Azar ao amor

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Eis mais uma burla católica, com o aval do PM e do PR. Mais uma armadilha para os pobres, servida pelos mesmos do costume. Marcelo promulgou o Eurosorteio, o diploma do Governo que cria um novo jogo social com exclusividade para a Santa Casa da Misericórdia. Ou seja, umas semanas depois de sair um estudo do Conselho Económico e Social sobre a raspadinha, evidenciando que se trata pobres a financiar pobres, que são os que têm rendimentos mais baixos que mais jogam (e ainda os mais velhos e mais frágeis), a cúpula política contra-ataca. Esse relatório apelava à acção? Aqui está: serve-se mais do mesmo, agrava-se o problema em vez de o sanar. Os ricos especulam, os pobres raspam e rapam. Quem lucra? A Santa Casa, claro, que empocha biliões com os seus jogos. Recebe com os perdedores e até ganha com os ganhadores já que há milhões em prémios que ficam por reclamar, até porque alguns destes jogos têm um prazo de validade. E quem não reclama o troféu nesse intervalo, perde direito a ele... embora, nas raspadinhas, inclusive, esse aviso não esteja escrito em lado nenhum. Será legal?

Adiante. Como essa instituição perdeu muito dinheiro na covid e se meteu em vários negócios ruinosos nomeadamente no Brasil e estava à beira da bancarrota, PR e PM logo lhe vieram dar um auxílio. Resgatam a Santa Casa e condenam os mais desfavorecidos. Que bonito: uma bóia de salvação para mais uma instituição da Igreja que é um pedregulho amarrado ao pescoço dos pobres. A Santa Casa promete ajudá-los com o dinheiro que lhes retira. Engorda à grande com o pão dos mais carentes para depois se mostrar magnânima ao devolver-lhe umas côdeas velhas e meia dúzia de migalhas.

A cúpula política estimula esta caridadezinha do chá das 5 e ainda responsabiliza quem caiu no engodo: "A culpa é dos pobres - são uns viciados, jogadores patológicos", lê-se por aí. Já proibir este tipo de produtos é que não. Reparem, metade dos rendimentos da Santa Casa, cuja maior missão seria ajudar os mais vulneráveis, advém do Jogo. Quão mais perverso poderia este esquema ser?!

Sublinhe-se que como estes sorteios e lotarias são de venda livre, quem tem mesmo uma adição não pode ser inibido de jogar como nos casinos. Mas só a interdição poderia funcionar num país em que a lotaria instantânea, por exemplo, atrai dez vezes mais do que em Espanha e mais do dobro da média europeia.

Que triste retrato do país, afogado em jogos de muito azar, com uma imensa mole humana à procura do sonho em limalhas prateadas. Imerso numa tonta esperança que lá vai calando a revolta, alimentada por uma casta política que só quer o seu dinheiro. A hipocrisia é tão grande que Marcelo promulgou o tal diploma mas escreveu no comunicado que a "evidenciada problemática da adição ao jogo deveria levar a menor e não a maior oferta". Extraordinário. Como se não bastasse, ainda acrescentou que as receitas deveriam "ser canalizadas para o tratamento e prevenção de comportamentos aditivos". Usar o dinheiro provocado pelos problemas para os tratar? Notável.

Que lindo modelo. Ao nível de quando foi a Constância e os jornais titulavam: "Uma sandes e uma raspadinha para o Prof. Marcelo". Ou no último Dezembro, em que foi a Abrantes e, segundo a imprensa, "comprou uma raspadinha e elogiou os museus do concelho". Vá. Metam mais bacalhau e Ronaldo nisso, que a coisa passa.

Psicóloga clínica.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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