Associação da aspirina à imunoterapia contra o cancro foi "trabalho de detetive"

Um estudo científico sobre a associação da aspirina à imunoterapia no combate ao cancro foi "um trabalho de detetive" que deu ao investigador português Caetano Reis e Sousa o Prémio Bial de Biomedicina.
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"Surgiu só no fim. O processo que leva à identificação da prostaglandina não é linear", afirmou em Londres, a propósito do controlo oncológico, durante uma visita ao Instituto Francis Crick, onde atualmente está baseada a equipa de 17 investigadores, incluindo três portugueses, que o investigador Caetano Reis e Sousa lidera.

Em 2015, a equipa de Reis e Sousa publicou um artigo na revista Cell onde referia que a toma de aspirina por parte de pacientes com cancro em simultâneo com imunoterapia poderia aumentar significativamente a eficácia da terapia.

O projeto começou pelo interesse no processo de iniciação de resposta antitumoral, nomeadamente pelas células dendríticas- um tipo de leucócito ou glóbulo branco- que são importantes para a apresentação antigénica que ativa as células T, essenciais na destruição do tumor, disse Caetano Reis e Sousa.

A investigação tentou compreender os mecanismos pelos quais as células tumorais, nomeadamente de cancro da pele, mama e intestino, poderiam inibir a atividade das células dendríticas e verificou que uma das moléculas mais importantes era a prostaglandina E2 (PGE2).

"Demos conta de que havia uma substância qualquer que estava a inibir as células dendríticas quando nós fazíamos esse tipo de experiência. Aí houve um trabalho de detetive, tivemos de descobrir o tipo", explicou Reis e Sousa.

Ao longo de vários anos, foram feitas experiências para perceber qual a natureza química desta molécula até perceber que se trataria de um lípido, e depois foi usada a técnica de manipulação genética CRISPR, na altura inovadora, para testar a hipótese e eliminar a capacidade das células tumorais produzirem prostaglandina.

A aspirina foi o passo final, quando o grupo quis perceber se existiria alguma outra forma de impedir a produção da prostaglandina com um fármaco em vez da modificação genética, para testar a possibilidade de uma futura terapia clínica.

"Em termos de tratamento, seria a única forma de o fazer. Foi a última experiência antes de escrever o artigo", admitiu o investigador.

O artigo teve impacto na investigação e na luta contra o cancro: Atualmente estão identificados pelo menos sete ensaios clínicos a tentar combinar a aspirina com a imunoterapia e muitos mais que usam combinações diferentes de outros inibidores como alternativa à aspirina.

O potencial da aspirina na oncologia não é novo, nem exclusivo, deixou claro Caetano Reis e Sousa, referindo-se à existência de perto de 140 ensaios clínicos que usam a aspirina no estudo de terapias para o cancro.

"Ninguém sabe o que vai acontecer. A maioria dos ensaios clínicos só terá resultados em 2022/23, apesar de o artigo ter sido publicado há cinco anos. Não há uma prova do ponto de vista clínico de que isto vai atuar da maneira gostaríamos. Seria uma combinação muito fácil de implementar", referiu.

Desde a publicação do artigo, Caetano Reis e Sousa foi co-vencedor em 2017 do prémio Louis-Jeantet de Medicina, no valor de 700 mil francos suíços (cerca de 654 mil euros), e no ano passado foi eleito membro da Royal Society, tornando-se no primeiro português em 200 anos a entrar como 'fellow' para a academia de ciências britânica, a mais antiga do mundo.

A publicação do trabalho também foi importante para o primeiro autor do artigo, Santiago Zelenay, distinguido em 2017 com o Prémio de Futuro Líder na Investigação sobre o Cancro atribuído pela fundação Cancer Research UK, que, entretanto, formou a sua própria equipa de investigação na Universidade de Manchester.

O imunologista argentino, que completou o doutoramento no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Portugal, vai acompanhar Caetano Reis e Sousa na cerimónia de entrega do Prémio Bial de Biomedicina, instituído pela farmacêutica portuguesa no valor de 300 mil euros, hoje em Lisboa.

"A razão principal que levou à atribuição do prémio assenta no facto de esta descoberta, feita em laboratório, poder salvar a vida de doentes com cancro", sublinhou.

A vice-presidente do júri recordou que o prémio é mais um "reconhecimento do mérito" do que um financiamento da investigação.

O prémio, que visa galardoar uma obra publicada nos últimos dez anos de índole biomédica, será entregue pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

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