"NBA? Havia campos com baldes para os jogadores vomitarem"
Internacional português desde os Sub-20, Betinho disse adeus à seleção há apenas uns meses, para se concentrar na carreira. Tem 34 anos e quer jogar mais três ou quatro ao mais alto nível.
Como começou a jogar basquetebol em Cabo Verde?
Estava numa ilha só jogava futebol. Quando tinha 12 anos mudei de uma ilha para a outra, onde fiz novos amigos, e todos jogavam basquetebol. E foi aí que começou a aparecer o interesse. Comecei a sair com eles e a ver jogos de basquetebol na televisão e quando vi o Michael Jordan pela primeira vez fiquei apaixonado com o que ele fazia, saltava muito no ar. Fiquei maravilhado. Queria fazer o mesmo que ele, queria experimentar fazer as coisas como ele fazia. Foi aí que começou.
Começou com a influência do melhor...
Sim, exatamente. Acho que muita gente começou por causa dele na altura.
A altura se calhar ajudava, já era grande?
Não. Era baixinho. Daí o Betinho...
Foi assim que o João Roberto Correia virou Betinho?
Foi mais por causa do nome do meu pai que se chamava Beto. Então puseram-me Betinho porque era filho dele e pequenino na altura. Ninguém achava que fosse crescer tanto, mas a minha mãe é alta e eu dei um salto muito grande entre os 12 e os 15 anos.
Como é que se dá a viagem para Portugal?
Aconteceu quando tinha 16 anos. Vim jogar um torneio da CPLP, onde esteve Portugal, Brasil, Angola e Cabo Verde e nesse torneio fomos vencedores. E foi aí que o senhor Carlos Pires, que estava com a direção da Federação me convidou para ir ao Barreirense fazer uns testes, durante uns 15 dias. Fui lá, correu tudo bem e, quando me perguntaram se queria ficar, nem duvidei. O meu sonho era sair de Cabo Verde e ir para fora e tentar ser melhor.
Aos 16 anos ficou sozinho em Portugal?
Vim sozinho. Sou um aventureiro [risos]. Não foi fácil, mas sempre fui uma pessoa muito forte psicologicamente. No início custou por causa da língua e também por causa do frio. Cheguei aqui era agosto/setembro e eu a morrer de frio. Já andava de casaco, de kispo e tudo. Passeio o ano todo sempre a ficar doente por causa do frio. Mas a família aceitou bem, sabiam que em Cabo Verde não havia muito futuro e muito menos no desporto e no basquetebol.
Foi nessa altura que percebeu que se calhar poderias fazer carreira no basquetebol?
Sim. O meu objetivo era sempre melhorar. Queria ser o melhor, ser como o Michael Jordan, então dava sempre o máximo.
E houve alguma altura em que achou que estavas quase?
Nem de longe. Havia momentos em que conseguia fazer alguma coisa que ele fazia porque o imitava sempre. Mas o facto de querer ser como ele fez-me ser melhor que os outros, para ser como ele tinha de trabalhar muito e assim conseguia ser melhor que os meus companheiros.
E trabalhar muito era o quê?
Por exemplo, quando tinha uma manhã livre, em vez de ficar na cama a dormir até tarde, ia para o pavilhão fazer as coisas que precisava melhorar.
A evolução na carreira acabou por ser normal e empurrou-o até Espanha, onde a modalidade está mais evoluída?
Sim. Quando fui a Espanha foi mais a pensar na seleção nacional, mas também era um objetivo que eu tinha, o de um dia jogar na melhor liga da Europa, por isso não hesitei em ir para Espanha, sabia que era uma competição muito diferente de Portugal, mais forte. E sabia que poderia evoluir muito mais em Espanha. Era um objetivo, assim como jogar na NBA...
Já que falou na NBA...
Foi uma experiência única. Apesar de não ter ficado, não creio que tenha sido um aspeto negativo. Aliás, foi mesmo positivo na minha carreira. Ajudou-me a ser melhor jogador, pessoa também. Percebi que precisava de trabalhar muito mais para ser melhor. Aquilo era mesmo muito duro. Numa semana, num torneio com seis equipas, fazia um treino de manhã, almoça e estava no avião, novamente a viajar. Chegava lá, dormia, acordava e treinava. Assim, durante seis dias. Estava estoirado. E os treinos... não vale a pena dizer. Mesmo duro. Havia campos que tinham baldes de lado para os jogadores vomitarem.
Por causa do treino?
Sim. Eu por acaso não vomitei.
