"Bani a frase 'estou cansada' do meu dicionário"
Tenta mudar as regras do jogo, a fazer perguntas e só lá mais adiante desatará a língua, a rapariga nascida em Alcântara em 1962 que logo que pôde comprou casas para os pais e o resto da família. Entrou no primeiro palco em 1972, cantou em casas de fado, estreou-se na revista no Teatro ABC, em Chá e Porradas, em 1982 e nunca mais parou. Diz que a revista lhe deu um treino que lhe permite a rapidez e a versatilidade que a caraterizam. Decidiu passar por cima da devassa insistente da sua vida privada, decidiu que não se cansa, decidiu que a vida não é só o teatro. No fim de contas, ela mesmo calada é uma fadista.
Acho que caiu dentro do caldeirão como o Obélix, não porque tenha ficado com aquele formato mas com a energia e a força.
Às vezes estou quase lá, naquele formato.
Nada que se pareça. Fui vê-la no Teatro Politeama, na peça Eu Saio na Próxima. E Você?, com o João Baião. Grande dupla. Outro que caiu no caldeirão.
E caiu antes de mim, porque tem uma energia inigualável. Podíamos começar a entrevista ao contrário. Eu vou-lhe perguntar a sua opinião sobre a peça.
São dois artistas extraordinários que mantêm a audiência sempre interessada durante mais de duas horas.
E não é fácil, naquele palco gigante, dois atores e o pianista, que umas vezes é o Miguel Teixeira e outras vezes é o Mário Rui. Não é fácil preencher aquele palco, embora o espetáculo tenha aquele ritmo alucinante.
É uma loucura do Filipe La Féria.
E nossa, porque embarcámos nela.
Como apareceu esta peça?
Esta peça é espanhola no original [Adolfo Marsilhac,1982] e o Filipe decidiu adaptá-la. Já tinha sido feita em Portugal, no final da década de 1980, pela Ivone Silva e o Henrique Viana.
Olha que dupla, também!
Também. Estava um bocadinho assustada porque vi o original depois de termos começado a ensaiar - não gosto de ser influenciada por ninguém. Não é uma peça fácil para duas pessoas, mas com esta adaptação, com muita música, muito focada na história do país ao longo da vida deste casal, ficou muito divertida. É quase uma peça original.
Até lá estão a guerra colonial e o 25 de Abril.
Embora este casal não tenha idade para isso, nem o João para ter ido a guerra de África, nem eu para me lembrar do 25 de Abril, tinha onze anos. Mas é uma data incontornável na minha história também, porque usufruí daquilo que o 25 de Abril nos provocou a todos. Foi bom.
E a referência à guerra é feita de uma forma que... não vamos desvendar.
Podemos dizer que é com o Raul Solnado.
Com a História da Minha Ida à Guerra.
Há uma ligeira homenagem ao Raul e é sempre bonito de ver e ouvir e divertido. Temos o João Baião a conversar com o Raul Solnado. É o bom da tecnologia, podemos usufruir do vídeo para mostrar o que é teatro. O Filipe é um ótimo engenheiro de palco, consegue associar-se às novas tecnologias. E isso ajuda, desde que não seja em excesso.
Passam 2h10 não só a falar como a cantar e a dançar. Como se consegue fazer isso noites e noites sucessivas?
Com amor, com entrega, com disciplina. Principalmente com muito amor à profissão e ao palco e muito respeito pelo público. É a minha autoridade suprema, aquela que manda em mim.
E metem-se com o público.
O Filipe diz que o grande elenco desta peça é o público, porque nesta peça não existe a quarta parede, embora seja uma comédia. A revista é o único género que nos permite dialogar com as pessoas. Esta comédia é sui generis por isso: envolvemos o público na história, pedimos-lhe para participar - não ao longo das duas horas, porque se participasse nalgumas situações seria um elemento perturbador, mas noutras dá-nos jeito ouvir as opiniões e sentir as reações.
E as pessoas gritam palavras de ordem como a da máquina de lavar.
Não ao tanque e ao alguidar, queremos a máquina de lavar! E riem-se connosco, o que é fundamental, e aplaudem-nos. Vemos que o público está bem disposto e não há melhor.
Ter o público nas mãos é a sensação melhor que há?
