Bail in e bail out: onde acaba a economia e começa o dogmatismo?

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1 A União Bancária é uma reforma da supervisão europeia com mudança de paradigma de bail out para bail in. Por isso, vale a pena perceber bem o que significa esta mudança e as situações em que faz ou não faz sentido.

2 Começarei com um exemplo muito simples, que ilustra de forma intuitiva os conceitos de bail in e bail out. Imaginemos que um banco é como o apartamento de um prédio urbano. Se um incêndio ocorrer nesse apartamento, tem um "risco sistémico", que consiste na possibilidade de se propagar a outros apartamentos do mesmo prédio e aos prédios vizinhos. Este "risco sistémico", se ocorrer, traduz-se no que se caracteriza como uma externalidade negativa, ou seja, prejuízos para terceiros que nada têm que ver diretamente com o assunto.

3 Neste contexto, de quem é a responsabilidade de extinguir o incêndio: é apenas do proprietário do apartamento (bail in)? Ou é dos bombeiros, uma vez dado o alerta (bail out)? Por isso, as seguintes questões são óbvias:

- Se uma solução tipo bail out não for possível, não estaremos a impor uma solução em que os bombeiros não podem atuar simplesmente porque apenas soluções tipo bail in são autorizadas?

- Mas se os bombeiros puderem atuar, não estaremos a admitir a possibilidade de uma intervenção pública tipo bail out?

- Uma externalidade negativa não é o tipo de situação que justifica uma intervenção pública tipo bail out, neste caso dos bombeiros?

- E não há razões de eficiência técnica e económica que justifiquem um corpo de bombeiros por cidade, que possa intervir sempre que haja um incêndio?

4 Os exemplos, tal como os modelos, valem pela sua simplicidade, quando esta ajudar a explicar aspetos essenciais de um problema, sem no entanto distorcer a realidade subjacente. Espero que seja o caso deste exemplo.

5 Da mesma forma, há intervenções públicas no setor financeiro (bail outs ou auxílios de Estado) que têm toda a racionalidade económica, pelo que é sempre preferível que a opção entre bail in e bail out se faça, não de forma automática segundo uma regra geral, mas caso a caso, com base numa análise comparativa que permita concluir qual tem um impacto menos negativo na economia em geral e nos contribuintes em particular, direta e indiretamente, no imediato e a prazo. Daí a importância de saber onde acaba a regra geral e começa a economia, ou, dito de outro modo, onde acaba a economia e começa o dogmatismo.

6 A opção por soluções de bail in em vez de bail out radica na preocupação em evitar o chamado "risco moral", ou seja, situações em que uma pessoa assume mais riscos do que os que devia porque sabe que se algo correr mal os custos são suportados por terceiros.

7 Para evitar risco moral, um depositante deve primeiro informar--se sobre se o banco é seguro antes de depositar o seu dinheiro nesse banco, porque o depósito é um empréstimo que o depositante faz ao banco. Da mesma forma, os gestores de um banco devem aprovar empréstimos apenas a quem tudo indique que podem reembolsar o empréstimo, isto é, não assumir riscos que possam levar o banco à falência.

8 Mas o debate entre bail in e bail out não deve limitar-se ao risco moral, antes deve ser feito em termos microeconómicos e macroeconómicos. Do ponto de vista microeconómico, o argumento do risco moral prevalece e aconselha a regra geral de que não deve haver bail out de atividades privadas. Mas do ponto de vista macroeconómico, o debate tem outras vertentes - de risco sistémico (um problema num banco pode contagiar todos os outros), de estabilidade financeira (nomeadamente, em termos do circuito poupança/investimento e do crédito de que a economia necessita), e dos equilíbrios macroeconómicos - que excedem o de decisões individuais de qualquer banco. Por isso, deste ponto de vista, o argumento do risco moral tem de ser ponderado em conjunto com outros argumentos relevantes.

9 Acresce que sob a égide da União Bancária, os bancos são altamente regulados e supervisionados, os membros dos seus corpos sociais são escrutinados como nunca no passado e só autorizados a exercer as suas funções se passarem nesse escrutínio, as decisões de gestão, estratégicas e não estratégicas, monitoradas com um detalhe impensável há poucos anos, e a informação estatística e por operação a que os supervisores têm acesso, por reporte regular dos bancos ou de forma intrusiva, é hoje total.

10 Consequentemente, as responsabilidades dos supervisores são agora bem mais pesadas do que no passado, pelo conhecimento detalhado que passaram a ter do funcionamento de cada banco, pelo poder que adquiriram de moldar os respetivos corpos sociais e pela capacidade de avaliar e controlar - em tempo oportuno - as consequências macroeconómicas e para a estabilidade financeira das decisões microeconómicas ao nível de cada banco.

11 Isto significa três novas realidades: (i) ao nível de cada banco, exigências de reporte e controlos sem precedentes antes do advento da União Bancária são agora a regra; (ii) ao nível dos supervisores nacionais e europeu, maiores responsabilidades não podem deixar de se traduzir em maior responsabilização, perante a sociedade e os órgãos políticos eleitos, sobretudo nos casos de desastres financeiros; e (iii) ao nível dos tribunais, um expectável aumento da litigância nos casos de reestruturação e resolução de bancos.

12 Em conclusão, a complexidade do setor financeiro não se coaduna com regras inflexíveis sobre auxílios de Estado. No caso da União Bancária, seria ainda mais grave se tais regras se aplicassem de forma discriminatória apenas a todos os bancos de países pequenos ou a bancos pequenos de países grandes. Por isso, a opção entre bail out e bail in deve ter por base a economia, não o dogmatismo, e menos ainda a discriminação.

Economista

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