Benzer o inferno nas sedes do Partido Comunista

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Ocliente que se sentava no banco da barbearia central da cidade, naquela manhã de Agosto de 1975, não queria apenas cortar o cabelo António Lopes estava ali para proclamar em silêncio que, apesar de lhes terem incendiado a sede dois dias antes, os comunistas permaneceriam em Braga, pois os dirigentes e militantes do PCP não se amedrontariam por lhes queimarem as barbas de Marx nem por verem a imagem de Lenine a fumegar.

Três décadas volvidas sobre esse Verão que cheirou a pólvora, o então responsável do PCP em Braga, sentado numa sala de reuniões da actual sede, em que há uma tapeçaria com o rosto de Marx proveniente da ex-RDA, recorda para o DN a "horrível sensação da chuva de pedras" sobre a fachada, a partir os vidros da casa solarenga do Campo da Vinha, no domingo 10 de Agosto de 1975, e de ver o edifício a arder na manhã seguinte.

No dia de missa, lembra o dirigente do PCP, antes do almoço já as estações de televisão estrangeiras procuravam o melhor ângulo para filmarem o ataque às instalações - e a ira à solta devastaria ainda a sede do MDP e o mercado do povo (onde eram vendidos produtos de empresas em autogestão).

Apesar das promessas do cónego Eduardo Melo, num ofício timbrado da Vigariaria Episcopal, em que o prelado envolvido com as redes bombistas de direita garantia que a manifestação de apoio ao arcebispo de Braga, D. Francisco Maria da Silva, seria pacífica, nem os jornalistas forasteiros pareciam ter dúvidas acerca do filme do dia. "Por nossa parte, tudo faremos no sentido de que haja ordem e tranquilidade já que, como cristãos, pretendemos o Amor entre os homens", lia--se no convite do cónego para uma reunião, no dia 7, com os partidos.

Os representantes do PCP, MDP-CDE, MES e FSP terão defendido a mudança da data, pois alegavam que muitos sacerdotes, "além de pregarem nas suas homílias um histérico anticomunismo, incitavam os seus paroquianos a virem munidos de 'cacetes para o que desse e viesse'", como consta do "relatório circunstanciado dos acontecimentos" elaborado pelo PCP.

Na origem da manifestação estava um propósito de desagravo ao arcebispo primaz das Espanhas, que tinha sido revistado por militares do Copcon [estrutura liderada por Otelo] que, de G-3 em riste, o obrigaram à humilhação de ter de se despir, antes de apanhar o avião para participar num congresso eucarístico em Brasília, na sequência de uma denúncia anónima que o acusava de levar divisas ilegais - só se podia sair do País, na época, com uma certa quantia de dinheiro, para evitar a fuga de capitais.

Ora, hoje sabe-se que foi uma manobra idealizada pelos exilados de direita Jorge Jardim (o antigo Lawrence da Arábia de Moçambique), Sanches Osório (o spinolista envolvido no derrube do marcelismo e que, depois, lançou OEquívoco do 25 de Abril e organizou o MDLP) e Paradela de Abreu (editor de Portugal e o Futuro, o célebre livro de Spínola, que formou o movimento anticomunista Maria da Fonte), para acicatar o prelado contra o poder gonçalvista. E Vasco Gonçalves, ironizaria mais tarde o secretário de Estado americano Henri Kissinger (AnosdeRenovação, Gradiva), "se não era comunista assumido e filiado seria para não pagar as cotas do partido".

No fim da manifestação diante da Sé, o arcebispo - acusou logo o PCP no seu "relatório circunstanciado" -, "numa linguagem inquisitorial, antievangélica e dum anticomunismo primário, procurou alimentar um clima de irraciona- lidade e intensamente emotivo de modo a criar o condicionalismo adequado ao desencadeamento de acções violentas que terminariam por levar a sua mais directa claque de apoio, enquadrada por sacerdotes empunhando megafones, a ulularem 'morra o comunismo' e 'abaixo os comunistas'".

Alguns proprietários ou sócios de firmas , que o mesmo documento [onde constam os seus nomes, que aqui são omitidos, tal como os dos executantes] rotulava como sendo "destacadas figuras dos meios reaccionários", teriam contratado "criminosos profissionais e de largo cadastro, mediante boa gratificação monetária, para tomarem a iniciativa do apedrejamento, tentativa de assalto e incêndio".

