Com as casas danificadas, inundadas, sem telhado, destruídas, a habitação acaba por ser a grande preocupação de quem vive o efeito devastador do ciclone Idai, que atingiu Moçambique há precisamente três semanas. Mesmo que estejam doentes, com feridas e infeções, com fome, e também falta de roupa. Uma realidade com a qual Joana Pinheiro, psicóloga da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), não estava habituada a lidar, mesmo quando ajudou as vítimas dos incêndios de 2017 em Portugal..Chegou no dia 25 de março à cidade da Beira, capital da província moçambicana de Sofala, a mais atingida pelo ciclone e seus efeitos, com a equipa da CVP e Médicos do Mundo (MdM). Montaram o hospital de campanha junto ao Centro Urbano de Saúde de Macurungo, depois de perceberem as necessidades da população: urgência, consultas de adulto, criança, materno e maternidade..Também necessitavam de um gabinete de psicologia, apoio social, uma vez que a tempestade destruiu esse espaço e todo o equipamento. Joana deixou Lisboa com a expectativa de apoiar quem passou por toda a catástrofe, ensiná-los a ultrapassar psicologicamente a situação, que os técnicos identificam como stress pós-traumático e habitualmente só acontece em cenários de guerra..Entra uma mulher na tenda de consultas, Joana Pinheiro pede-lhe para se sentar, pergunta-lhe como se sente. Quer, sobretudo, ouvi-la. Não estava à espera do que ia ouvir, a paciente estava preocupada com o telhado da casa e esse foi o tema da consulta. "A sua grande preocupação eram as placas de zinco do telhado, tinham voado a maior parte e a senhora não tinha telhado. A conversa foi muito direcionada para a resolução do problema, como conseguiria ter pelo menos um compartimento da casa coberto, onde pudesse dormir e eventualmente comer. Tinha duas placas no quarto e duas na sala e o que ela perguntava era se retirava as placas da sala para tapar o quarto, ou o contrário, para poder ter pelo menos um compartimento fechado." Um exemplo que mostra como a realidade e o contexto são tão diferentes daquilo a que estão habituados. "São questões muito práticas que aqui nos chegam.".Segundo o Instituto Nacional da Gestão das Calamidades (INGC), o ciclone Idai destruiu 62 153 casas em Moçambique, maioritariamente na província de Sofala, 34 139 parcialmente destruídas e 15 784 inundadas, maioritariamente habitações de construção precária. Provocou danos em 3344 salas de aulas, o que prejudicou 150 854 alunos..Outra atitude face à tragédia.Outra diferença detetada pela psicóloga é a resiliência dos utentes. "As pessoas crescem e desenvolvem-se num contexto que, para nós, é atípico. Por isso, a sintomatologia que é normal na nossa realidade, numa situação pós-crise, pós-exposição a questões adversas, deixa de existir neste contexto", explica Joana Pinheiro. Ao mesmo tempo, "é extremamente interessante e um desafio constante"..E "torna a ajuda ainda mais estimulante, um grande desafio, honra e privilégio", diz Lara Martins, vice-presidente da CVP, chefe da missão em Moçambique e onde ficará até ser preciso. Francisco George, o presidente da instituição, já disse que poderá ser até ao final do ano. Lara encolhe os ombros e ri. Afinal deixou Portugal no dia em que completou 36 anos, o que é demonstrativo da ordem das prioridades na sua vida..Chegaram à Beira já a população estava refeita do choque inicial. Notam os voluntários que as pessoas estão a retomar as suas rotinas, a regressar ao trabalho, a voltar às escolas ou pelo menos a algumas salas, a apanhar um autocarro, nesta semana começou a haver energia e água em alguns sítios, as comunicações melhoraram..E até quem chegou para apoiar está mais organizado, nota a técnica, isto 11 dias depois da chegada do ciclone. "Há muito mais ONG no terreno e começa a haver circuitos mais organizados, quer nos procedimentos, quer na seleção das pessoas, quer na orientação dada à população. Se a pessoa precisa de alimentos vai a uma entidade, se é de saúde vai a outra, etc.".A missão portuguesa instalou-se em Macurungo com 20 elementos, foi reforçada nesta segunda-feira com mais quatro, dois enfermeiros, entre eles uma parteira, e dois técnicos de logística, num protocolo entre a CVP e a MdM e estabelecido pela primeira vez entre as duas organizações..Chegaram na segunda-feira