Falemos um pouco de Direito. O Princípio da Cooperação entre o Estado e as religiões não está escrito na Constituição, mas é explícito na Lei da Liberdade Religiosa (n.º 16/2001) que regula os princípios da relação entre o Estado e as confissões religiosas. Dita, no seu no art.º 5.º, que a cooperação deve ser feita em função da representatividade das religiões na sociedade - ou seja, torna mesmo obrigação do Estado cooperar com as organizações religiosas nos assuntos em que estas tenham um papel socialmente relevante. E não só. Nesta entrevista, o especialista Jorge Bacelar Gouveia - prestes a lançar um livro sobre o assunto - ainda sublinha a importância da proteção da liberdade de expressão e como a Justiça precisa de uma reforma profunda para lidar com os novos crimes, em especial surgidos na internet..Este é um tema que tem estado na ordem do dia, em parte por causa da Jornada Mundial da Juventude, mas não só... Ele surge sempre que se fala da relação do Estado com a Igreja, seja por causa dos impostos que as religiões pagam, seja por causa dos abusos sexuais... E sempre fica a ideia de que se confunde o conceito de laicidade do Estado com outra ideia qualquer. Por isso, ajude-nos: para a República Portuguesa, o que é a laicidade do Estado? Habitualmente essa é a expressão usada mas, curiosamente, a Constituição Portuguesa não conhece essa palavra, que tem uma origem francesa, laïcité. E, ao contrário do que as pessoas pensam, não tem um sentido pejorativo, mas sim o sentido de separação..Então a Constituição diz o quê? Diz, no fundo, em primeiro lugar, que o Estado é separado do fenómeno religioso e, portanto, não se identifica como a religião e não se pronuncia sobre questões religiosas. Por outro lado, o Estado reconhece a liberdade religiosa - a chamada liberdade positiva religiosa, que é praticar, inscrever-se numa religião para fazer atos de culto e fazer tudo aquilo que tem a ver com a sua religião; ou também a chamada liberdade negativa, que é a liberdade de deixar de pertencer a uma religião, a liberdade de mudar de religião, não ser obrigado a fazer nada que seja imposto por uma religião - isto é, a liberdade religiosa, que pode ser individual, mas também pode ser coletiva, porque é um dos poucos direitos fundamentais em que as pessoas coletivas têm direitos fundamentais próprios. Neste sentido, o grupo religioso tem a liberdade de se auto-organizar, segundo os seus próprios princípios, e o Estado não se deve imiscuir, pelo contrário, deve proteger essa mesma organização. E este é outro aspeto da liberdade religiosa..E há ainda uma questão de princípio muito importante, que é o princípio da cooperação. Na nossa laicidade, a tal separação, não significa impossibilidade de relacionamento. Significa que pode haver cooperação quando isso seja da vontade de ambas as partes. Assim como o Estado se relaciona com o fenómeno desportivo, ou fenómeno cultural, como dá dinheiro para a Arte ou para o Desporto, também pode dar dinheiro para apoiar atividades religiosas que tenham impacto social de acordo com a orientação do Estado de promover o bem comum..Este princípio da cooperação, que não está na Constituição, mas está na Lei da Liberdade Religiosa, que fala no princípio da separação e no princípio da cooperação, aliás, até dizendo - no art.º 5.º - que a cooperação deve ser feita em função da representatividade das religiões..Certo, mas a realidade demonstra que, independentemente do peso social que a Igreja Católica continua a ter na sociedade portuguesa, o Estado mantém com esta instituição relações de privilégio que não tem com mais ninguém. Por exemplo, através das Concordatas, incorpora no seu ordenamento jurídico parte do Direito Canónico. Ao fazê-lo não está o Estado a deixar de cumprir o papel de árbitro, o princípio de neutralidade entre as várias religiões que deveria assumir? Há autores que dizem isso e estão no seu direito. Mas a neutralidade pode ter vários submodelos. Claro que o melhor modelo é o da neutralidade, porque significa