Assassinado na rua: o ator Bruno Candé era um lutador

Sorridente e brincalhão. Assim era Bruno Candé, o ator de 39 anos que foi assassinado com quatro tiros na via pública, em Moscavide, este sábado. Os motivos do crime são ainda desconhecidos mas testemunhas referem motivações racistas.
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Quatro tiros. Pouco depois das 13.00 de sábado (25 de julho), o ator Bruno Candé Marques, de 39 anos, estava sentando num banco na avenida de Moscavide, concelho de Loures mas já muito perto de Lisboa, com a sua cadela, Pepa, e um rádio, quando um homem apareceu com uma arma e disparou sobre ele quatro tiros. Bruno Candé caiu no chão, morto. A cadela fugiu, assustada. O atirador com cerca de 80 anos foi imobilizado por transeuntes que o impediram de fugir até à chegada das autoridades.

O alerta para a situação de disparos na avenida de Moscavide ocorreu pelas 13.20, e quando a Polícia de Segurança Pública (PSP) chegou ao local encontrou "um homem que tinha sido baleado em várias zonas do corpo por outro homem". O óbito foi declarado no local, o responsável pelos disparos foi detido e foi-lhe apreendida uma arma de fogo.

O que motivou o crime?

"Em termos de motivação, ainda não percebemos muito bem o porquê. Poderá ter a ver com questões meramente passionais, dado que não existe qualquer ligação entre os próprios", avançou a PSP no sábado à tarde à Lusa.

Em comunicado, a família de Bruno Candé revela que o "assassino já o havia ameaçado de morte três dias antes, proferindo vários insultos racistas" a ele e à família.

Testemunhas do crime afirmaram em várias reportagens televisivas que tinha havido desentendimentos nos últimos dias entre a vítima e o homicida, mas nada que fizesse esperar um ato de violência. De acordo com o JN, a discussão teria a ver com a cadela - "Por norma tranquilo, Bruno Candé Marques não gostaria que se metessem com a cadela ou que a alimentassem sem a sua autorização", escreveu o jornal. Na sequência desta desta discussão, o homem terá proferido insultos racistas e ameaças de morte.

A organização SOS Racismo considera, por isso, que o crime tem motivações raciais. "Bruno Candé Marques, cidadão português negro, foi assassinado com 4 tiros à queima-roupa. O seu assassino já o havia ameaçado de morte três dias antes e reiteradamente proferiu insultos racistas contra a vítima", diz esta associação em comunicado. "O caráter premeditado do assassinato não deixa margem para dúvidas de que se trata de um crime com motivações de ódio racial", acrescenta a nota, divulgada no Facebook.

Quem era Bruno Candé?

Bruno Candé Marque vivia atualmente no Casal dos Machados, na freguesia do Parque das Nações, perto do local do crime. A família era oriunda da Guiné- Bissau mas Bruno nasceu a 18 de setembro de 1980 já em Portugal. Cresceu na Zona J, de Chelas, esteve na Casa Pia de Lisboa e desde muito novo que queria fazer teatro, tendo inclusivamente frequentado um curso de representação no Chapitô, durante um ano.

Mónica Calle conheceu-o em 2010, quando a Casa Conveniente ainda era no Cais do Sodré, numa altura em que a encenadora tinha um projeto com os reclusos da prisão de Vale de Judeus. Em 2015, Candé contou ao Observador o encontro que mudaria a sua vida: "Foi o Boss [de seu nome Mário Fernandes, um dos ex-reclusos que trabalhou com Mónica Calle em Vale de Judeus] quem me trouxe para cá. Mas não foi fácil, não foi fácil. O Boss sempre foi um gajo que anda sempre na brincadeira, na "reinação" com toda a gente, e quando ele me disse que fazia teatro, e que queria que eu fosse lá com ele, eu achei que ele estava no gozo, tás a ver? Nem liguei. Mas ele insistiu, e um dia disse-me, se não quiseres vir, não vens. Fica para aí na tua vida! Ele tanto marrou comigo, vamos, vamos, vamos!, que eu abri a pestana e lá fui, ao Cais do Sodré. Mas calma... quando lá cheguei, disse: é aqui? É aqui que vão fazer teatro? Estava à espera de um palco, de uma cortina, de uma plateia. Não havia nada disso. Mas logo que comecei a trabalhar com ela [Mónica Calle], percebi que tudo aquilo fazia sentido exatamente como era."

