Banca assalta esmolas

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Portugal anda há 25 anos a comer capital. Tendo adquirido hábitos europeus sem a produtividade europeia, sofre um desfasamento financeiro crescente. Durante 15 anos as dívidas pública e privada explodiram até que, com o fecho dos mercados na crise de 2008, o endividamento parou. Então passámos a vender as «pratas da casa» para manter a ilusão. Com privatizações no Estado e fusões no privado, o estrangeiro já é dono das principais empresas, bancos e imobiliário nacionais.

O local onde todos estes esbanjamentos se concentram é, inevitavelmente, o sector financeiro, que assim vive uma das maiores crises da sua história. Se o problema é terrível, o método de tratamento torna-o pior. Numa banca cheia de créditos incobráveis, a solução razoável é assumir as perdas e limpar o sistema, para retomar rapidamente a actividade económica normal. Foi isso que fizeram os americanos, e a questão resolveu-se. Aqui, pelo contrário, foi preferida a opção de fingir que está tudo bem, esperando pelo melhor. Ainda há semanas o senhor primeiro-ministro afirmou «Depois de ano e meio de trabalho em conjunto, temos o problema financeiro resolvido» (declarações de 27 de Abril).

A consequência é a sucessão de crises bancárias que, desde 2008, segue a ritmo superior a um em cada dois anos. Entretanto continuamos a comer capital, com a poupança mais baixa e a mais alta taxa de consumo no rendimento disponível das famílias na história registada. Se isso alimenta o crescimento moderado, complica fortemente o financiamento da economia. A única possibilidade interna de recapitalizar a banca é usar dinheiros do Estado. Foi isso que fizeram os irlandeses, e a questão resolveu-se. Cá, pelo contrário, seguiu-se a opção de fingir que há outras soluções, escondendo as despesas públicas atrás de véus diáfanos.

O primeiro caso, o BPN, foi descaradamente nacionalizado, assim ocultando perdas e isentando culpados. Dado o abuso evidente, a partir daí foi necessário inventar uma forma engenhosa para que os impostos suportem a banca, sem que se dê por isso. O Fundo de Resolução, alegadamente financiado pelos outros bancos, seria um enorme disparate, espalhando o contágio por todo o sistema, se não fosse realmente uma maneira de o Estado pagar, fingindo que não paga. O empréstimo público ao fundo, com prazo sucessivamente alargado, serve o propósito de fazer o que é preciso, isentando das responsabilidades políticas de o fazer.

Agora, depois do BPN, BPP, BES e BANIF, chegou a vez da Caixa Económica Montepio Geral entrar em dificuldades extremas. Só que desta vez, a pretexto de se tratar de uma entidade do sector social, o embuste atinge a ignomínia. É verdade que aqui o impacto sobre a colectividade é bastante grave, porque a instituição dona do banco em apuros é, não uma família rica como os Espírito Santo, mas 600 mil associados da Associação Mutualista Montepio Geral, a maior e uma das mais antigas cooperativas nacionais. Deste modo, a dimensão do caso faz o problema do papel comercial do GES parecer resolúvel.

Apesar da emergência, como o Estado está cansado de ajudar bancos com os impostos dos pobres, desta vez achou que seria melhor envolver directamente os próprios pobres. A solução que, segundo a imprensa, está a ser cozinhada, é tapar o buraco com dinheiro da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e da União das Misericórdias Portuguesas. Vamos ilibar banqueiros arrombando a caixa das esmolas.

Se nenhum operador financeiro normal acha boa ideia colocar fundos na Caixa Montepio, por que razão o devem fazer as seculares Santas Casas? Elas existem exclusivamente para praticar as catorze obras de misericórdia, onde não consta esbanjar dinheiro para ilibar falências. E 200 milhões chegam para tapar o buraco? Já em 2014 vimos como é possível destruir uma empresa saudável, a PT, numa tentativa frustrada de salvar o BES. Será razoável repetir o erro, desta vez com as mais prestigiadas instituições nacionais?

A Caixa do Montepio não está com problemas por ter ajudado a economia social. O sarilho aí é exactamente igual ao dos outros bancos, com alguns erros ainda piores, como a desastrosa aquisição do Finibanco em 2010. Tudo isto significa que há muitos anos que essa instituição vem desvirtuando a sua missão solidária. Por que razão, quando esses negócios deram errado, se quer estender agora o veneno às Misericórdias, que se têm mantido fiéis à missão delas? Faltar ao dever para com os pobres para salvar bancos entalados não é solidariedade. Os santos amam o próximo, mas não são parvos.

O caso do Montepio é evidentemente muito difícil e exigente. Não existem soluções boas, mas algumas são muito más. Pretender envolver o dinheiro das Misericórdias na solução mostra apenas que as autoridades, depois de terem falhado na sua função de supervisão, depois de andarem a empastelar a solução à espera de milagres, agora até já perderam o resto que ainda tinham de vergonha.

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