que o Estado não é confessional, não se identifica com nenhuma religião. E porque é que não se pode identificar? Por duas razões: porque se se identificar com uma religião, está a privilegiá-la e, pior do que isso, está a meter-se onde não é chamado, que é pronunciar-se sobre questões religiosas, que nunca o pode fazer - o princípio de neutralidade é um princípio básico..Agora, a neutralidade pode ter várias tonalidades. Pode ser uma neutralidade separatista total, em que o Estado nada tem a ver com as religiões - não as reconhece, não as protege, não dá dinheiro algum, não intervém nada no aspeto religioso. Ou então pode manter-se separado, mas ter uma cooperação, uma relação com elas, seja igualitária - dá o mesmo dinheiro a todas - ou uma cooperação diferenciada em função da importância social de cada fenómeno religioso..É essa última perspetiva que está no nosso ordenamento jurídico... Sim, é..Mas, considerando a Constituição atual, em especial no período em que foi aprovada, não era a ratio da primeira perspetiva que seria de ter em conta? Não, porque a Constituição não indica um modelo específico. Por um lado fala na liberdade, sim, depois diz sempre que o Estado não pode programar o ensino de acordo com qualquer diretiva religiosa, mas daí não se retira que deva haver uma neutralidade rígida, separatista, ou uma neutralidade cooperativa. E a prática legislativa e a jurisprudencial vêm no sentido de aceitar essa cooperação..Aliás, o grande caso nos Anos 80 foi a criação da disciplina da Religião e Moral católica nas escolas públicas, embora não-obrigatória, mas paga pelo Estado, com professores definidos pela Igreja. Depois isso foi sendo alargado a outras convicções religiosas. A grande dúvida que o Tribunal Constitucional teve, até hoje, foi a questão de aceitar se o Estado pode admitir a lecionação de uma religião que não é a sua dentro de uma escola pública. E por 7-6 os juízes aceitaram essa solução..Outra questão é a do casamento canónico. De facto, há uma parte do Direito Canónico que o Estado reconhece, sobretudo no que respeita às causas de nulidade do casamento. Mas, desse ponto de vista, a atual Lei da Liberdade Religiosa já tem uma solução curiosa, que é aceitar os casamentos civis sob forma religiosa - ou seja, aceita aqui uma solução que é parecida com o casamento canónico, mas não é bem igual: pode haver um casamento civil não-celebrado na Conservatória do Registo Civil, mas celebrado por ministros de uma certa religião..Não fugindo à sua pergunta: de facto, o princípio é o da separação, mas depois a Constituição não se pronuncia sobre os vários submodelos que esse modelo maior tem e a prática, de facto, talvez pela vivência e pela consciência social, tem sido a de escolher um Princípio de Cooperação ou de Separação Cooperativa..Mas já se levantou a questão da constitucionalidade da Concordata... Era uma questão que se tinha colocado ao abrigo da Concordata de 1940, quando passámos para a Constituição de 1976. Vários autores, eu próprio me referi, em certos aspetos... Havia normas de privilégio, que eram manifestamente inconstitucionais. Outra coisa é uma norma de tratamento preferencial em função da representatividade. Claro que às vezes a distinção não é muito fácil..Mas uma Igreja que já tem esse instrumento de colaboração com o Estado não tem culpa que as outras não o façam. Aqui o problema é: para termos uma igualdade, vamos destruir aquilo que já foi conquistado, só porque as outras não fizeram o seu trabalho? A igualdade também não pode ser feita à custa da desigualdade, ou à custa da destruição de conquistas daqueles que, ou por razões históricas conseguiram chegar antes, ou pelo seu próprio dinamismo, conseguiram fazer..Isto é, pela lógica da igualdade absoluta, aqueles que têm algo, por muito pouco que seja, devem perdê-lo em nome do nivelamento... É verdade, em nome da uniformização minoritária. E depois há outra questão também. A laicidade é a questão do Estado, poder político, porque a laicidade não se aplica aos