De repente, de um segundo para o outro, corpos muito pequenos, por vezes com pouco mais de dois quilos, já cinzentos, e com os médicos a achar que não sobreviveriam, ganham cor, tornam-se rosados e agarram a vida. Este é o momento que "compensa tudo", dizem Francisco Abecasis e Zélia Soares, médico pediatra, diretor do Programa ECMO na unidade de cuidados intensivos pediátricos do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e a enfermeira chefe responsável pelo programa..Este foi o momento que Afonso viveu na madrugada do dia 1 de outubro. Horas depois de ter nascido, uma hipertensão pulmonar, associada à hérnia diafragmática que lhe tinha sido detetada aos três meses de gestação, fez que o coração e o pulmão não estivessem a ser oxigenados e começassem a falhar..A equipa do Amadora-Sintra contactou a de Santa Maria para discutirem o caso e perceberem se a ECMO seria a técnica a seguir. Afonso foi ligado à máquina ainda na maternidade do Amadora-Sintra pela equipa de Santa Maria, que seguiu para lá assim que foi chamada. Estava cinzento, mas assim que foi ligado à máquina ganhou cor e só depois foi transportado para a unidade de cuidados intensivos pediátricos do Hospital de Santa Maria, onde permaneceu a lutar pela vida durante mais 26 dias com a ECMO..Sabiam que assim que nascesse teria de ser operado."Ele nasceu no dia 30 de setembro às 11.12, de cesariana, como estava previsto, com 4,690 quilos, sabia que, se calhar, não poderia estar com ele muito tempo, pois deveria ser operado logo a seguir, mas ouvi-o chorar, dei-lhe um beijinho e só depois o levaram. Já foi bom, não estava à espera de o ouvir ou de lhe poder tocar", conta Mariana Serra, de 26 anos, mãe pela primeira vez..Mas ao fim do dia tudo se complicou. "Os órgãos estavam a falhar, o coração e o pulmão, e vieram-nos dizer que estavam a tentar todos os procedimentos para o salvar. Foi difícil, mas tentei sempre acreditar que tudo iria correr bem", acrescenta..O pai, Paulo Serra, de 53 e já com um filho de 27, diz ter tido a noção da gravidade da situação, procurou manter-se sempre calmo, até para não passar essa pressão à mãe, mas, desabafa, "as horas em que tive de estar à espera já aqui em Santa Maria para o estabilizarem e até o Dr. Francisco vir falar comigo foram um pesadelo"..Mariana e Paulo, que escolheram o nome de Afonso mesmo antes de haver gravidez, antes de saberem que era um menino - embora o pai tivesse todas as certezas de que o iria ser -, tentaram viver os noves meses de gestação sem pensar muito no assunto. Apostaram na equipa que os seguia e acreditaram que ia correr tudo bem. "Fui sempre muito vigiada, de três em três semanas ou de mês a mês, para se conseguir monitorizar a evolução do pulmão, e tudo corria lindamente. Adorei estar grávida. Sabíamos que era preciso cirurgia assim que nascesse, não esperávamos mais complicações", confessa Mariana..Afonso esteve 26 dias ligado à ECMO (oxigenação por membrana extracorporal), foi operado com 1 mês de vida, esteve no recobro, passou para a unidade de cuidados intermédios de pneumologia pediátrica, fez reabilitação, fisioterapia respiratória, respondeu sempre bem. "Também ajudou ele ser um bebé forte", diz o médico. Agora, está em casa há três dias e "tem-se portado muito bem", comentam os pais satisfeitos. "À noite dorme lindamente." Depois de tudo, só o querem "ver a crescer e a correr na relva"..Desde 2010, 65 crianças tratadas. Destas, 67% voltaram a casa.Afonso integra o grupo de 65 crianças que desde 2010 passaram por aquela unidade de Santa Maria e que usufruíram desta técnica. Ele faz parte da taxa de sucesso de 67% que a ECMO tem registado na unidade. "Mais de 2/3 das crianças foram para casa, o que é bom", afirma Francisco Abecassis. Mas o sucesso não depende só da máquina, "depende muito da doença-base que leva os doentes a ter de integrar este programa e das complicações que podem surgir", explica.."O Afonso tinha uma hérnia diafragmática congénita, mas tinha uma situação associada a isto, hipertensão pulmonar grave, e tivemos de fazer ECMO durante 26 dias para estabilizar, para depois ser operado ao problema-base