Batuta búlgara na costa do Estoril

Aquela formação de câmara, apoiada pelos dois municípios e que ontem assinalou com um concerto o seu décimo aniversário, já executou umas 1200 partituras diferentes e fez estreias absolutas de várias peças de jovens compositores.<br />
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O lendário instrumentista David Oistrakh, durante aquela visita a uma turma da Escola de Música Nacional Pipkov, em Sófia, onde era professora a sua discípula búlgara Stoika Milanova, pegou no violino de um aluno que ainda estava só "a aquecer os dedos". O virtuoso violinista soviético, em vez de tocar num dos seus Stradivarius (o Conte de Fontana ou o Marsick, que hoje são conhecidos também como Stradivarius Oistrakh ), experimentou as cordas do modesto instrumento daquele estudante e, explicando-lhe que as tinha encerado com pouca resina, ele próprio colocou a quantidade que entendia ser necessária e, depois, exclamou: "Quando se começa a tocar, tem de sair das cordas uma nuvem de pó!"

Ainda hoje o maestro Nikolay Lalov, que é o criador da Orquestra de Câmara de Oeiras e Cascais, formação que está agora a comemorar o décimo aniversário da sua actividade regular, recorda aquele episódio que viveu quando tinha 14 ou 15 anos e ainda não tinha ganho a medalha de ouro que a escola atribuía aos melhores alunos.

O músico que gosta de tocar Beethoven ou Brahms num violino construído em 1892 pelo veneziano Giovanni Schwarz - e a conversa sobre os luthiers, seja em torno dos nomes lendários de Cremona, como Stradivarius e Guarneri , ou da fama do clã português Capela que há muito chegou à Bulgária, corre o risco de eternizar-se - também se diplomou em direcção de orquestra. E seria essa sua dupla formação que o trouxe a Portugal, quando o maestro Álvaro Cassuto precisou de um violinista-maestro para a Nova Filarmonia. O calendário assinalava 1 de Outubro (o Dia Internacional da Música) de 1989 (o ano da queda do comunismo).

Apesar de estar num país para si exótico, a possibilidade de viver em frente à praia e de andar de T-Shirt em Novembro (o Verão desse ano foi excessivamente longo) quando já nevava na Bulgária, levou Nikolay Lalov a encarar a hipótese de se radicar em Portugal, para onde se mudou também a sua mulher, a pianista e compositora Stela Lalova.

Antes de formar a orquestra apoiada pelas Câmaras Municipais de Cascais e de Oeiras, que apresenta mais de 120 espectáculos por ano (por protocolo, 14 concertos e 18 recitais em cada um dos concelhos, mais dez concertos didácticos para miúdos), o casal búlgaro esteve envolvido no lançamento da Escola Profissional de Música de Évora. Da concepção do currículo e escolha dos miúdos para cada instrumentos à formação da Orquestra Juvenil da Cidade de Évora (que até se apresentou na Expo/2000, em Hanôver) cumpriu-se uma etapa.

Depois, Nikolay Lalov propôs a Piñeiro Nagy, o director do Festival Internacional de Música do Estoril, criar uma orquestra ad hoc para actuar na altura daquele acontecimento cultural - por onde passaram, ao longo das cinco edições, nomes como Rostropovich, Nureyev, Teresa Berganza, Marcel Marceau, Michael Nyman, tantos mais.

Após as primeiras participações no festival, Nikolay avançou para um primeiro pedido de apoio da Câmara de Cascais e, após um ano com uma média de cinco concertos, acabaria por obter o apoio daquela autarquia e também da de Oeiras, formando uma orquestra de câmara com músicos com menos de 30 anos. O núcleo residente tem 14 músicos de cordas e cinco de sopros, a que se juntam outros quando é necessário um maior número de instrumentistas para executar certos programas.

Nos anos seguintes, em que passaram do andar no Palácio Ciprestes onde ensaiavam para as actuais instalações no Monte Estoril, além das 1200 obras de todas as épocas e estilos já executadas por aquela formação, Nikolay e Stela tinham saudades do ensino e abriram ali, em 2008, o primeiro Conservatório de Música no Concelho de Cascais, hoje frequentado por mais de 320 alunos e cujos professores são os músicos da orquestra - cada um lecciona seis horas por semana.

O concerto com que a orquestra comemorou, ontem à noite, no Centro Cultural de Cascais (o outro palco muito usado pela formação é o Auditório Municipal Ruy de Carvalho, em Carnaxide), os seus dez anos de existência formal parece bem elucidativo acerca do seu projecto e do seu trajecto.

A peça que abriu o programa foi o Concerto Alla Rústica, de Vivaldi, precisamente a primeira composição executada pela tal orquestra ad hoc do Festival do Estoril. Seguiram--se algumas peças que assinalavam momentos importantes da orquestra, como o Concerto para Dois Violinos, de Bach - um dos violinos era tocado pela filha do maestro, Lilia Donkova, que gravou em Novembro o CD Cantabile, e o outro por Ricardo Mendes, que iniciou os estudos musicais na Escola de Évora e é hoje professor no Conservatório de Cascais. O Concerto em Ré para Orquestra de Cordas, de Joly Braga Santos (que, a par de Carlos Seixas, espantou Lalov quando o búlgaro começou a conhecer melhor os compositores portugueses), mostrava o destaque sempre dado à música portuguesa. E o Divertimento para Cordas, de Sérgio Azevedo, é um exemplo da divulgação de jovens compositores, de que já fizeram estreias absolutas (e a escolha também podia ter incidido em Erico Carrapatoso ou Ana Seara, Friedrich Gulda ou Karl Jenkins).

Nada parece deter o entusiasmo do músico nascido na capital búlgara a 28 de Dezembro de 1959. Organizador da Primeira Semana Cultural de Portugal, que decorreu em Sófia em 1994 (estava ainda a trabalhar em Évora), Nikolay lembra que a maioria do público melómano, algo cansado por ouvir sempre Bach ou Brahms, anda à procura de compositores menos conhecidos e fica espantado ao ouvir, por exemplo, Vianna da Mota, Fernando Lopes Graça ("o Bela Bartok português") ou Cláudio Carneiro. O programa, em colaboração com a embaixada de Portugal, foi alastrando ao cinema e à poesia - e Nikolay Lalov lembra-se de Natália Correia, que lhe foi apresentada no bar Botequim, lhe dizer que adorava o poeta búlgaro Hristo Botev (1848-1876).

Já com a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, o patrício do grande cantor lírico Boris Christoff também levou a Sófia alguns solistas (a cravista Ana Mafalda Castro, o guitarrista António Eustáquio), viu as actuações gravadas pela rádio e televisão búlgaras e, este ano, além da capital, tem de acrescentar ao roteiro Plovdiv e Varna.

A conversa pode voltar aos violinos, pois se os mais famosos luthiers são italianos, já os melhores fabricantes de arcos são franceses - a filha usa um Nicolas Basin, mas Nikolay tem um assinado por François Tourte, o artífice que foi apelidado o "Stradivarius dos arcos".

Ou pode-se dissertar sobre os projectos de pedagogia musical da orquestra, que tanto passa pelo projecto ABC da Música como pela ópera Um Sonho Mágico (ver caixa), e do conservatório, que tem acordos de articulação com três escolas do concelho de Cascais - e, na de São Domingos de Rana, até instalaram instrumentos como a trompa e o fagote. E - quem sabe? - talvez dali possa surgir um novo David Oistrakh, um potencial Paganini.

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