O protagonista da Convenção Nacional de Saúde deste ano é o cidadão, indica o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, um dos principais oradores da conferência que acontece nesta terça-feira, no Centro de Congressos de Lisboa. Durante a sua apresentação, vai defender um aumento da importância dada ao utente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), numa altura em que o sistema "está a perder a capacidade de resposta" e em que no Parlamento se discute a nova Lei de Bases da Saúde..O que se pode esperar da Convenção Nacional de Saúde deste ano? A principal inovação desta convenção é o tom que nós resolvemos dar-lhe, porque vamos centrar a conferência verdadeiramente no doente. Vamos trazer os doentes, através dos seus representantes diretos (associações de doentes), para o debate de algumas questões fundamentais no panorama atual da saúde em Portugal: os cuidados de saúde primários, a medicina de proximidade, o serviço de urgência..Qual é o papel do cidadão/ utente neste Sistema Nacional de Saúde? As pessoas devem participar mais naquilo que são as decisões tomadas no Serviço Nacional de Saúde, o que não acontece agora. Temos de dar poder, dar informação ao doente. Se os doentes tiverem informação fidedigna acerca de várias circunstâncias da medicina, se tiverem acesso aos resultados daquilo que se faz nos hospitais públicos e privados, por exemplo, em termos de cura e eficácia; é evidente que assim podem decidir melhor o que querem ou não querem fazer e onde o querem ou não fazer. Outro aspeto fundamental é o dos representantes dos doentes (neste caso as associações) serem ouvidos, tal como são ouvidas a Ordem dos Médicos e as outras ordens profissionais. Não quer dizer que as suas opiniões sejam seguidas, mas pelo menos ouvir as pessoas..E depois, as pessoas têm de ser responsáveis pelas decisões que tomam. Mas para poderem assumir as responsabilidades têm de ter a informação e têm de ser educadas para a prevenção. Os cidadãos têm de ser o centro do sistema e têm de ter uma importância capital. Não podemos falar apenas dos profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos. Temos também de falar dos cidadãos, que nos podem ajudar a ter uma atitude de prevenção mais eficaz do que aquela que temos tido até agora..Os cidadãos deveriam ter sido mais ouvidos no âmbito da nova Lei de Bases da Saúde? Eu não sei se os cidadãos estão a ser ouvidos sobre a nova Lei de Bases. Independentemente disso, a Ordem dos Médicos foi convocada para se pronunciar em cinco minutos sobre cinco propostas. Isto não é sério. Não querem ouvir ninguém, não oiçam ninguém. A doutora Maria de Belém ouviu durante meses praticamente todas as instituições de saúde até apresentar uma proposta de Lei de Bases da Saúde; não estou a dizer que a proposta era melhor ou pior do que as outras, mas ouviu as pessoas. Mais valia terem pedido contributos escritos..E a proposta para a nova Lei de Bases da Saúde reflete as necessidades do SNS? Não consigo dar resposta relativamente àquilo que é a proposta que está em cima da mesa neste momento, porque ninguém sabe qual é a proposta. O que sei da Lei de Bases da Saúde é que a única questão que é polémica, pelo visto, são as parcerias público-privadas (PPP). Ou seja, a coisa menos importante é a mais polémica..Eu percebo as ideologias políticas, eu percebo que estamos em período pré-eleitoral, mas há uma coisa que eu não percebo: que se dê a entender ao povo português, às pessoas que todos os dias utilizam o Serviço Nacional de Saúde, que a matéria mais importante no que diz respeito à Lei de Bases da Saúde é a existência ou não de gestão privada nos hospitais públicos. Isso é o menos importante, porque se um governo achar que uma gestão privada pode eventualmente ter vantagens num determinado contexto usa. Se não, usa apenas os recursos públicos. Desde que fique um espaço aberto para que seja uma coisa ou outra, isto não me parece um problema. É, no entanto, importante ressalvar que só em situações excecionais podem existir parcerias com o privado. Para além disto, existem outras coisas que estavam nas propostas da Lei de Bases da Saúde que eram potencialmente complexas e que são muito mais preocupantes..Tais como? Tais como o investimento na investigação. É a joia da coroa daquilo que é o nosso Serviço Nacional de Saúde. É o que permite que hoje tenhamos uma esperança média de vida de 85 anos, que o enfarte agudo do miocárdio seja tratado com facilidade quando há uns anos a mortalidade era muito maior. Um doente hoje pode ficar curado de hepatite C, quando a cura era altamente difícil. Um doente com sida pode ter a doença controlada. Isto está relacionado com a evolução da ciência. E o que é que havia nalgumas propostas da Lei de Bases da Saúde? Era pôr a ciência ao