Não há sensação melhor, é indescritível. É como dizer o amor é e pôr reticências, porque não cabe numa palavra. Sentir o público ali, sentir o seu respirar, a forma como reage nas partes mais sérias, mais intimistas, como ri quando é para rir, como aplaude quando cantamos, é maravilhoso.
A sala estava cheia. Tem estado cheia?
Tem estado cheia e aquele teatro tem uma lotação grande.
É uma responsabilidade estar numa sala com tanta tradição, por onde passou tanta gente?
Estreei-me num espaço de grande responsabilidade, o Parque Mayer, e não renegarei nunca que estreei no Teatro ABC, depois no Teatro Maria Vitória e no Teatro Variedades. É sempre uma responsabilidade grande pisar palcos que foram pisados pelos meus pares de gerações anteriores que respeito muito e que vivem na minha memória.
Tem essa sensação de que foi pisado por essas pessoas?
Tenho, e muitas vezes partilho com eles as minhas vontades e o que sinto naquela noite.
Partilha como?
Partilho com o meu pensamento, envio-lhes o meu respeito, as minhas saudades para alguns com quem tive o privilégio de trabalhar. Peço-lhes ajuda espiritualmente para respeitar sempre a minha profissão, a nossa, que foi a deles, e que não envolve só luz, envolve respeito.
Começou nos palcos muito pequenina, aos dez anos.
Aos oito, na realidade. Aos dez gravei o meu primeiro disco.
Aos oito, quando participou numa peça na escola Francisco Arruda?
Não, foi quando participei no Festival da Canção Infantil, tinha por volta de nove anos. Fui escolhida como representante do distrito de Lisboa. Há muita gente que diz que eu ganhei mas só gosto de ganhar o que é meu. Quem ganhou foi um grupo de crianças de Faro, com uma música que falava das férias.
Ainda se lembra da sua?
A minha falava de contas de somar, de multiplicar. Multiplicar amor, dividir o carinho, somar amizade. Lembro-me de ter sido no Coliseu dos Recreios a grande final.
Foi para esse espetáculo pela mão da Júlia Babo, sua professora?
Exatamente, ela era minha professora da Francisco Arruda.
Foi ela que lhe guiou esses primeiros passos?
Era uma mulher da música e era incrível. Foi nossa professora de expressão dramática, embora de forma muito leve. Tenho ótimas memórias da Francisco Arruda. Lembro-me de ir com ela a estúdio quando ela ia gravar os seus discos pessoais. Foi ela que me meteu nalgumas andanças destas.
Nasceu e foi criada em Alcântara. Li numa entrevista sua ao Observador que a casa onde vivia tinha duas assoalhadas.
Tinha o quarto dos meus pais, uma sala mínima, uma cozinha e a casa de banho era no pátio. Não era uma casa de banho, era uma sanita com um chuveiro no teto. Depois foi ligeiramente aumentada na minha adolescência, porque faleceu o vizinho do lado e a casa ficou a dobrar. A minha infância foi assim.
Quantas pessoas viviam nessa casa?
Todas as que coubessem. A família era os meus pais, a minha Teté, que foi a minha segunda mãe, primeira e terceira, todas. Há quem não tenha uma mãe, eu tive a sorte de ter duas. E ainda a filha da Teté, que era como se fosse minha irmã, a Maria das Dores, e a minha irmã. Só aqui éramos seis. Havia sempre lugar para mais um, como uma casa de bons portugueses. Uma família muito humilde da qual me orgulho muito. Ajudou a formar a minha personalidade.
Daí o impulso de, logo que pôde, comprar casas para todas essas pessoas?
Primeiro aumentei a casa dos meus pais, quando comecei a trabalhar. A primeira casa que comprei foi para lhes oferecer, na Ajuda, na rua do Cruzeiro. Ainda hoje vivo com a minha família. Já somos menos, o meu pai faleceu há uns anos, mas vivo com a minha mãe e com a minha irmã, cada uma no seu espaço mas dentro do mesmo espaço.
A família é o seu lugar?
O meu pilar, a minha estrutura maior. A família e os amigos. Sem isso é difícil.
A sua vida, como a de muitas pessoas com visibilidade, tem sido mais do que devassada. Falam do que existe e daquilo que não existe.
