Aventuras de um experimentador no país do cinema
No filme Dez (2002), Abbas Kiarostami filma uma mulher (Mania Akbari) a dialogar com um leque de personagens que inclui o seu filho, uma irmã, uma noiva que não é da família... Deparamos com sinais da sociedade iraniana que, ironicamente, surgem encenados no mesmo espaço: são dez sequências sempre no carro da protagonista, sempre com ela ao volante. Em boa verdade, Kiarostami retomava um dispositivo frequente nos seus filmes - em O Sabor da Cereja (1997), por exemplo, o homem que prepara o seu suicídio é também um obstinado condutor.
O efeito de assinatura ("protagonista-a-conduzir") é de tal modo forte que, em 2015, quando descobrimos o filme Taxi, de Jafar Panahi, não pudemos deixar de evocar Kiarostami: o motorista, interpretado pelo próprio Panahi, passa o tempo ao volante do seu taxi e, tal como a mulher de Dez, vai testemunhando as pequenas convulsões quotidianas de uma sociedade em que detetamos as barreiras mais ou menos discretas, mas sempre contundentes, que separam personagens masculinas e femininas.
Claro que a "citação" de Panahi não esgota o efeito de Kiarostami no cinema iraniano contemporâneo. Nem fará sentido descrever a sua dinâmica a partir do "estilo" de Kiarostami, de tal modo são importantes as singularidades criativas de autores como Mohsen Makhmalbaf, a sua filha Samira Makhmalbaf, Majid Majidi ou Asghar Farhadi. Mas não será exagerado considerar que o labor de Kiarostami estipula uma atitude que, de uma maneira ou de outra, perpassa nas obras de todos os outros. A saber: o cinema não é tanto um instrumento de "reprodução" do real, mas mais uma máquina de narrativas através das quais podemos perceber que o real, por mais que isso custe ao "naturalismo" televisivo, não se deixa reproduzir - bem pelo contrário, resiste a ser transformando em imagens.
Imagens e sons: como diria a preguiça do lugar-comum, fala-se demais nos filmes de Kiarostami... Close-Up (1990), por exemplo, não será um filme em que a descoberta da verdade implica uma arfante troca de palavras, emocionalmente vertiginosa, potencialmente infinita? Nesta perspetiva, talvez se possa dizer que Farhadi emergiu nos últimos anos como o mais direto herdeiro de Kiarostami, desmontando o universo privado de casais que, por assim dizer, testam através dos diálogos as leis da sua consistência afetiva e social. Assim acontece em filmes exemplares como Uma Separação (2011) e O Passado (2013), e também no magnífico Forushande, lançado este ano em Cannes e ainda por estrear entre nós.
Não será por acaso que Kiarostami, a par de outros experimentadores contemporâneos (Jean-Luc Godard, Peter Greenaway, David Fincher, etc.), se interessou pelas possibilidades das novas tecnologias, em particular das câmaras digitais. No limite, ele pergunta mesmo ao espectador se as novas configurações técnicas do cinema não estarão a alterar a própria noção de real. Veja-se o misterioso Five (2003), com a sua coleção de cinco segmentos contemplativos de ações mais ou menos anódinas (por exemplo, o vai-vém de pessoas a caminhar numa plataforma frente ao mar...). Lembremos apenas que essa era uma experiência dedicada à memória do mestre japonês Yasujiro Ozu (1903-1963), sem que se saísse do mesmo país: o do cinema, com as suas fronteiras maravilhosamente permeáveis.