Aviões chegam à ilha descoberta por Portugal e onde Napoleão morreu
É um dos locais mais isolados e difíceis de visitar no planeta. Mas falta pouco tempo para isso mudar. A ilha de Santa Helena, situada no Atlântico Sul, a 2200 quilómetros da costa angolana, passará a ter um aeroporto operacional em maio. Será o fim de séculos de reclusão e acesso condicionado.
A ilha descoberta por uma armada portuguesa capitaneada por João da Nova, em 1502, e local de exílio final de Napoleão entre 1815 e 1821, só é acessível por meios navais: o navio de linha RMS St. Helena, cruzeiros e iates.
Estes últimos continuarão a aportar à ilha; o RMS St.Helena, com capacidade de transporte até 150 passageiros (além de contentores), tem a última viagem agendada para julho. As deslocações do RMS St. Helena para a ilha principiam na Cidade do Cabo e implicam uma viagem de cinco dias, mas é possível a partida de um porto britânico, demorando-se então duas semanas. O preço médio da viagem Cabo-Jamestown era de 800 euros por pessoa, um preço agora inflacionado com as viagens finais a superarem os mil euros.
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Com o aeroporto, o RMS St. Helena e outros navios passarão apenas a transportar bens. Em menor dimensão, já que alguns destes chegarão por via aérea.
A ligação privilegiada será entre a Cidade do Cabo ou Joanesburgo e Jamestown, como sucede no plano marítimo. Decorrem já voos experimentais para testar procedimentos técnicos. A duração prevista do voo é de cinco a seis horas, estando assegurado, pelo menos, um voo semanal. E dos 1500 turistas que visitam Santa Helena por ano (número que não inclui visitas de cruzeiros), a responsável local do setor, Cathy Alberts, citada pela agência de notícias MercoPress, prevê que se passe para 30 mil visitantes a curto prazo, tornando a ilha autossuficiente em termos económicos. Território britânico, Santa Helena depende financeiramente do governo de Londres. No passado, conseguiu alguns breves período de autonomia económica, em especial no início dos anos 50 com as plantações de linho.
O maior número de turistas não deixa de preocupar os santa-helenenses (ou "santos", saints como são designados em inglês). Para os naturais da ilha onde chegaram os portugueses em maio de 1502, o turismo poderá mudar de maneira permanente o modo de vida local. A construção de hotéis - há inaugurações já para este ano -, estâncias balneares, a venda de propriedades, a própria pressão demográfica deixarão marcas na ilha que tem uma superfície de 122 km2 (a do Faial, nos Açores, tem 172 km2 e 15 mil residentes), paisagens deslumbrantes e uma temperatura média entre os 20-27 graus.
Lugar único no mundo, a antecipar futuras mudanças no plano demográfico, tem em curso, desde 1 de fevereiro até dia 14, um recenseamento do número de nascidos na ilha, residentes em Santa Helena e no exterior. No território, o recenseamento decorre hoje. Quanto aos naturais no estrangeiro, antecipa-se que superem a população local.
Para os céticos quanto ao futuro, os defensores do aeroporto recordam que a construção foi largamente aprovada em referendo há 14 anos. A construção iniciou-se há seis anos.
Uma segunda transformação vai afetar os cerca de 4500 residentes. Questões de saúde mais complexas passarão a ter resposta rápida, com o transporte aéreo de doentes. Outro sinal das mudanças: há já uma operadora de telemóveis na ilha.
Além de destino turístico para aqueles que apreciam paisagens intocadas, a pesca e o mergulho, Santa Helena deve a sua reputação a um famoso hóspede (ainda que forçado): o antigo imperador dos franceses, Napoleão Bonaparte. Hoje, o residente mais famoso nasceu no século XIX, e chegou à ilha em 1882. É uma fleumática tartaruga gigante das Seychelles, com idade estimada em 183 anos. Ou seja, terá nascido em 1834... e há quem especule ter nascido ainda antes da morte de L"Empereur, em 1821. Só não se cruzaram na ilha que foi, ao longo do século XIX, importante entreposto comercial.
Neste período, pelo porto de Jamestown chegaram a passar mais de mil navios, da britânica Companhia das Índias Orientais e de outras nacionalidades, no desenvolvimento de um padrão estabelecido na época da descoberta.
No século XVI, Santa Helena foi usada como base para as aguadas e para o abastecimento das tripulações em frutas, vegetais e carne.
Robinson Crusoe... português
Embora Portugal nunca tenha colonizado Santa Helena, que passou por mãos holandesas antes de se tornar britânica no século XVII, o primeiro habitante permanente foi um português, Fernão Lopes. Refugiado por vontade própria na ilha, em 1515 (após punição de Afonso de Albuquerque), seria chamado a Portugal por D. João III, que lhe pagou uma viagem a Roma, onde se encontrou com o papa Clemente VII. Voltaria em seguida à ilha para uma vida de quase total isolamento, espécie de precursor da figura de Robinson Crusoe. Morreu em Santa Helena em 1545.
A ilha está associada ao combate à escravidão, sendo utilizada como base pelos britânicos na interceção aos negreiros que prolongavam o comércio após a abolição decretada por Londres em 1834. A partir de 1840, navios britânicos intercetaram embarcações com escravos da África ocidental para os EUA e Brasil, sendo especificamente citados "os navios negreiros portugueses" em instruções daquele ano.
A inacessibilidade voltou a ser útil para a detenção de prisioneiros bóeres na guerra Anglo-Boer (1899-1902). Mais de seis mil pessoas aqui foram forçadas a viver.