Não é só devassada, é deturpada.
Como vive com esse problema?
No início as coisas magoavam-me muito. Sou uma mulher de bairro, dizia muitos palavrões quando isto me acontecia. Chegava ao pé das pessoas, se fosse preciso, e confrontava-as com as realidades. Agora não. A idade deu-me uma peneira maior e eu desvalorizo. Da minha vida só quero que faça parte gente inteligente, gente que seja boa. O resto desconheço. Comecei a dar-me importância. Acho que só falam de mim porque sou importante, desculpem-me a imodéstia. É a forma que tenho de me proteger. Se eu não tiver interesse nenhum ninguém vai falar de mim. Claro que eu prefiro que falem do que é real. Mas paciência, faz parte desta humanidade. Não é de Portugal, é da humanidade em geral.
E envolvem as pessoas da sua família, como sua filha. Imagino que ainda deve doer mais.
Quando percebem que a pessoa é mais forte e aguenta o embate, começam a tentar outras vias. Mas acho que já desistiram. É natural que eu tenha problemas na vida, como qualquer ser humano terá. Há outras situações que até podem ter algum fundo de realidade mas são tão adulteradas que acabam por atingir um patamar completamente diferente e ridículo. Seria bom que percebessem que nós temos direito à privacidade. O público é a minha entidade máxima, profissionalmente, mas a minha vida só a mim diz respeito e à minha família. Deveriam ter algum cuidado. Na minha profissão, como na sua, haverá gente competente, gente incompetente, gente bem formada, gente mal formada, como em todas as áreas.
Ainda bem que já criou essa distância, porque quando estive a fazer pesquisa sobre si pensei que era um abuso total.
Não quer dizer que não magoe da mesma forma. Mas já não tem o mesmo impacto.
Uma amiga que é bailarina falou-me com muito entusiasmo do seu papel na telenovela Espelho d"Água, em que era uma luso-americana.
A Sal Silvier.
Ela sublinhava que era muito difícil manter um sotaque que era duplo, uma americana e do norte de Portugal.
Era de Aveiro, de Ílhavo. Não era fácil, tinha de falar português, misturado com umas americanadas, e o meu português tinha sotaque de Ílhavo. Não é fácil manter aquela estrutura ao longo de dez meses. Mas é necessário.
Como se prepara para um papel assim?
Desloquei-me a Ílhavo e a Aveiro para ter a certeza. O norte tem sotaques diversos e as pessoas de Aveiro e Ílhavo têm um sotaque muito suave. Não tem nada a ver com o das pessoas do Porto, por exemplo. Apenas juntam os S com a próxima vogal e aquilo soa a J. De resto, é muito parecido com Lisboa. Há que ter aquela subtileza de perceber como aquilo vai ficar, ouvir pessoas, entrar nos sítios. Por acaso fui num dia com a minha filha e via-se muito pouca gente na rua, cheguei a entrar em lojas para comprar coisas que não precisava de comprar, nomeadamente um supermercado. E tudo para concluir se os j faziam parte de todo o universo ou se era só aquela ou outra pessoa. E cheguei à conclusão de que dizer ojolhos em vez de os olhos é característico de Aveiro.
Entra na gravação e está na personagem, fora da gravação fala como uma pessoa de Alcântara? Como consegue?
Talvez tenha sido o treino que a revista me deu. Noutro género teatral, os meus colegas têm o privilégio, a sorte, ou não, de ter muito tempo para se concentrar antes de entrar no palco e fazer determinada personagem. Na revista temos de ser muito mais imediatistas. Tenho dez minutos para fazer uma rábula, saio, e em três minutos dispo-me e tenho de entrar num registo completamente diferente. Isso cria em nós um mecanismo que tem de ficar muito oleado e que faz parte da minha profissão. Nesta peça que foi ver é muito semelhante.
Comecei a contar e perdi a conta a quantas vezes se vestiu e despiu.
São personagens muito diferentes, não há tempo para estarmos cá atrás a pensar agora sou esta, há bocado fui aquela. Há que passar a borracha imediatamente, colocar o chip e entrar noutro registo completamente diferente a seguir. A revista deu-me isso, é uma escola incrível para mecanizarmos a nossa cabeça, o nosso foco de atenção, para termos facilidade em mudar o registo.