O primeiro espetáculo em que participou foi A Missão - Memórias de Uma Revolução, de Heiner Müller (espetáculo que acabou por ganhar um prémio da Sociedade Portuguesa de Autores) e, desde então, continuou a trabalhar regularmente com a Casa Conveniente. Em 2011 entrou em Macbeth, ao lado de José Raposo e Mónica Garnel. Pudemos vê-lo ainda em Rifar o Meu Coração (2016, de Mónica Calle), Drive In de Mónica Garnel, Atlas de João Borralho e Ana Galante, entre outros espetáculos. Quando não estava no palco, trabalhava como assistente ou dando apoio técnico na Casa Conveniente, como se lê nas fichas técnicas dos espetáculos A Boa Alma ou Os Sete Pecados Mortais.

Na televisão participou em novelas como Única Mulher, na TVI, e fazia regularmente castings à procura de oportunidades de trabalho.

Já este ano, Bruno Candé tinha participado em dois workhops da Casa Conveniente com vista à produção de novos espetáculos de Mónica Calle.

"Uma alegria contagiante"

Há dois anos, Bruno Candé Marques "sofreu um acidente de bicicleta, por atropelamento, e desde então ficou com sequelas em todo o seu lado esquerdo. Foi-lhe atribuído um atestado de incapacidade, sendo as limitações de mobilidade evidentes. Apesar disso, Bruno continuou a lutar pelos seus sonhos, mantendo-se ativo no teatro e avançando nos manuscritos para o livro que queria dar o mundo", explica a família no comunicado.

Inês Vaz, atriz e produtora da Casa Conveniente, recordou esse momento numa publicação no Facebook em que homenageou o amigo: "Tinha sido atropelado, quando estava a voltar para casa à noite de bicicleta e deixado ao abandono no meio da estrada. O INEM foi alertado por uma chamada anónima e quando chegou encontrou-o sozinho, inconsciente no chão. Foi um milagre ter sobrevivido na altura. Foi um milagre a recuperação que estava a conseguir. Disse-nos que tinha sido o teatro que o tinha salvo : foi recordando textos de Heiner Müller, do espetáculo A Missão, que fez com a Mónica, que foi voltando a si".

Desde o acidente, a cadela era também uma das suas companhias mais frequentes. A família descreve-o como "uma pessoa extremamente afável e sociável, o tio preferido dos sobrinhos e um pai brincalhão, dedicado e ligado à sua família, à sua mãe, hoje com 78 anos. Pai de dois rapazes (5 e 6 anos) e de uma menina (que completa 3 anos em agosto)". "Por onde o Bruno passasse criava amigos", escrevem os seus familiares.

Nas redes sociais, muitos amigos têm partilhado as suas memórias do ator que nas fotos tem geralmente um grande sorriso: "A última vez que o vi foi na manifestação anti-racismo, de sorriso de orelha a orelha", contou a atriz Teresa Coutinho. "Ator e nosso amigo do coração, com quem partilhámos tantas experiências lindas, em palco e na vida. Uma força da natureza, uma gargalhada e uma alegria contagiantes, um coração gigante" - assim o descreve Inês Vaz.

Ao Público, a atriz e encenadora Mónica Calle, afirmou: "Era impossível não gostar dele. Em qualquer circunstância, em qualquer contexto, era uma pessoa impossível de não ser amada. Era alguém com uma alegria e generosidade como raramente conheci na vida. Tinha uma força e inteligência emocional incríveis. Era alguém que procurou sempre descobrir-se a si e aos outros."

O historiador Rui Tavares e a líder do Bloco de Esquerda Catarina Martins estão entre as figuras públicas que já se pronunciaram, pedindo justiça para este crime. Numa nota divulgada nas redes sociais, a concelhia do Bloco de Esquerda de Loures destaca que "o assassinato de Bruno Candé Marques choca-nos profundamente e obriga-nos a todos, enquanto sociedade, a refletir sobre como foi possível acontecer em plena luz do dia no centro de Moscavide".

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