Atrás de Deus

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No filme The Dead Zone ["Zona de Morte", em Portugal, "Zona Morta", no Brasil], de David Cronenberg, baseado no livro homónimo de Stephen King, o personagem principal, interpretado por Christopher Walken, ganha poderes mediúnicos depois de passar um período em estado de coma.

A determinada altura é apresentado a um candidato presidencial [o ator Martin Sheen] mas logo no aperto de mão vê-o, já no exercício do cargo, a apertar o botãozinho vermelho dos mísseis nucleares.

Em nome da humanidade, resolve matá-lo num comício,

Mas o candidato, ao aperceber-se de que estava na linha de tiro, pega um bebé das mãos de uma apoiante e usa-o como escudo humano. Dessa forma, o médium desiste de disparar e acaba, naquele entretanto, abatido pelos seguranças.

O final não é totalmente infeliz porque a fotografia do candidato a proteger-se, covardemente, atrás de um bebé, é capa dos jornais do dia seguinte. Desmoralizado, ele abandona a corrida eleitoral, afinal, o objetivo do herói paranormal desta história.

Vem isto a propósito de Nayib Bukele, o presidente populista de El Salvador, que resolveu esta semana ocupar o Congresso do seu país, ao lado das forças armadas e da polícia de choque.

Bukele já vinha sendo notícia por ter sido o primeiro presidente eleito em décadas fora dos partidos tradicionais, de se afirmar contra o sistema político vigente e por comunicar com a população, boa parte dela rendida ao seu discurso fácil, por tweets. Ele não participou em debates de campanha.

"Peço-vos paciência [ao povo], mas se estes sem vergonha [os deputados] não aprovarem esta semana o Plano de Controlo Territorial [um empréstimo milionário para o combate ao crime], voltaremos a convocá-los no domingo", disse o chefe de estado durante a ocupação, entre duas orações.

Sim, entre duas orações.

Bukele, recriminado pelo Supremo Tribunal local e condenado na comunidade internacional pela sua intervenção surreal numa democracia de século XXI, explicou que agia assim por ter recebido uma mensagem de Deus.

No fundo, o líder salvadorenho coloca Deus a protegâ-lo da oposição, das críticas e de uma eventual mudança de opinião do seu próprio eleitorado, da mesma forma que o candidato de The Dead Zone colocou um bebé na linha de tiro. Eles podem disparar contra mim, pensará o populista Bukele, mas, num país com 83% de devotos, não o farão se eu usar o Divino como escudo.

Eis apenas mais um ângulo do perigo que é colocá-Lo no meio de equações políticas. Cada um, na sua: Deus é Deus, os presidentes são presidentes; fé é fé, política é política; o espiritual é espiritual, o terreno é terreno; oração é oração, decreto é decreto.

Claro que, sendo o autor destas linhas correspondente em São Paulo e não em San Salvador, o foco do texto não é tanto Bukele mas mais Jair Bolsonaro, o presidente brasileiro que também gosta de atender pelo seu nome do meio, Messias.

Não foi por falta de vontade da ala psiquiátrica do seu governo que Bolsonaro ainda não invadiu o Congresso - foi, no máximo, por falta de autoridade, ou não fosse um capitão dispensado do exército por mau comportamento, ou por falta de tempo, afinal só está no poder há um ano.

Mas, como Bukele e outros populistas, o presidente do maior país da América Latina gosta de execrar o sistema político tradicional (embora dele se tenha alimentado por 30 anos), escolheu, entre as suas bandeiras de rápida assimilação, a luta contra o crime (nem que para isso dê licença à polícia para matar negros e pobres e arme a população civil) e só comunica pelas redes sociais, para entrevistadores íntimos ou ao lado de plateias domesticadas (fugiu dos debates em campanha).

Finalmente, num país com 92% de fiéis, também coloca Deus entre o Palácio do Planalto e a linha de tiro do eleitorado. "Estou a cumprir uma missão de Deus", repete sempre que se sente acossado.

Vale o que vale: Adélio Bispo, o insano que o esfaqueou, disse exatamente o mesmo.

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