Porque é instantâneo?
Tem que ser, porque se não falta cena e para o espetáculo.
Já lhe aconteceu enganar-se?
Acho que já aconteceu a todos. É como não acontecer a um cantor desafinar. Só a quem não faz as coisas é que não acontece.
E aí fica aflita ou reage imediatamente?
Mais uma vez, a revista deu-me a capacidade do improviso e tenho normalmente facilidade em gerir o erro.
Tem contracenado com pessoas com quem tem muito à vontade, como o João Baião ou o Carlos Cunha, com quem aliás foi casada.
É o ator com quem tenho maior cumplicidade, o Carlos.
É mais fácil?
É muito mais fácil. Com o Carlos, não preciso que ele levante um dedo para saber se está mais lento, se teve um lapso, se vai dizer outra coisa qualquer, se não se lembra do que vai dizer. Conheço-o muito bem. Conheço-lhe os tempos, conheço-lhe o respirar. Com o João, é o terceiro espetáculo que fazemos juntos e trazemos para o palco a mais-valia de sermos amigos. Não quero dizer que a gente só trabalhe com amigos, infelizmente não é verdade, mas quando isso acontece não há melhor, porque há cumplicidade. Esta peça, ainda por cima, fala de um casal. O amor que sentimos um pelo outro cá fora transborda lá dentro. É um casal da nossa faixa etária. Eu tenho 55 anos e o João tem 54, na peça teremos mais três ou quatro mas isso não é importante. O que é interessante é a estrutura dela, é eu ilustrar todas as personagens que passam na vida do João assim como o João ilustra todas as personagens que passaram na minha vida.
A Marina e o João, porque utilizam os vossos nomes.
O Filipe escolheu os nossos nomes para as personagens, é engraçado.
Trabalhar com o Filipe La Féria é difícil? Ele exige muito?
Eu sou uma privilegiada no que diz respeito ao Filipe. Ele tem um processo de trabalho às vezes doloroso, gosta de fazer ensaios tarde e noite. Eu não consigo. Ensaio normalmente só à noite. Tenho o privilégio de ele deixar que isso aconteça comigo porque sabe que sou muito rápida. Tenho a facilidade de ter uma memória rara. Pego numa peça e... ao fim de dez dias eu sabia esta peça de cor. O trabalho depois é mais fácil, tendo o texto minimamente sabido, que é o básico. Não é o básico para o representar bem, mas temos de o saber para depois o sentirmos melhor. Depois de muitas horas de ensaio chego a um período em que já não rendo. Gosto de trabalhar a sério quatro ou cinco horas. Não gosto muito de perder tempo, de estar muitas horas onde estão a acontecer coisas que me dizem respeito mas não dizem. Mas gosto da exigência do Filipe, porque eu também sou exigente. O nosso trabalho precisa de exigência.
Há pouco falou de disciplina, parece-me uma pessoa muito disciplinada.
O mais possível.
Aliás, a peça começou à hora certa.
E fico muito incomodada quando não começa, que me perdoem os atrasados. O Filipe de vez em quando atrasa cinco, seis, sete minutos, e eu começo a bufar logo cá dentro. Na pior das hipóteses, falta um grupo de 50 pessoas. Recebemos muitos excursionistas que nos vêm ver e eu respeito-os, como respeito qualquer elemento do público, mas pôr à espera 650 pessoas em prol de 50 que estão mal, porque eles é que deviam ter chegado à hora, não acho que seja correto. O espetáculo está marcado para as 21:30 e se não começa às 21:30 não será nunca por minha causa. Eu estarei pronta. A não ser que me aconteça alguma coisa um acidente qualquer estranhíssimo.
Nunca ficou doente?
Tive até uma tuberculose pulmonar em 1983, tinha 21 anos, mas fiz os espetáculos que era suposto fazer. Tive cinco hemoptises nesse dia, passei a noite no Hospital de S. José. Foi dia 5 de outubro, não me esqueço, porque como era feriado tínhamos três espetáculos, e eu fiz os três espetáculos. Sabia que não havia hipótese, a companhia parava, não havia como ser substituída. Fiz os três espetáculos e vim cá para fora a cuspir sangue. Fiz.