de manhã e, entre as 09.00 e 21.00, com sol e um calor húmido arrasador, depois de nove horas de voo, retirar toneladas de caixotes do avião, no porão, também na bagageira na cabine e não só, os pacotes e caixas ocuparam os assentos dos passageiros. "Ter 35 toneladas de material para descarregar e não haver suporte logístico do país foi um desafio enorme e a equipa médica não é propriamente de logística. Mas também foi isso que ajudou a formar a coesão nesta equipa", diz Lara Martins..Estavam preparados para dormir em tendas junto ao hospital de campanha, um português que cedeu a sala de conferências do seu restaurante, o Solange Beach, em frente à marginal da Beira, sacos-cama estendidos no chão, uma casa de banho para todos, mas onde podem descansar numa sala com ar condicionado e ter uma refeição quente ao jantar. Durante o dia, comem refeições de combate, massa com vitela ou frango asiático, por exemplo, latas de conserva, embalagens com geleia, barras, também café solúvel. Não é mau para uma primeira vez, não é o caso dos voluntários..Lara Martins é oficial da Marinha - esteve nas operações de combate à pirataria na Somália -, foi requisitada por Francisco George, que foi seu professor, para a direção da CVP. Define as atuais funções como "uma grande aventura". E surpreendeu-se ao gostar de comandar civis. "Estou a liderar um grupo de civis e agradavelmente surpreendida pelo entrosamento, espírito de união, coesão e animação, que tem sido diária e o maior fator de motivação.".Trabalham em Macurungo, um bairro da periferia da cidade da Beira, onde as barracas nascem como cogumelos, na proporção inversa à criação de infraestruturas. "É um bairro pobre, muito populoso, onde, naturalmente, todo o desafio para controlar qualquer doença infetocontagiosa é maior. Sabemos que, muitas vezes, não são a própria doença e o tratamento médico os maiores problemas, que tudo começa pela prevenção e as condições higiénico-sanitárias. Se estivermos a falar da cólera, os desafios acabam por ser maiores num bairro como este, em que todas as condições higiénico-sanitárias são deficitárias", conta Gonçalo Órfão, o coordenador operacional. Um médico de 31 anos, com formação académica e parte clínica em Coimbra..Diarreias e infeções.As consultas que habitualmente seriam de rotina, neste hospital, acabam por ser de reação à calamidade. "Os principais problemas são as diarreias (obviamente que não temos diagnósticos definitivos de cólera), mas também doenças infetocontagiosas (gastroenterites), malária (é uma zona endémica), doenças virais e infeções." A sala (tenda) das urgências está preparada para pequenas cirurgias (feridas, cortes, abcessos), para administrar soro e antibiótico por veia intravenosa..Os casos de diarreia, e quando há suspeita de cólera, são encaminhados para o hospital de campanha da UNICEF suíça, instalado ao lado, com coordenação dos Médicos sem Fronteiras (MSF). Está vedada e com segurança, como o da missão portuguesa, mas com muito maiores restrições de entrada. Todos quantos ali trabalham usam batas descartáveis, toucas e máscaras. Muito desinfetante e lixívia para usar continuamente..O espanhol José Vallego é o coordenador daquele hospital, um dos seis elementos dos MSF, ali deslocados e que trabalham em coordenação com o Ministério da Saúde moçambicano. Não é a primeira vez que está numa situação de crise, também com uma calamidade a abater-se sobre uma população tão pobre. E com a qual é preciso saber lidar, por exemplo, ceder ao impulso de dar água, comida, dinheiro, a toda a hora.."Temos de perceber qual é a população que temos e como vamos lidar com ela", explica José Vallego. Dar pura e simplesmente pode não ser a solução e, até, causar conflitos, porque os pedidos não vão parar. O que o preocupa, neste momento, é detetar as causas da diarreia. "Se é cólera, o doente fica internado entre 24 e 48 horas, só nos casos graves poderá ficar 72, depois vai para casa medicado. E precisa de beber muita água." Têm capacidade para cem doentes. Aqui se deu uma das duas mortes recentes em Moçambique..A vacinação à população começou esta quarta-feira, UNICEF levou para a Beira 900 doses da vacina da cólera..Estão contabilizados 1741 casos de cólera desde a passagem do ciclone e 94% estão curados, segundo as autoridades moçambicanas.