusado será dizer que esta singular casa de livros se tornou rapidamente o ponto turístico mais importante desta cidade no Norte da China.