Chegou a ser dado como uma escolha praticamente certa na segunda ronda do draft da NBA de 2007...
Foi nos Portland, agora não me lembro bem do nome do treinador. Ele chamou-me ao gabinete, algo que não costuma fazer muitas vezes, e disse que gostou muito de me ver, que gostou da forma como defendia. Disse que eu era parecido com o Bruce Bowen, na altura era um jogador muito defensivo na NBA. E disse que se eu jogasse como ele ele fazia já um contrato comigo. Mas depois, por razões que não sei dizer, não se concretizou.
O que faltou?
Talvez um bom agente. Influencia muito ter um bom agente que conheça o meio. Porque a NBA é um mercado... por exemplo, aqui na Europa ou Portugal, jogadores com o meu físico há poucos, não há muitos, mas nos EUA tens milhares de jogadores assim. Então ou tens conhecimentos e tens alguém lá dentro que te consegue manter aí ou então é quase impossível.
E o que é que veio dessa experiência?
Saber que precisava de trabalhar mais para chegar mais longe. Lá senti-me pequenino. Até porque os americanos lá trabalham de forma diferente do aqui na Europa. Têm mais conhecimentos a nível do basquetebol do que nós aqui. Era muito mais difícil do que aquilo que eu pensava.
Continuando na NBA, há agora outro português que está a passar pelo sonho de entrar. O Neemias Queta, que também passou pelo Benfica. Ele optou por se retirar do draft, mas que conselhos lhe daria?
Nesse aspeto fez bem. O conselho que lhe daria: ser humilde e trabalhar muito. Isso ele já tem de sobra. E acreditar nos sonhos dele. Para trabalhar que vai conseguir.
Circularam alguns vídeos dele que surpreenderam pela sua qualidade defensiva. Viu? Ficou surpreendido?
Surpreendeu-me muito, porque eu trabalhei com o Neemias no verão passado, esteve uma ou duas semanas connosco a trabalhar. Era um jogador que parecia que não conseguia correr, não conseguia saltar. No espaço de um ano, na universidade, mudou completamente. Quando vi o vídeo pensei... "este é o Neemias? Não pode ser". Isso é uma coisa boa que ele tem. Aprende muito depressa e isso pode ajudar. Acho que ele fez bem em esperar mais um ano para melhorar como jogador para poder estar na NBA.
Até onde acha que ele pode ir?
Acho que ele pode chegar longe. Como já disse, ele tem uma coisa muito importante que é a humildade. E vontade de trabalhar. Acho que pode chegar longe.
Agora vamos ao Benfica. Como é que aparece o Benfica na vida de Betinho?
Já apareceu há muito tempo, desde que tinha seis anos.
Então?
Eu não conhecia o Benfica, porque não via televisão quando era miúdo. A gente não tinha televisão lá em casa. A minha família na altura era muito pobre. Um dia qualquer, havia muita gente na rua a festejar, a dançar e cantar e isso e perguntei "o que é que se passa?" e responderam "o Benfica foi campeão". "Ah. Ok." Comecei a festejar com eles e a partir daí Benfica sempre.
Imagino que na primeira vez que lhe falaram da possibilidade de vires para o Benfica jogar não hesitaste...
Exatamente, nem sequer duvidei por um momento. Foi um sonho realizado. Se bem que na altura não foi da melhor maneira porque estava lesionado quando cheguei aqui. Tive de esperar um mês ou dois para estar em forma e conseguir ajudar a equipa. Mas foi muito positivo os três anos que estive aqui. Como sabe, ganhámos quase tudo, três campeonatos...
Aos 34 anos, o que é que ainda podemos esperar de Betinho?
Um Betinho sempre lutador, que vai fazer tudo pela equipa. Acho que muita gente espera um Betinho muito ofensivo, mas isso nunca foi o meu ponto forte. Todas as equipas onde estive, quer na liga mais fraca quer na mais forte, o meu trabalho ofensivo sempre foi o mesmo. Mas no que toca ao trabalho de equipa, defender, ressaltos, deixar tudo no campo, isso podem esperar sempre de mim.
Disse adeus à seleção há alguns meses. Porquê?
Acho que dei muito à seleção desde os 20 anos. Há 14 anos. Como já chegou a uma altura da minha carreira em que acabo por pensar mais no futuro e o meu objetivo é continuar a jogar duramente mais três ou quatro anos ao mais alto nível. Foi por isso que decidi abandonar a seleção, de forma a poder durante o verão descansar melhor o meu corpo para estar a 100% quando começar a época desportiva.