cidadãos. Os cidadãos, enfim, podem ter vários conceitos laicos, no sentido de serem crentes ou não-crentes. Aliás, ao contrário do que muitas pessoas pensam - há estatísticas sobre isso -, não tem havido uma diminuição da religiosidade, tem havido alguma mudança no tipo de religiosidade das pessoas..Pelo que explica, a lei impõe, assim, uma separação Estado-religiões olhando para o tecido social e avaliando o peso de cada organização na sociedade. Sim, sim... bem, na verdade, este submodelo ainda tem mais submodelos. Se o Estado em relação à Igreja Católica tem uma Concordata, já em relação ao Imamat Ismaili tem um acordo, mas agora em matéria, por exemplo, de ações fiscais, qualquer religião inscrita tem os mesmos direitos que têm outras religiões. Aqui, todas as religiões são tratadas por igual..Sim, o Estado português tem acordos de integração jurídica com a Igreja Católica e com o Imamat Ismaili. Há mais casos semelhantes? Antes só tínhamos um, que era com a Concordata de 1940, que agora foi substituída pela Concordata de 2004, com a Igreja Católica. Em 2009, publicado em 2010, houve um outro acordo, que é o celebrado com o Imamat Ismaili, mas pode haver acordos com outras instituições religiosas..A Lei da Liberdade Religiosa estabelece a possibilidade de haver acordos de direito interno entre o Estado e as confissões religiosas. Eu acho essa ideia muitíssimo boa, o que em muitos países já sucede. Espanha tem esse modelo..Ou seja, a ideia é haver acordo entre o Parlamento e cada confissão... Sim. É replicar um pouco aquilo que acontece hoje na Concordata com a Igreja Católica e no tal acordo de 2009 entre o Estado português e o Imamat Ismaili. E para quê? Por exemplo, para se fazer casamentos civis sob forma religiosa com essa confissão; ou para reconhecer dias de feriado dessa confissão, por exemplo, dias de festividade poderem ter feriados. Ou nos dias de culto os alunos poderem ter dispensa de exames....Até estranho é por que razão as outras confissões religiosas radicadas não usam esta possibilidade..Essa possibilidade existe desde quando? Desde 2001. Já agora, como é que isto se processa: há uma discussão entre o Governo e a confissão religiosa, fazem um acordo, a Comissão Inter-religiosa dá um parecer, mas depois o acordo entra como proposta de lei à Assembleia da República. E é aprovado por Lei da Assembleia da República..A lei diz que "as igrejas ou comunidades religiosas radicadas" - que são aquelas que têm mais de 30 anos no país - "podem propor a celebração de acordos com o Estado em matérias de interesse comum". Apenas diz isto. Quais são as matérias de interesse comum? Pode haver várias. Isso, depois, pode haver uma grande variedade de assuntos..Por exemplo, a questão do casamento entraria aí? Sim, sim, entraria aí. Mas também o ensino, ou também, por exemplo a proteção do traje religioso..Só que, em alguns casos, por que é que é mais difícil? Porque no caso dos Protestantes, eles não são, digamos, universais, são estaduais. Embora haja uma Aliança Evangélica Internacional, são confederações de religiões evangélicas ou protestantes, mas é mais difícil ter essas religiões congregadas para se fazer um acordo de Direito Internacional. Mas mesmo assim, para as religiões protestantes, admira-me por que é que não há interesse da parte delas, a não ser que o Estado Português também não o queira fazer, mas não me consta que isso suceda. Penso que seria uma maneira interessante de regular o fenómeno religioso e de proteger também as religiões minoritárias das tentações que também às vezes pode haver, por parte das religiões maioritárias..Num artigo recente no DN defendeu que existem movimentos atualmente na sociedade que confundem laicismo do Estado com teofobia - medo da religião ou necessidade de destruir a religião, numa reinvenção do marxismo religioso. Isto não vai ao encontro da chamada Cancel Culture, do pensamento único, da necessidade de anular quem não pensa como Eu? A expressão religiosa também comporta a expressão antirreligiosa - a liberdade de expressão a discussão no plano das ideias, no plano opinativo, tanto dá crítica a favor, como crítica contra as religiões existentes. Agora, não se pode é ter uma crítica unilateral, apenas criticar uma única confissão religiosa - que é a que tem sido dirigida à Igreja Católica, talvez também porque seja a mais representativa....Não vejo esses movimentos, por exemplo, a criticarem o dinheiro que é dado para construir uma Mesquita no Martim Moniz e o próprio Mamat Ismaili, que também tem tido bastante financiamento por parte do Estado..Aliás, tal como falámos, toda a nossa pirâmide legislativa está criada numa lógica de cooperação tendo em conta a representatividade das religiões. Cooperação proporcional..O facto é que Portugal continua a ser um país maioritariamente católico. Talvez um dia, quem sabe, deixe de o ser. Até poderá passar a ser um país ateu ou outra coisa qualquer. Mas aquilo que parece que acontece com esses movimentos de teofóbicos, como lhes chama, é que parecem querer forçar um tipo de sociedade que ainda não é a nossa - se é que alguma vez será... Não é querer construir a casa pelo telhado? O último censo diz que 80% das pessoas se anunciam como católicas, censo de 2021. É um dado objetivo. Vamos lá a ver, os críticos têm toda a legitimidade de intervir, obviamente, mas também os outros - como é o meu caso -, temos toda a liberdade de os criticar, sobretudo mostrar as suas contradições. Porque quando o objeto de crítica é só uma instituição... e quando se faz uma crítica que se considera moralmente superior... É esse o problema do marxismo cultural, é que há uma superioridade moral marxista. Então, já agora, que isso seja feito com justiça para todas as convicções religiosas que se estejam a denunciar. Admito que seja menos grave, porque as outras têm menos dinheiro do que a Igreja Católica, mas isso então deve ser visto de uma forma igual em relação a todas as questões..Mas eu vou mais longe. O problema é que, qualquer crente tem o direito de exigir do Estado que os seus sentimentos sejam protegidos e não sejam alvo de ataques que possam pôr em causa a sua própria existência. E, portanto, aqui, o dever do Estado em relação à liberdade religiosa é um dever negativo, de não interferir e de não prejudicar, mas é também um dever positivo, de proteger os sentimentos religiosos..E como é que isso está previsto? Uma forma de proteção é a cooperação. Mas recordo, por exemplo, que o Código Penal prevê dois crimes (arts.º 251.º e 252.º) que se traduzem na violação de sentimentos religiosos por alguém em relação a uma certa prática religiosa: eu não posso interromper uma procissão ou destruir um objeto religioso, isso é um crime..O Código Penal, que é o último braço da intervenção sancionatória do Estado, tem também a ideia de que o Estado tem um dever de proteção dos sentimentos religiosos, não apenas de deixar as coisas andarem por si, não interferir, mas o dever de proteger..Além do mais, o Código Penal agora também inclui, por exemplo, o crime de ódio racial. Nesse sentido também pode haver um crime de ódio religioso, porque é o mesmo tipo de discurso..Este fim de semana uma estátua de Santo António foi vandalizada em Vendas Novas, em mais um episódio de radicalização. Dias antes, houve uma missa de pessoas LGBT+ invadida por supostos católicos dizendo: "O vosso lugar não é aqui." Não sente que existe um ambiente demasiado extremado na sociedade, hoje em dia? Acho que a questão religiosa, a partir de agora, vai entrar num novo ciclo em Portugal. Esta Jornada correu muito bem, mas também vai acirrar os ânimos por parte daqueles que entendem que o Estado não deve apoiar. Contudo, acho também que o espírito liberal é esse mesmo: é as pessoas poderem manifestar-se. Mas uma coisa é a liberdade de expressão no espaço público, com críticas, outra coisa é gestos de violência, ou um discurso de ódio religioso. Acho que é de condenar a interferência num ato de culto, como é de condenar a destruição de estátuas. Mas a liberdade