Até tu, Moro
Uma boa forma de distinguir se um árbitro de futebol é bom ou mau é perceber se ele apita com os olhos ou com os ouvidos. Os que apitam com os olhos são os bons. Os que apitam com os ouvidos, os maus. Estes, ao primeiro indício de um insulto contra si, mesmo o mais leve, levantam enérgicos o cartão amarelo, às vezes até o encarnado. Com ouvidos sensíveis, costumam também ser influenciados pelos gritos da bancada ou pelos comentários da imprensa jornada a jornada.
Para eles, uma eventual ofensa à sua autoridade - portanto audível - é considerada mais grave do que um pontapé na canela, uma rasteira, um carrinho a destempo - apenas visível. Violência, defendem, não é o sangue a escorrer da perna de um atleta até porque essa perna não é deles; é uma ténue ameaça à sua honra. São, em suma, juízes em causa própria e, por isso, maus juízes.
Carmen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), instituição que em vez de crescer em credibilidade num período de falência moral dos poderes legislativo e executivo do Brasil só se diminuiu, pertence ao grupo dos juízes que julgam pelos ouvidos. No auge da crise do governo Temer, quando correram mundo imagens de um assessor especial do presidente a fugir de uma pizaria com uma mala de dinheiro, o que a indignou foi que lá pelo meio dos quilómetros de gravações do processo, um amigo corrupto do chefe de Estado se gabava de controlar juízes. O que ela viu não mereceu comentário; já o que ela ouviu, como atingia a honra corporativa da classe, indignou-a. Abandonou a sua habitual discrição e até redigiu comunicados ao país falando em "agressão inédita à honorabilidade dos integrantes do STF".
Agora, a mesma coisa: perante a ameaça meio inócua do Partido dos Trabalhadores (PT) e de movimentos na sua órbita de não cumprir a condenação de Lula da Silva, voltou a interromper mais um dos seus longos períodos de hibernação para pular da cadeira. "Desacatar a justiça é inaceitável!"
Não é a voz de meia dúzia de revolucionários alienados do PT nem as gabarolices do tal corrupto que Temer recebia em segredo no porão da sua residência oficial que sujam o nome do poder de que Carmen Lúcia é hoje a principal mandatária. É a própria justiça que se vem colocando a si mesma no banco dos réus: nos últimos dias, os jornais fizeram as contas e concluíram que o Brasil gasta o equivalente a 400 milhões de euros anuais no que se convencionou chamar de "penduricalhos" jurídicos.
Para driblar a lei, que limita a cerca de oito mil euros o salário de um funcionário público, os juízes têm auxílio de saúde, auxílio pré-escolar, auxílio de alimentação, adicional de permanência e gratificação e auxílio-moradia que, tudo somado, os coloca ao lado dos grandes banqueiros e industriais como os donos dos maiores salários do país.
Foi Luís Fux, um dos dez colegas de Carmen no STF, quem sancionou esses dribles nas barbas dela - mas ela, que julga mais com os ouvidos do que com os olhos, não viu.
Com esses dados nas mãos, a imprensa foi garimpar os beneficiários um a um. Verificou então que Marcelo Bretas, juiz da Operação Lava-Jato do Rio de Janeiro, que se fotografa nas redes sociais de arma em punho e sob citações bíblicas, recebe o auxílio-moradia (de mais de mil euros) em duplicado por ser casado com uma juíza, mesmo ambos vivendo no Rio toda a vida. E que até ele, o juiz-estrela Sergio Moro, ganha perto de 1500 euros para pagar apartamento em Curitiba, dispondo de imóvel próprio na cidade. "É uma compensação por não termos sido aumentados", defendeu-se Moro. Compensação? Lula, preso ao discurso de que não é dono do tríplex, não se lembrou de dizer que o imóvel fora uma compensação que ele se ofereceu por ter tirado 50 milhões de compatriotas da miséria.
Ou seja, até o apartamento, pago pelo contribuinte, do herói nacional Moro tem telhados de vidro: ele recebe uma "compensação" para o pagar que pode ser legal mas é seguramente tão imoral como as "compensações" que vem julgando impiedosamente num país que ainda há poucos anos estava no mapa da fome da ONU, é campeão mundial da desigualdade e onde 21 milhões de compatriotas seus mal têm onde dormir.
E Carmen Lúcia, mesmo vendo estas imoralidades debaixo do nariz, acha que elas não são sequer merecedoras de cartão amarelo.
Jornalista