Na conferência de imprensa de despedida disse: "já andava a pensar nisto, mas não queria. Sinto como se fosse uma ingratidão com a Federação. Não ver o meu nome ali na convocatória é estranho." É isso?
Na seleção sempre me deram tudo. A Federação nunca falhou. Sempre estiveram disponíveis comigo. Sei que a seleção está a passar por uma fase não muito boa, mas já andava há uns anos a pensar nisso mas nunca tive coragem de falar com eles e dizer que ia deixar de ir à seleção porque sentia que ia ser um bocadinho ingrato com eles. Mas também chega o momento em que tens de pensar na tua vida, na tua carreira, e foi essa a decisão que tomei.
E a carreira trouxe-o de novo ao Benfica...
Exatamente. Estive cinco anos lá fora, Andorra, Itália, onde cumpri os objetivos todos das equipas, mas faltou aquela festa no fim. Isso só ia conseguir aqui no Benfica, por isso estou aqui. Tem de ser claro para todos os jogadores aqui no Benfica. Vens aqui é para ganhar. Não há outra opção.
Antes do Benfica falou-se no Sporting. Houve alguma coisa ou foi só conversa?
Não. Nem falaram comigo. Falaram com a minha mulher porque é amiga de um que está no Sporting. Mas não houve conversa a partir do momento em que recebi a chamada do Benfica.
Disse que queres jogar mais três ou quatro anos ao mais alto nível. Já pensas no que fazer daqui a três ou quatro anos?
Sim, há muitas ideias. Ainda por cima, a minha mulher (Sofia Ramalho) está sempre a chatear-me a cabeça. Ela também jogou basquetebol durante muitos anos - dez anos em Espanha. Ela tem muitos projetos na cabeça, como campus... não sei. Procuro focar-me mais no presente. Mas vai ser como treinador ou como agente. O meu agente, que é um dos mais conhecidos da Europa, já me ofereceu a possibilidade de um dia trabalhar com ele. Por isso... há muita coisa em aberto.
Gosta de ver basquetebol? És espectador?
Gosto, mas não vejo. Porque tendo dois filhos e é quase impossível. Não tenho poder sobre os comandos. É verdade, fora de brincadeira, quase nunca vejo porque estou quase o tempo todo com os miúdos a brincar. Tenho um com 9 anos que não quer saber nada de basquetebol e um com dois anos e meio, vai ser o segundo português a entrar na NBA, depois do Neemias [risos].
Na sua opinião, no basquetebol o que é mais importante, talento ou trabalho?
Como diz a frase "talento sem trabalho não é nada". Já vi muitos casos. Por exemplo, quando cheguei aqui, disseram que eram o futuro do basquetebol em Portugal, mas hoje em dia não chegaram a nada por causa disso. Porque não trabalharam. Lembro-me, quando havia manhãs livres, de ir treinar e eles escusavam-se, ficavam a descansar, iam para a praia... é por aí. Trabalha-se muito pouco. Há pouca ambição, por assim dizer.
E também porque se calhar há pouco futuro...
Também... já não é como antigamente. Quando cheguei aqui havia um nível de basquetebol muito grande, havia condições em termos financeiros, havia americanos de qualidade a jogar, havia também muitos espanhóis a jogar aqui nesta liga... hoje já não se vê muito disso. Acaba por desmotivar um pouco os atletas.
Como é que o Betinho lida com a derrota?
Mal, muito mal. A seguir aos jogos quase nunca durmo por causa da adrenalina. Por exemplo, em Itália jogava às 21.00. Chegava a casa e só dormia às quatro da manhã quando a gente ganhava. Quando perdia dormia, às seis ou às sete da manhã. Dou muita volta na cama. Passo a noite toda a pensar no que se passou, no que correu mal, no que podia melhorar.
E consegue tirar ilações?
Sim, vejo-me a mim mesmo. O que é que se passou. O que fiz mal. E também vejo o que se passou com a equipa, para no próximo treino conseguir melhorar a situação.
Como lida com o facto de o Betinho ser, para alguns jovens, o que Michael Jordan foi para si?
Isso também é uma das motivações que tenho. Tentar sempre ser melhor para motivar a malta. Mesmo no Instagram e no Facebook recebo mensagens de jogadores novos que dizem que sou uma referência para eles, isso ajuda-me a trabalhar para ser melhor. Também aumenta a responsabilidade, mas isso não me preocupa. É uma coisa que gosto de fazer e faço com toda a tranquilidade possível. O basquetebol significa tudo para mim. Agora não sei o que faria sem basquetebol.