Aventuras e desventuras do cinema "histórico"

<em>Salgueiro Maia - O Implicado</em> faz o retrato de uma figura central nos acontecimentos do dia 25 de abril de 1974; infelizmente, o filme não consegue superar os limites de um cinema "ilustrativo", enraizado numa linguagem académica de televisão.
Publicado a
Atualizado a

Em 1972, aquando do lançamento do seu penúltimo filme (o assombroso Frenzy, entre nós estreado como Perigo na Noite), Alfred Hitchcock definiu uma fronteira conceptual que rasga o pensamento do cinema em dois territórios estranhos entre si. Questionado sobre a atenção que prestava às críticas aos seus filmes, reconheceu que, na maior parte dos casos, o desiludiam. Porquê? Porque apenas descreviam o "conteúdo" (content), ignorando o "tratamento" (treatment). Hitchcock distinguia, assim, a mera inventariação dos factos narrados da respetiva abordagem através dos meios específicos do cinema: um filme não se define pelos factos que encena ou evoca, mas, justamente, pelo seu trabalho narrativo.

No nosso presente, há um impulso "culturalmente correto" que normalizou tal simplismo: confundir um filme com os factos coligidos na sua sinopse já não é apenas o estilo de algumas variantes da crítica de cinema; passou a ser também um modelo de organização de muitos filmes. Assim acontece com Salgueiro Maia - O Implicado, de Sérgio Graciano, objeto típico de um cinema "ilustrativo", enraizado numa linguagem académica de televisão, em que a importância simbólica dos factos evocados é tratada como uma proeza de revelação. A frase promocional reflete essa ideologia do "desvendamento": "A história nunca antes contada do herói de abril."

O assunto afigura-se tanto mais delicado quanto Salgueiro Maia - O Implicado é apenas um pormenor no interior de uma dinâmica ideológica que adquiriu um poder imenso na sociedade portuguesa e na forma como partilhamos (ou julgamos partilhar) as convulsões da história coletiva, a começar pelas memórias do dia 25 de abril de 1974.

A encenação "obrigatória" do 25 de abril como epopeia redentora, quase religiosa, acontece quase sempre através de um misto de apagamento e demonização de tudo o que vivemos até ao dia 24 de abril do mesmo ano. Como se a celebração da democracia "obrigasse" a que o fascismo português seja reduzido a uma coleção de anedotas mais ou menos ridículas - será essa uma maneira inteligente de viver e pensar a democracia?

Sintomático é o tratamento em tom de caricatura grosseira de duas personagens de militares que não estavam com o Movimento das Forças Armadas: o pai do colega de Salgueiro Maia a cuja casa vão jantar e o oficial com que o próprio Salgueiro Maia se confronta na rua (interpretados por Miguel Borges e Paulo Calatré, respetivamente). É, no mínimo, bizarro que a lógica ditatorial do Estado Novo - e dos militares ao seu serviço - seja "exposta" através de figuras que apenas existem como patéticas marionetas.

Insisto: a questão excede o filme, o filme apenas a ilustra. E poderá mesmo levar alguns a perguntar se se trata de duvidar da seriedade de quem vem celebrar o triunfo da democracia e, neste caso particular, a importância estratégica e a dignidade humana de uma figura como Salgueiro Maia. Colocar a questão desse modo é, afinal, confirmar o vício descritivo apontado por Hitchcock - como se o "conteúdo" dispensasse qualquer reflexão sobre o "tratamento".

Que encontramos, então, em Salgueiro Maia - O Implicado? Tão só um conceito teleológico da história: como personagem do filme, Salgueiro Maia é alguém que se limita a agir para ilustrar um destino antecipadamente traçado (pelo imaginário histórico que se quer satisfazer). Cedo se compreende, aliás, que o ziguezague temporal da ação, antes e depois do 25 de abril, entre o público e o privado, não passa de um tique "modernista" sem qualquer motivação dramática ou fundamento dramatúrgico.

Mas não seria legítimo fazer um filme que apostasse menos na complexidade da história e mais na vocação mitológica dos seus heróis? Claro que sim. Sem esquecer dois aspetos: primeiro, seria necessário sustentar o conceito de heroísmo como algo mais do que uma imitação da iconografia que as repetições televisivas transformaram em imagens de marca (exemplo: as cenas do Largo do Carmo são pueris derivações de tais imagens); segundo, a dimensão mitológica exige um sentido de espetáculo e uma vibração formal que Salgueiro Maia - O Implicado nunca possui (a herança de autores como o americano Cecil B. DeMille ou o francês Sacha Guitry poderá ajudar a separar as águas).

É pena que a boa vontade de um projecto como Salgueiro Maia - O Implicado acabe por desbaratar uma base técnica que, como se prova, superou as limitações que, durante décadas, assombraram a produção de cinema em Portugal. Até porque podemos perceber que, no plano da interpretação, a formatação "novelesca" não destruiu talentos como o protagonista Tomás Alves, José Condessa ou, em particular, Filipa Areosa, intérprete da mulher de Salgueiro Maia, que consegue alguns fogachos de genuína emoção, contrariando a debilidade dramática das suas cenas. É "apenas um filme", como diria também Hitchcock, mas falta-lhe querer ser mais filme e menos estereótipo.

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt