Assim na academia como na igreja, ámen
Não é preciso acreditar em tudo o que se relata sobre o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra no artigo As paredes falaram quando ninguém se atrevia.
Também não foi preciso acreditar em todas as 50 denúncias anónimas de assédio contra docentes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) apresentadas em março de 2022 num "canal aberto" especialmente para o efeito - nunca as conhecemos sequer em detalhe, não foram reveladas publicamente. Bastou-nos saber que numa faculdade onde não eram apresentadas queixas de assédio ao já então existente Provedor do Estudante, ou a qualquer outra instância, apareceram dezenas de denúncias quando, após a Associação Académica ter levantado a questão em reuniões do Conselho Científico, se criou um canal, ativo 11 dias, no qual os denunciantes podiam preservar o anonimato.
Anonimato - voltaremos a este assunto.
Não temos de acreditar em tudo, em cada alegação, em cada denúncia, para perceber que há um problema. Um problema desde logo evidenciado pelo facto de nenhuma das situações narradas no artigo de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom ter sido, ao tempo - e é um tempo que decorre ao longo de quase uma década - objeto de averiguação interna. Poder-se-ia dizer que nada se averiguou porque nada havia a averiguar - mas há, porque a averiguação que não houve é anunciada agora, tantos anos depois. Tantos anos depois e quando os factos em causa, de acordo com o que está no artigo e com o testemunho de várias pessoas agora ouvidas (muitas delas anonimamente - lá está) quer por este jornal quer por outros meios, eram do conhecimento de tanta gente no CES.
Um problema escancarado quando, no que à FDUL respeita, o resultado mais direto da iniciativa de abrir o canal de denúncias anónimas foi o processo disciplinar instaurado ao professor que se notabilizou no apoio aos estudantes e na tentativa de tornar a questão do assédio visível - Miguel de Lemos. O processo disciplinar acabaria arquivado mas, como disse a também professora da FDUL Inês Ferreira Leite na SIC-N na última semana, a mensagem ficou clara: perante as denúncias apresentadas pelos alunos, a direção da escola não entendeu efetuar um inquérito interno para averiguar do seu fundamento (lembre-se que sete professores concentravam mais de metade das queixas); caiu em cima do docente que propusera uma forma de, por uma vez, tornar visível o invisível.
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Desde então - e passou um ano - apenas 10 queixas deram entrada no "canal" criado pela direção da FDUL; dessas três deram lugar a inquéritos, e todos foram arquivados "por prescrição"; o Ministério Público arquivou, como seria de esperar, o inquérito relativo às 50 denúncias anónimas que a direção da faculdade lhe entregou. Desde então, a reitoria da Universidade de Lisboa, que considerou há um ano não ser preciso tomar qualquer medida adicional, no universo das várias faculdades, em relação à questão do assédio - ou seja, nenhuma medida adicional além da de ter um Código de Conduta que diz que assédio não é permitido, sem sequer se dar ao trabalho de especificar em que consiste isso, assédio, e que situações devem ser evitadas - não tomou qualquer iniciativa sobre a matéria. Porém veio agora, na sequência do barulho mediático criado pelas denúncias sobre o CES, certificar, em conjunto com os outros reitores, que "quando surgem as denúncias, as universidades devem investigar até ao fim todos os casos apresentados, doa a quem doer, e tirar consequências do que for apurado."
Doa a quem doer. Tirar consequências.
A sério, senhores reitores? Não é exatamente o que temos visto, consequências. Isso mesmo nos garante a deputada do estado brasileiro de Minas Gerais Isabella Gonçalves, que assumiu ser a estudante estrangeira de doutoramento que no artigo de Viaene, Laranjeiro e Tom é referida como tendo abandonado o CES depois de ser objeto de avanços indesejados de Boaventura Sousa Santos, então diretor da instituição e seu orientador. Isabella, que situa o ocorrido em 2013, garante que se queixou do facto a várias pessoas e nomeadamente ao então coordenador do doutoramento e hoje diretor da instituição, António Sousa Ribeiro, que tratou de lhe arranjar outro orientador. Quando a questionei sobre o que dissera exatamente a Sousa Ribeiro, Isabella respondeu que lhe tinha querido contar e ele dissera que já estava informado. Quanto a Sousa Ribeiro, com quem falei do caso, disse-me não confirmar nem desmentir a existência desta queixa de assédio contra Boaventura - alega que só falará no inquérito que irá ser conduzido pela comissão independente anunciada para o efeito.
Pode ser tudo mentira, todas as denúncias na FDUL e tudo o que está no artigo das três académicas? Boaventura Sousa Santos pode nunca ter proposto a Isabella "aprofundar a relação" em troca de "apoio académico"? Pode nunca ter saltado em cima - é a descrição feita pela própria - da ativista indígena argentina Moira Millan depois de a convidar para jantar? Pode Bruno Sena Martins nunca ter agredido sexualmente a norte-americana Miya Tom? Com certeza. Podemos acreditar que se trata de, como respondeu Boaventura quando o DN o confrontou com o artigo que o refere como "professor estrela", "ataques ad hominem em que o mundo académico começa a ser fértil", com o objetivo de "cancelar" alvos apetecíveis como, crê, ele próprio e o CES são. Podemos até acreditar que uma deputada de um partido de esquerda e uma ativista indígena, ambas de países do "sul global", tenham resolvido, do nada, "cancelar" um dos teóricos mais queridos pela esquerda desse mesmo sul global.
E podemos, como a ministra do Ensino Superior, Elvira Fortunato, achar que "estes problemas" se podem resolver com os órgãos já existentes nas universidades (provedores de estudante, etc) e que não há "medo de represálias". Claro, é por não haver medo de represálias que não há praticamente denúncias a esses órgãos e os casos agora denunciados nunca foram objeto de tratamento adequado; é por não haver medo de represálias que tanta gente do CES ainda hoje fala sob anonimato.
É, afinal, um mundo sem relações de poder este em que vivemos - um mundo no qual Miguel de Lemos nem levou com um processo disciplinar nem nada, um mundo em que os estudantes e os investigadores não têm receio de que lhes cortem as pernas. Elvira Fortunato está certa disso, e o investigador sénior do CES Rui Bebiano também.
"Em democracia, onde quem possui as suas razões tem todo o direito de as exprimir e de as defender, o anonimato chama-se cobardia e deve ser alvo de desprezo", escreveu Bebiano no Facebook este domingo, protestando contra "o péssimo jornalismo" que quer "agravar o alvoroço público diante de um caso sério que merece todo o cuidado". Certo. Mas onde estiveram toda essa democracia e "cuidado" até ao momento em que o jornalismo, esse péssimo, começou a puxar os fios desta meada? Porque é que no CES se fez silêncio anos a fio sobre estes casos?
E ainda: porque é que a direção do CES só fez um comunicado interno sobre o artigo das três académicas após a ameaça de "alvoroço público" representada pelos contactos de jornalistas, anunciando a seguir, em comunicado público, que iria abrir um inquérito? Se calhar afinal faltava mesmo isso: democracia.