de expressão é também uma liberdade de expressão crítica, e isso tem de ser preservado..Mas como é que o Estado pode, através da lei, tutelar isso? Porque o discurso de ódio já é tutelado, e convenhamos que é difícil tutelar isso não cerceando completamente a liberdade de expressão. Como é que se consegue esse equilíbrio? Quanto aos crimes que implicam uma atividade física, é preciso saber se essa atividade, se existiu, provocou danos de natureza física, por exemplo, nas culturas, nas igrejas, nas estátuas. Isso é relativamente mais fácil. Se esses objetos, sendo de natureza religiosa ou de culto religioso, têm de ser preservados e se são, digamos assim, intocáveis..No que respeita ao discurso de ódio, é mais difícil. Mas acho que há uma diferença entre a crítica e o ódio. Uma crítica pode ser áspera, pode ser sarcástica, pode ser até artística, mas o ódio já não é arte. Agora, é preciso ver os adjetivos que se utilizam..Mas como é que chegamos a essa conclusão? Criamos uma comissão de especialistas? Não, isso não, não..Mas tem sido um pouco esse o caminho escolhido sempre... Pois, pois tem. O combate às fake news tem ido por esse caminho, eu sei. Mas eu sou absolutamente contra um policiamento administrativo da internet e do discurso. Porque então temos um poder administrativo governamental a substituir-se ao poder judicial. Era só o que faltava!.O Brasil, por exemplo, está a ir nesse sentido, e é um caminho perigosíssimo..Então quem deve agir? É o poder judicial que deve intervir. Mas admito que o poder judicial tem de se reorganizar para ter uma intervenção, digamos, pronto-socorro imediata para mandar retirar os conteúdos da internet, sejam de ódio racial, ódio homofóbico, ódio religioso....É quem está mandatado para isso. É o poder judicial que tem de intervir nesta matéria, não deixar o "negócio" para o poder administrativo ou, pior ainda, para o poder governamental..Porque isso seria, no fundo, criar uma forma de censura. Sim, sem dúvida. A linha tem de ser essa. O problema é que o poder judicial não tem essa preparação, nem tem pessoas para isso..Ou seja, temos de criar novos mecanismos dentro do poder judicial? Acho que essa é uma das reformas da Justiça que tem de ser repensada e nunca se tem falado em Portugal. No Brasil sim, muito, na intervenção do poder judicial no combate às fake news, e também no combate aos crimes expressivos de ódio..Aliás, é para isso que o poder judicial existe... combater o crime. É para isso que há Estado de Direito e separação de poderes!.Sente que, de certa maneira, a nossa cultura cristã/católica está de alguma forma ameaçada? Não, não sei se será. Eu acho é que, no espaço público, a liberdade deve ser uma liberdade em que as partes devam estar em condições de idêntica proteção e em concorrência perfeita. E o que se nota muitas vezes, é que a comunicação social favorece certos discursos radicalizados contra certas instituições e não faz a devida triagem em função do chamado critério jornalístico. Eu acho que isso é que é preciso observar..Foi o que se deu agora em relação os abusos na Igreja católica. Eu percebo que isso é um assunto muito grave e sério, como é óbvio, eu percebo que tem um impacto muito grande, porque, lá está, a Igreja tem de ser aqui portadora de uma moralidade acima de qualquer suspeita, mas abusos não há só na Igreja Católica....Mas dois males não fazem um bem, não é? Sim, eu sei. Mas lembro-me, por exemplo, de casos de outros estabelecimentos - militares, prisões, por exemplo... Penso que isso é uma questão que acho que deve ser vista..Não estou com isto a dizer que deve ser proibida qualquer tipo de crítica, mas as críticas são assimétricas, de facto..Agora, na parte da Igreja Católica, esta tem de reagir, de responder, e a própria Igreja, como instituição, tem de também de indemnizar [as vítimas], porque no fundo, alguém que entregue uma criança nas mãos de uma instituição, confia nela. Além da culpa da pessoa, há uma culpa organizacional, pelo risco ou pela atividade..A instituição