A multidão juntou-se diante do centro de trabalho [denominação que o PCP usa para sede], multiplicando os "morras!", como se tivesse sido benzida para mandar os vermelhos para o inferno. Mas, sempre que tentava forçar a porta, era rechaçada a tiro de caçadeira. Os comunistas nunca poupariam a passividade das forças do Regimento de Infantaria de Braga, PSP e GNR, que os deveriam defender. No relatório, denunciam mesmo o comandante da GNR, "conhecido como um importante protegido do ex-ministro fascista Rapazote, hoje [então] a monte", que incentivava os sitiantes a "queimarem os comunistas e deitarem-lhes gasolina".

Após aquele "dia de guerrilha", conforme relembra ao DN António Lopes, os militares abandonam o local pelas quatro da madrugada, aparentemente devido à desmobilização dos manifestantes. "No meio da confusão, arrancaram-nos os fusíveis do quadro eléctrico, que ficava no rés-do-chão, mesmo nas barbas da polícia, e ficámos sem luz," conta o dirigente comunista. Na manhã seguinte, além de incendiarem um automóvel que pensaram ser do partido ("o nosso ficara estacionado longe"), a PSP não impediu que, pelas dez da manhã dessa segunda-feira, "um grupo de miúdos corrécios, que eram a tropa de choque da direita", lançasse desperdícios de uma bomba de gasolina embebidos com produtos inflamáveis para o interior do edifício.

O fogo alastrou rapidamente e os seus autores não deixariam passar os bombeiros. A sede tinha um quintal amplo, nas traseiras, para onde foi retirada a documentação importante (dos ficheiros à contabilidade), as máquinas de escrever de fabrico leste-alemão ("muito boas"), o frigorífico e o fogão do casal de funcionários que ali morava, a televisão e um rádio portátil.

Mesmo barricados no quintal, os comunistas mantinham as suas pistolas e espingardas para responder a quem ali tentasse entrar. E, como ainda mantinham o telefone, conseguiriam que outras tropas se dirigissem para Braga. Os fuzileiros, dispersando a manifestação com tiros e granadas, encostaram as carrinhas à sede, de onde foi retirado tudo o que tinha sido salvo, e levaram os comunistas para o quartel de Braga, onde António Lopes responsabilizou o comandante pelo sucedido e quase houve fricção entre as fardas e as armas dos fuzos e dos bragantinos.

O distanciamento histórico permite pensar numa espécie de efeito bumerangue quando a fronteira simbólica entre o Sul e o Norte era Rio Maior, que então se popularizou pela "moca" anticomunista e onde a sede do PCP foi destruída a 13 de Julho. Antes, eram intimidados os militantes e boicotados os comícios do CDS e do PPD no Sul; agora, os centros de trabalho do PCP eram atacados em Aveiro e Leiria, Viseu e Guarda, Ponte da Barca e Ponte de Lima, Fafe e Famalicão, Águeda e Ílhavo, Tondela e Seia, Cantanhede e Ansião, Batalha e Peniche. Só em Agosto, registou Álvaro Cunhal em "A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril" (Avante!), houve 153 "acções terroristas", destacando-se "assaltos com destruição de 55 centros de trabalho do PCP e 25 do MDP-CDE, 39 fogos postos, 15 bombas, dezenas de agressões".

Franco Charais, então comandante da Região Militar do Centro e um nome do moderado Grupo dos Nove, conta que os assaltos "eram dinamizados nas feiras, onde se juntavam grandes quantidades de pessoas" (O Acaso e a História, Âncora). "Eu próprio testemunhei, num café de estrada, em Pombal, um cliente assomar ao balcão, pedir uma bebida ou uma sande e meter conversa com o empregado, perguntando se a sede do PCP em Pombal ainda estava inteira. Como o empregado respondesse que sim, o cliente disse que era uma vergonha para a terra ainda nada ter sido feito e o empregado lá teve que retorquir que estavam a pensar no assunto."

Em Braga, "o clima de hostilidade reaccionária", na opinião dos comunistas, também era gerado por manifestações e comícios de PS e PPD. Um dos exemplos apontados terá sido a afirmação proferida, "em ambiente emocional", por Mário Soares, na Feira Agro, dias antes do cerco, de que "o comunismo não passará". O então líder do PS dirá, anos mais tarde, na entrevista-livro de Maria João Avillez (Soares. Ditadura e Revolução, Público), "que não podíamos aprovar os incêndios nas sedes comunistas".

Ironia da História. "Hoje, temos filiados no PCP que estiveram no assalto ao centro de trabalho." Como? Um sorriso de António Lopes. "Descobriram que os comunistas não comem as criancinhas."

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