que trazia. Mas nem todos os casos são iguais. Um dos últimos bebés que tivemos esteve ligado à máquina mais de um mês, já tivemos outro que ficou dois meses", reforça..O mais pequeno ali tratado com esta técnica foi "um bebé de 34 semanas com 2,100 kg e ficou bem", conta o médico. De acordo com a literatura médica, esta técnica tem critérios para poder ser aplicada e poderá não ter os mesmos resultados se for usada em bebés com menos de 34 semanas e menos de 1,6 kg, mas "há unidades que a usam. Nunca tivemos de responder a uma situação assim, mas gostamos de inovar e se tiver de ser...", comenta Francisco Abecasis..Como diz, a ECMO é a máquina do tempo, é a técnica que dá vida a quem está no limite e que permite ganhar tempo para tratar a doença de base. "Permite oxigenar o coração ou os pulmões ou até mesmo os dois, substituindo-os de forma transitória. Não cura nada, mas com ela ganhamos tempo", reforça.. Gripe A fez que ECMO fosse usada em crianças.Começou a ser usada em adultos, e apenas para ajudar o coração a bater dentro das salas de operações, depois passou para o lado de fora e para ajudar também o pulmão a funcionar. Em Portugal, começou a ser usada no Hospital Santa Cruz, em 2006, mas teve o seu boom em 2009, com a gripe A, altura em que começou a ser usada também a nível pediátrico. Por cá, no Hospital Santa Maria, em Lisboa, e no Hospital São João, no Porto.."A gripe A apareceu no final de 2009 e o hospital teve de se preparar para todos os cenários, sobretudo para os mais graves. A técnica já era usada em adultos e achámos que fazia sentido desenvolvê-la também a nível pediátrico. Eu e a enfermeira Zélia fomos a Estocolmo fazer formação durante um mês, a um hospital de referência para esta técnica, e tivemos o primeiro caso em 2010. A partir daí, tem vindo sempre a aumentar", refere..A equipa de Santa Maria vai buscar crianças onde for necessário. Tanto faz que seja à noite, ao fim de semana, no Natal, no Ano Novo ou em qualquer outra altura. Quando são chamados "é porque a vida de uma criança está em perigo e isso obriga a que não haja uma escala, porque nunca se sabe quando vai acontecer, mas estarmos permanentemente disponíveis, muita dedicação e empenho de toda a equipa. Quando há uma chamada falamos todos e vemos quem pode avançar", argumenta o pediatra..Naquela manhã de sexta-feira, quando falámos com a equipa e com os pais de Afonso na unidade de cuidados intensivos pediátricos, havia choros de recém-nascidos, histórias "difíceis" de crianças mais velhas. Ali, como diz quem lá trabalha, "não há monotonia, mas muita animação". Os casos bons compensam os maus, aqueles que os deixam sem dormir, zangados ou até a dizer "não aguento mais"..Mas é precisamente "nos bons que temos de nos focar, para avançar, para ajudar ainda mais", sublinha a enfermeira chefe, que na sua secretária tem a lista de todas as crianças tratadas em ECMO, com os nomes, embora a maior parte os saiba de cor. Para ali os pais dos doentes enviam fotos de momentos de alegria, postais de Boas Festas ou de agradecimento. "Há casos que nos marcam para sempre", concordam Francisco Abecasis e Zélia Soares..A enfermeira não esquece o primeiro caso de transporte em ECMO. "Marcou-me muito. Foi no dia 8 de novembro de 2010. Estava em casa, ao final da tarde. Tinha estado em Estocolmo em setembro. Tínhamos treinado no hospital, mas aquele caso era para Faro. Uma criança de 10 anos com uma pneumonia gravíssima e que não era possível transportar. Eu, o Dr. Francisco e o cirurgião cardiotorácico fomos daqui numa ambulância carregada de material. Era longe e não podia falhar nada. Só havia espaço para o doente e para nós. Hoje, ainda digo muitas vezes ao Dr. Francisco que não sei como conseguimos fazer aquele caso. Mas correu bem, muito bem, a criança está viva.". Quando a equipa é chamada há sempre uma criança em risco de vida.Para o médico "a ECMO é talvez das terapêuticas que mais emoções nos provocam, porque quando chegamos ao local temos uma criança que está praticamente sem vida. São doentes em que todos os procedimentos foram esgotados, estão cinzentos, alguns parecem