oferece às pessoas um manto de credibilidade e de seriedade. E isto é como um banco: quando o gerente do Banco rouba dinheiro ao depositante, o gerente vai ser punido, mas o banco também tem de assumir a responsabilidade pela atividade daquele seu funcionário. E aqui é um pouco esta lógica..Há aqui uma culpa institucional objetiva que deve ser reparada..Mas está calmo relativamente a falar dos fenómenos de imigração? Isso é um outro problema de fundo que as pessoas também não percebem às vezes. É que a religião também tem um lado de identidade cultural e social; tem um lado identitário. Com certeza que o Estado não é confessional, e muito bem. A sociedade vai sendo cada vez mais heterogénea, mas há ainda um país chamado Portugal e há ainda uma identidade portuguesa. É capaz de ser difícil definir isso..O problema dos fenómenos migratórios, para além das questões de segurança que têm suscitado nalguns casos, há depois problemas da nossa parte, a tolerância religiosa para com esses grupos de imigrantes - que acho que deve existir -, mas depois da parte deles não há muitas vezes o desejo de aceitar as regras do próprio país..Nesse sentido, a lei do véu Islâmico, por exemplo, da França, que realmente não devemos aceitar, é um desejo de manter uma identidade nacional abstrata e pública entre todos os cidadãos, para evitar precisamente a criação de espaços de rutura de uma identidade nacional..Não estou a defender a existência dessa lei, mas acho que esses fenómenos que têm agora aparecido podem gradualmente pôr em causa uma identidade nacional e uma coesão entre aqueles que vivem em Portugal. Nós não temos de ter todos a mesma religião, com certeza, mas tem de haver aqui o respeito e a tolerância entre as várias religiões. Algumas delas não têm tido esse respeito, porque se deixam radicalizar..O desafio é conseguir essa tolerância dos dois lados... Exatamente, acho que é isso..O doutor é católico? Sim. Embora a Constituição não permita que se pergunte denominação. Estou a brincar consigo (risos)..(Risos). Eu devolvo-lhe a gentileza: eu sou ateu. Mas não sente, precisamente, que uma mensagem de tolerância de ideias, em que haja equilíbrio no debate de ideias e críticas, teria ainda mais peso se fosse também publicamente defendida por cientistas do Direito, cientistas sociais, assumidamente ateus ou não-crentes? Ou junto com pessoas de outras religiões? Sim. Eu acho que, em geral, a comunidade jurídica está muito alheada destes assuntos, porque considera que o assunto não tem grande importância ou porque é um assunto incómodo, porque há certos pruridos ser-se conotado com certo tipo de organizações ou certo tipo de filiações ou denominações..Mas olhe que aqui há um importante trabalho que não é muito visível, de facto, mas até podia ser mais, da Comissão da Liberdade Religiosa, que foi criada com esta Lei da Liberdade Religiosa: é um organismo consultivo composto por 11 pessoas e tem feito alguns pareceres importantes e tem pessoas de várias confissões religiosas. Aliás, o vice-presidente é até protestante Batista - eu conheço bem o dr. Soares Loja - e, portanto, penso que é um assunto que, em Portugal, curiosamente, nunca foi objeto de muito interesse por parte dos jurista [ler caixa]. A questão tem-se reduzido muito à questão do direito matrimonial canónico, basicamente..Mas é um assunto que, para um crente, tem a ver com todos os aspetos da vida. E podemos garantir depois que a lei é bem implementada? Na parte da assistência religiosa - a hospitais, estabelecimentos de menores e prisões - dantes havia uma legislação que favorecia a Igreja Católica, mas felizmente que essa legislação foi revogada e foi substituída por um pacote. Na altura, fiz parte do primeiro mandato da Comissão da Liberdade Religiosa e isso foi revisto. Essa matéria foi legislada em 2009 e hoje há três diplomas, precisamente sobre essas três áreas. Admito que na prática possa haver ainda algum favorecimento à Igreja Católica, o que eu lamento, mas de facto os diplomas estabelecem uma