E acha que essa é a maneira correta?
Eu não conheço outra, não sei se é a correta. Se calhar era muito mais fácil dizer "mande o público para casa, devolva o dinheiro". O que quero dizer com isto é que é difícil eu parar. Terá de ser sempre uma coisa muito grave para eu parar. Não faço playbacks totais. Por vezes o Filipe diz-me para fazer mas eu recuso-me, a não ser em coisas muito pontuais, um final em que toda a gente canta, que já não é importante para a peça. Nesta peça eu farto-me de cantar, ouviu-me cantar um fado, uma espanholada. Não faço playback total. As pessoas pagam o bilhete para me ouvir cantar, se for para ouvir um disco ouvem-no em casa. E se estiver rouca, o que já me aconteceu, as pessoas vão perceber que não estou no meu melhor, não sou uma máquina, darei o que me for possível nesse dia mas sou eu, é o que está ali.
A vossa entrada em palco é muito saudada, o público fica contente por vê-los.
A última coisa que eu quero, e o João é meu parceiro nisso, é defraudar as pessoas. As pessoas pagam o bilhete e não é barato, a cultura no país é cara. Sentam-se ali para se divertir e o mínimo que posso fazer é corresponder. Todos os dias. E tenho o mesmo respeito se estiverem 700 ou dez, porque só dez conseguiram comprar bilhete, ou só dez quiseram ir ver-nos. Ali não tem acontecido, não tenho esse historial na minha carreira, com a graça de Deus, mas um dia pode acontecer. Até hoje tenho a felicidade de não ter tido um flop na minha carreira, um insucesso. Um artista que não respeita o público não sei o que é, mas será outra coisa qualquer.
O público conhece-a e identifica-se consigo.
É muito carinhoso quando as pessoas me abordam como se eu fosse uma pessoa amiga lá de casa. Não existe entre as pessoas e eu um distanciamento como se fosse alguém que veem só no ecrã ou num palco. Abordam-me de uma forma muito gentil, muito carinhosa. E isso é impagável.
Manteve sempre uma ligação à terra, não se tornou uma vedeta. Chegou aqui no seu carro, a conduzir, sozinha.
Eu não tenho agente, nunca tive, não vou ter. Gosto de conversar com as pessoas e acho que as vedetas não existem. Existem nos Estados Unidos, são conhecidas mundialmente. Eu se for a Badajoz conhecem melhor os caramelos. Sou muito conhecida no meu país mas isso não faz de mim uma vedeta, faz de mim uma pessoa. Aliás, eu não faço questão de ser vedeta nenhuma, faço questão de ser um ser humano melhor todos os dias, não consigo ser perfeita e não vou conseguir nunca, mas esse é o meu objetivo. Tento fazer o meu trabalho o melhor que sei e posso. Gosto, e seria mentira se dissesse que não, que o meu trabalho seja reconhecido, é para isso que trabalho. Mas aquelas coisas mazinhas que se associa à palavra vedeta, espero que isso não se me pegue nunca.
Faz um dia a dia normal?
Normalíssimo. Não acordo tão cedo quanto gostaria, gostaria de aproveitar o dia. Quando estou fazer novela, acordo cedíssimo. E se estou a fazer novela e teatro, o que acontece muitas vezes, tenho dias da semana em que durmo duas horas. Chego a casa do teatro, adormeço pelas duas e meia ou três da manhã e acordo às seis. Isto se tiver a sorte de adormecer às três, porque custa-me adormecer.
Vem com adrenalina?
Não me é fácil adormecer e, como não gosto de tomar medicamentos, durmo quando tenho de dormir. Quando estou a ficar preocupada, ah, só vou dormir cinco horas meto logo outro chip: prefiro dormir duas horas bem do que estar na cama às voltas no escuro, de castigo. Não durmo é sem televisão no quarto. Chego a casa, vou para o meu quarto, Vejo imensas séries no Netflix, o AXN já foi o meu canal preferido, agora escolho o que quero ver no Netflix.
Costuma ir ao teatro ver os seus colegas?