praticamente mortos. Às vezes temos de perguntar se ainda está vivo, mas mal começamos a técnica é como se injetássemos vida dentro dos doentes. Ficam rosados. A saturação do oxigénio sobe para 100%. E, de repente, de um minuto para o outro, aquele corpo que estava sem vida ganha vida. Obviamente que isto nos toca. São casos que ficam connosco, mas os que não correm bem também ficam e custam-nos muito"..Zélia Soares, enfermeira há mais de 30 anos em Santa Maria e há 23 na área pediátrica, reforça que é a terapêutica em que "se sente que tudo valeu a pena. Sabemos quais são os objetivos, mas há sempre muitos nervos à mistura, muita adrenalina, mas o momento em que ligamos a ECMO é fantástico. É um alívio que sente, felicidade porque fizemos a diferença, deu-se vida a uma criança e para isto não há sequer palavras para o descrever"..Os pais de Afonso riem-se e dizem que "a técnica é boa, mas eles são excelentes. Foram formidáveis. Apesar de tudo o que passámos aqui, sentíamo-nos seguros, fomos dormir todos os dias a casa. Sabíamos que o Afonso estava bem acompanhado", argumentam..Fazer a diferença com menos camas e poucos enfermeiros.A unidade de cuidados intensivos pediátricos trata situações agudas. Ali recebem crianças com todos os tipos de patologias que necessitam de cuidados especiais. Neste momento, têm oito camas a funcionar, duas estão fechadas por falta de enfermeiros, mas isto "é uma situação que não pode ser resolvida por nós. Terá de ser a administração, e já o está a fazer", explica o médico, justificando: "É frustrante ter capacidade para tratar mais crianças, receber telefonemas a perguntarem-nos se as podemos receber e termos de dizer que não podemos e que têm de procurar outra unidade. Não é o caso quando somos chamados para aplicar a ECMO, mas aplica-se a outras situações.".E explica: "É uma unidade de cuidados intensivos e exige muito. Quando temos situações de ECMO é preciso um enfermeiro só para este caso por turno, e não é fácil com o pessoal que temos.".Ao todo são 18 enfermeiros, mais a enfermeira chefe e a subchefe, e sete médicos. "Nunca tivemos tantos médicos. Temos uma equipa completa, embora três estejam ainda em formação. Só nos falta mais enfermeiros para termos uma unidade aberta no seu pleno.".Em relação à ECMO, há seis máquinas que são divididas entre adultos e crianças, mas só duas dão para recém-nascidos, o objetivo "é que todas as crianças possam beneficiar desta técnica em Portugal, que tenham direito a ela para serem salvas", defende o pediatra, que fez a especialidade no Hospital Garcia de Orta e se mudou logo a seguir para Santa Maria. "Acho que ainda temos um caminho para percorrer, para aumentar a capacidade e fazer mais. Quando esse dia chegar, aquele em que todas as crianças em qualquer ponto do país precisem da ECMO e a possam ter, então fizemos o que nos competia.".Para isso são ainda precisas algumas coisas: "Mais transporte inter-hospitalar, porque cerca de metade dos casos que já fizemos fomos buscar a outros hospitais, mais máquinas e mais pessoas especializadas." Além de "mais divulgação do trabalho que estamos a fazer, porque se não houver quem nos diga que há um bebé que poderia usufruir da ECMO, não a podemos usar"..Afonso teve direito à ECMO poucas horas após nascer. Antes recebeu um beijo da mãe. "Fui vê-lo às duas da amanhã, antes de ele sair do Amadora-Sintra. Falei com ele e apresentei-me como mãe", conta. Mariana ficou internada na maternidade, o pai seguiu com Afonso. Foram três dias distantes dos dois, só se juntou a eles depois de ter alta. Passou 26 dias sem lhe pegar e sem o sentir no colo, mas esse dia chegou. "Houve momentos piores e outros melhores, mas pensei sempre que ele iria conseguir. Acho que lhe transmiti essa positividade", confessa..A família Serra está há três dias em casa mais descansada. Afonso, robusto, ganha peso, sorri, faz esgares e já chora. Levou tempo, mas foi possível "graças à ECMO, que é uma máquina que não sabíamos que existia e que suscita assim um misto de sensações. Por um lado, quer dizer que a situação é grave, por outro é como se fosse milagrosa", referem os pais.