igualdade e não nenhum privilégio em favor da Igreja Católica..Mas há coisas que podem melhorar. Nas Forças Armadas, por exemplo, há ainda uma posição de privilégio da Igreja Católica em relação às outras convicções religiosas, porque há uma patente própria que é atribuída ao bispo das Forças Armadas e que não é atribuída a outras confissões religiosas..A lei prevê várias garantias, mas muitas vezes há problemas de implementação, não concorda? É. Aliás, acho que as pessoas nem sequer conhecem. Na minha opinião, sinceramente, acho que há dois problemas: desconhecimento e um amolecimento do exercício da prática religiosa - sendo que não é só dos católicos. Ou seja, ao não levarem com rigidez ou com mais força os seus preceitos religiosos, sobretudo em matéria de culto, isso conduz ao desconhecimento de que têm esses direitos. Mas eles estão todos bem explicadinhos na Lei da Liberdade Religiosa, a Lei n.º 16/2001..Isto, no fundo, é o país dos católicos não-praticantes, não é? É isso mesmo. No fundo isto fica assim um bocadinho em águas de bacalhau..Sei que tem no prelo um livro sobre Direito e religião...Qual o título e quando sai? Sim, Chamar-se-á Direito e Religião e tem como subtítulo A Liberdade Religiosa no Estado Constitucional Contemporâneo. É um livro que me está a dar muito prazer fazer, porque será o primeiro na nossa República que tratará do assunto em termos globais, das relações do Estado e do Direito com as religiões e com as convicções religiosas. Este livro não se confunde com o Direito Canónico, porque não é estudar o direito interno de uma confissão religiosa - em particular da mais desenvolvida e mais antiga, porque as outras religiões também têm direito próprio. Mas é sobretudo a questão do chamado direito do Estado, ou direito público, nas relações que o Estado deve ter com o fenómeno religioso. Não quero comprometer-me com uma data específica, mas espero tê-lo pronto pelo menos até ao fim do ano..Já agora, há outro aspeto importante: espanta-me muito que Portugal seja o único país da Europa em que esta disciplina, de Direito Eclesiástico, o Direito da Religião, conforme queiram chamar - ou Direito e religiões -, não exista como tal nos nossos planos de estudo nos Cursos de Direito. Em Espanha, na Alemanha e na Itália essas disciplinas em alguns casos até são obrigatórias. Mas em Portugal, por incrível que pareça, com a democracia, no novo paradigma da igualdade e da liberdade religiosa, da pluralidade religiosa, ela nunca foi estabelecida nas faculdades e nem mesmo na Universidade Católica, na sua Faculdade de Direito, o que não deixa de realmente ser surpreendente..Nem sequer é abordado numa perspetiva de História do Direito? Alguns temas são dispersos por outras disciplinas, como a questão da liberdade religiosa, que pode ser dada em direitos fundamentais, ou em Direito Constitucional - falamos um pouco sobre o Princípio de Laicidade, como em outros princípios, princípio do Estado de Direito, o princípio democrático, o princípio republicano, mas não em termos, digamos assim, de uma forma organizada..No fundo, isto trata de todas as aspetos da vida económica e social: inclui a parte de impostos, a parte da educação, a parte do casamento, a parte do trabalho, a parte das provas públicas, a assistência religiosa nos hospitais, nas prisões, nos estabelecimentos tutelares de menores, no serviço militar obrigatório, a questão do serviço cívico... Isto tem tudo a ver com todas as faces da vida humana. O fenómeno religioso acaba por tocar na relação que o Estado tem, que é de o organizar e de o regular; tem depois conexões com praticamente todos os aspetos da vida humana..Só precisar o seguinte: não estou a dizer que não haja, que não tem havido em Portugal obras jurídicas sobre esta matéria - tem havido, mas não no sentido de um manual completo e panorâmico sobre todos os assuntos que são atraídos à órbita deste ramo do direito, que não tem sido encarado em termos pedagógicos nas faculdades de direito do país. Isso, de facto, não tem.