Tristemente, não. Sou uma ignorante teatral, devo assumi-lo. Não sei nada de teatro, mesmo. Na revista, durante dez anos, só tinha um dia de folga por semana, à segunda-feira. Tinha sempre dois espetáculos todos os dias e três ao domingo e feriados. Casei num dia de folga. A segunda-feira era a folga geral de todos os colegas, portanto naqueles anos não fui ver ninguém, à exceção de quando estive com a tuberculose pulmonar em 1983, quando fiquei dois meses a fazer tratamento. Nesse período, foi a primeira vez que entrei no Teatro Nacional, para ver um espetáculo do Carlos Avillez, Fígados de Tigre [Francisco Gomes de Amorim, 1857], lembro-me perfeitamente. Depois disso fui muito pouco. Vi alguns espetáculos na Comuna, fui talvez duas vezes ao Teatro Aberto, vi alguns espetáculos dos quais não fiz parte no Parque Mayer, porque estávamos a ensaiar. Vejo alguns espetáculos mas não tantos quanto gostaria. Tenho tido a felicidade de estar sempre a trabalhar. Em 45 anos de profissão que tenho, 36 de teatro, não me lembro de ter estado desempregada vez nenhuma. Tenho que ter a capacidade de dizer: vou parar dois meses, preciso de férias.
Já fez isso?
Acabei as gravações da novela no dia 30 de novembro e em dezembro e janeiro não fiz nada. Fiz o que uma mulher faz porque eu, para além da minha vida teatral, sou uma mulher, tenho a minha casa que preciso de cuidar, tenho a minha família. Então fiz tudo aquilo de que gosto: tratei da horta, do jardim, das obras e da casa.
Pôs tudo em ordem?
Vou pondo, tenho de pôr todos os dias.
Agora só tem a peça, tem o dia mais livre?
Não, porque ando a promover a peça. Estamos a fazer um mês que estreámos. Ultimamente tenho tido as segundas e as terças, os meus dias de folga. Não quero aceitar nada. De qualquer forma, no Politeama são seis espetáculos por semana: quarta, quinta, sexta, dois ao sábado, um ao domingo.
Sente a idade?
Não. O meu corpo sente, por fora. Vejo-me ao espelho e o meu corpo grita a minha idade, tristemente, a gravidade está a chatear-me, a lixar-me a vida. Às vezes não gosto do que vejo. Se calhar por isso é que Deus nos fez perfeitas, a partir de uma certa idade a gente tem de usar óculos e os defeitos não são tão visíveis. Só sinto a idade quando me olho ao espelho.
Aquilo que a vi fazer no palco poderia ser feito por uma rapariga de 20 anos.
Não sei se todas as raparigas de 20 anos teriam essa capacidade.
Tenho a certeza de que não.
Digo isto porque, quando estou fazer teatro e novela, às vezes chego aos estúdios às sete e meia e as minhas colegas com 20 anos estão cansadas. Mal chegam ao trabalho já estão cansadas.
E não acha normal?
Eu acho uma anormalidade. Bani a frase "estou cansada" do meu dicionário. É uma coisa que não digo ao longo do meu dia, nem quando chego a casa. Se me deitar na cama e alguém me perguntar, às três da manhã: estás cansada? Agora sim, agora estou cansada, vou dormir. Mas esteja eu a trabalhar às oito, às nove ou às dez, quando me perguntam estás cansada? Não. Não verbalizo sequer, porque não me adianta nada e desgasta-me a palavra. Mas eu vejo muita gente cansada antes de o dia começar. É uma coisa que eu não estou. Reconheço que este espetáculo é duro fisicamente. Eu não vou ao ginásio, não faço ginásio.
Mas dança várias vezes.
Ali só danço rock e é pequenino.
Na verdade, não para quieta.
Não paro, nem tenho intervalo, para ser franca. Quando acaba o primeiro ato, tenho a maquilhagem desfeita porque transpiro imenso, o cabelo está encharcado das perucas. Os dez minutos são para fazer um chichi, depois retocar tudo e vestir-me outra vez. Não tenho intervalo.
Sabe que tem uma energia especial?