nível da não-ciência. O que é inaceitável. Os portugueses merecem ser respeitados. Mas há outras coisas, como a valorização dos profissionais de saúde, que são quem faz o Serviço Nacional de Saúde todos os dias. Eu sei que a Lei de Bases da Saúde não tem propriamente tudo, mas tem de ser explícita nalgumas matérias. Também não sabemos ainda qual foi o papel atribuído aos cuidadores informais, que são absolutamente fundamentais numa altura em que temos uma população cada vez mais envelhecida, com uma carga de doença crónica elevada, com cada vez mais doenças do foro mental. É fundamental consagrar a existência dos cuidadores informais e atribuir-lhes um estatuto próprio. Eu fico escandalizado quando não se vê muita vontade de consagrar numa lei de bases aquilo que é investimento na saúde obrigatório para o Estado. O último Orçamento do Estado dedica apenas 1% do PIB à prevenção; a média dos países europeus aplica muito mais do que isto. Se queremos tornar o serviço de saúde mais económico, temos de ter uma população mais saudável, prevenir as doenças. Esta aposta na prevenção não estava perfeitamente definida em nenhuma das propostas da lei de bases. Todas estas questões preocupam muito mais do que as parcerias público-privadas..Falou do estatuto do cuidador informal. Esta foi uma das propostas que apresentou no final da convenção do ano passado, tal como a criação de um plano de emergência para reforçar a rede de cuidados continuados. Que seguimento tiveram estas ideias? A convenção apresentou as suas propostas aos representantes institucionais, nomeadamente ao senhor Presidente da República. Mas é evidente que muitas destas matérias estão esquecidas e nós vamos voltar a falar daquilo que é a rede de cuidados continuados, a rede de apoio nos cuidados de proximidade, nas questões relacionadas com hospitalização privada, com o estatuto do cuidador informal, no reforço da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde - no qual existem deficiências muito graves..Nós estamos numa situação critica neste momento, mesmo que os políticos ou o governo venham dizer que não. Quem está dentro do Serviço Nacional de Saúde percebe isso. As pessoas que vão ao SNS não percebem da mesma maneira, porque a gente tenta fazer tudo e mais alguma coisa para que tenham o máximo de conforto possível e às vezes até inventamos um bocado, porque não temos os equipamentos ou os dispositivos necessários..Para onde caminhamos se isto não for alterado? Se isto não for alterado, caminhamos para ter um Serviço Nacional de Saúde cada vez mais fraco, quando precisamos de um cada vez mais forte. O nosso Serviço Nacional de Saúde é altamente eficaz naquilo que é a relação custo-eficácia. Nós temos profissionais de saúde que ganham muito mal, mas temos resultados que apesar de tudo são muito bons. Os nossos resultados na área maternoinfantil, no enfarte do miocárdio, nos transplantes, na oncologia estão claramente acima da média. Em alguns casos, estão no topo a nível mundial, como é o caso dos cuidados maternoinfantis e dos transplantes. O problema é que as necessidades das pessoas são cada vez maiores, porque a população está a envelhecer e as pessoas conhecem (e bem) cada vez melhor os seus direitos e por isso recorrem mais ao serviço público. E nós estamos a perder capacidade de resposta. Estamos a perder capital humano, faltam muitos equipamentos, outros estão fora de prazo. Em muitos casos, as infraestruturas não são as mais adequadas. Estamos a trabalhar em cima da linha vermelha..Obviamente, isso não é bom para ninguém. E se nada for feito, o Serviço Nacional de Saúde vai ter cada vez piores resultados. Já se começam a ver sinais de que as coisas não estão tão bem. Na área maternoinfantil, os resultados dos últimos dois anos já não são tão bons como os dos anos anteriores. Se esta situação não for revertida - mas ela vai ter de ser revertida, porque nós vamos lutar até ao infinito para a reverter -, podemos vir a ter um Serviço Nacional de Saúde que vai ficar apenas para as pessoas que têm menos capacidades económicas. O SNS é a nossa grande marca de solidariedade, a nossa grande marca distintiva a nível internacional. Temos um nível de formação de excelência em várias áreas, os nossos médicos são requisitados por vários países da Europa e do mundo como a Alemanha, a Bélgica, o Reino Unido. Os nossos investigadores estão também a sair para o resto do mundo. Temos de apostar forte no Serviço Nacional de Saúde, dar mais qualidade àquilo que temos, mais formação e ter medidas para que os nosso jovens optem por ficar a trabalhar cá. Esta sangria de jovens tem efeitos perniciosos naquilo que é a qualidade dos nossos serviços e que a médio prazo podem ter consequências dramáticas nos serviços que vamos oferecer aos nossos cidadãos.