Mas acho que isso se trabalha. A energia trabalha-se. Está muita coisa na nossa cabeça. Não vou dizer que a minha vida é perfeita, porque não é, a vida de nenhum de nós é perfeita. Já tive situações na vida em que aquela palavra que às vezes grassa por aí, a depressão, quase me quis visitar, acredito que tenha sido. Quando estou assim é quando faço exatamente o contrário. Não gosto de sair à noite, principalmente aos fins-de-semana, não saio, não vou para Lisboa, sou uma mulher mais da terra do que do cimento. Não gosto das grandes cidades, embora possa parecer o contrário.
Embora seja uma rapariga de Alcântara?
Sim, porque trabalhei à noite muitos anos, nas casas de fados. Mas era uma noite mais saudável do que é hoje. Raramente saio às sextas e sábados, é mais nos outros dias. Gosto de sair à noite para jantar, para beber copos com os meus amigos, mas não gosto de grandes multidões nem de grandes confusões. Quando tenho períodos de mais tristeza, de maior preocupação, eu, que normalmente não me maquilho durante o dia, é aí que o faço e às vezes visto-me, ponho a mão na porta e digo: para onde é que vou? Não sei mas vou. E se estou na cama - mas estou na cama a fazer o quê? Não tenho que estar na cama, tenho que me levantar e tenho coisas para fazer e faço. Isso tem de ser uma luta constante, quando a vida não é fácil. Devemos trabalhar isso, se nos acomodarmos no sofá tudo piora.
Sempre a acelerar?
Sempre. Já fiz tanta coisa na vida. Este espetáculo fisicamente é duro porque não temos ajuda. O João está no palco e eu estou a mudar-me para entrar a seguir. Numa revista, por muito cansativa que seja, há sempre colegas para partilhar. Ou seja, eu tenho um número que pode ser um desespero, ando ali numa correria, mas depois tenho cinco ou dez minutos para respirar. Neste espetáculo isso não acontece.
Gosta da vida que escolheu?
Gosto muito. Eu digo isto ao Filipe La Féria. Ele não tem outra vida, acorda e adormece a pensar no teatro. Eu não. Há muitas outras coisas que eu gosto de fazer.
Então?
Tanta coisa. Praia, por exemplo, adoro. Adoro andar ao ar livre. Odeio centros comerciais, mas adoro feirinhas, coisas de rua. Gosto de estar com amigos, gosto de não fazer nada, gosto de andar, gosto de passear. Adoro viajar. Incomoda-me ter uma entrevista às dez da manhã, quero lá saber da entrevista, não tenho paciência.
Seria possível ter feito outra coisa na vida?
Já fiz outras coisas, por hobbie. Já tive um bar, restaurantes, casas de fado quando era miúda, obviamente do meu pai e com um sócio. Gosto de tudo o que tenha a ver com pessoas. Não era capaz de fazer um trabalho que fosse solitário. Mas qualquer outro acho que sim, que me adaptaria perfeitamente trabalhar numa loja a vender camisolas, a assar frangos.
O seu pai teve muita importância na sua vida?
Teve.
Na sua vida pessoal e também na profissional?
Profissionalmente, aliás, foi o grande culpado de isto tudo ter acontecido. O meu pai era um fadista de alma. Não era desafinado mas não tinha voz nenhuma, aliás na minha família ninguém canta, não sei como é que isto aconteceu. Ele era um amante de fado. Eu ia aos fados com ele. O meu pai foi ensaiador da Marcha de Alcântara, aliás o melhor lugar de Alcântara pertence-lhe, um segundo lugar. Era uma pessoa muito ligada a esta vida, a minha mãe não. Se eu comecei a ir aos fados e a gostar, ao meu pai o devo.
Foi pelo fado que tudo começou?
E é o fado que se mantém na minha alma e na minha vida. Mesmo calada sou fadista, como costumo dizer. Às vezes brincam com o fado, mas eu sou do tempo em que o fado ainda não era moda.
Conheceu Alfredo Marceneiro?
Foi o Marceneiro que me entregou a taça do primeiro concurso que eu ganhei, no Mercado da Primavera, em 1973, ele era o chefe do júri, com a Maria da Fé e a Ada de Castro.
De que se lembra do Marceneiro?
Ele já era muito velhinho naquela altura. Lembro-me daquele carisma e da escola que ele criou a cantar fado. Há umas linhas que são do Marceneiro, como há umas que são do Fernando Maurício. São gente que criou escola.