Em Moçambique, há um alimento chamado "Osembe", que é feito de farinha de arroz, amassado e assado, e temperado com molho. No Japão, existe uma comida, também chamada "Osembei", uma espécie de alimento diário como uma bolacha, que é igualmente feito de farinha de arroz, amassado e assado, e temperado com molho de soja. Não só pelo nome, mas também pelos ingredientes e o método de preparação serem os mesmos, é difícil de pensar que tenham aparecido separadamente nos dois países por acaso..No Japão, foram descobertos restos de alimentos semelhantes em sítios arqueológicos que se julga datarem de cerca do século I, pelo que devemos assumir que o "Osembe" é originário do Japão. Então, como é que este "Osembe" chegou do Japão a Moçambique. Uma missão japonesa enviada à Europa em 1582, fez uma paragem, por seis meses, na ilha de Moçambique, no seu caminho de regresso ao Japão. É bem possível que algum intercâmbio tenha ocorrido entre os dois povos durante esta estadia, e que este alimento de arroz tenha sido introduzido em Moçambique. Outra forte possibilidade é ter sido introduzido neste país, por "gourmets" portugueses que tinham permanecido no Japão. Embora os detalhes sejam desconhecidos, é fácil imaginar que os portugueses, que apreciavam comida saborosa, gostaram tanto do "Osembei", no Japão, que o trouxeram e apresentaram em Moçambique no caminho de regresso ao seu país natal, Portugal..Supõe-se que foi assim que ocorreu, provavelmente, a "internacionalização" do "Osembei", através do intercâmbio entre o Japão e Portugal no século XVI..Agora, gostaria de vos dar um panorama geral da história de amizade de longa data entre o Japão e Portugal, desde esta "internacionalização do Osembei" até aos nossos dias, dividida em três períodos, de 1.0 a 3.0..Antes de mais, o período que pode ser descrito como 1.0 nas relações Japão-Portugal centra-se apenas durante o período inferior menos a 100 anos desde a chegada dos portugueses à Ilha Tanegashima, em 1543, até ao Sakoku, o encerramento do país ao estrangeiro. Embora tenha sido um período curto, o seu impacto em ambos os países foi enorme. O 2.0 corresponde ao período entre 1860 e 1945. Durante este período, foram constantes os contactos, e estabeleceram-se, assim, as relações de amizade entre os dois países. O 3.0 é o período de 1945 até ao presente, quando o Japão emergiu como uma nação pacífica após a sua derrota na Guerra do Pacífico. Especialmente após o fim da Guerra Fria em 1990, o Japão e Portugal entraram num novo processo de cooperação, e ambos os países, tirando o máximo partido das suas respetivas características, têm vindo a dar contribuições numa arena internacional diversificada e multipolar. Agora, com base no conceito da estratégia "Indo-Pacífico Livre e Aberto", proposta pelo Japão, acredito que entrámos no período 3.1, em que ambos os países irão aprofundar a sua colaboração, beneficiando das suas particularidades como nações marítimas..Gostaria de aproveitar esta oportunidade para explicar a estratégia "Indo-Pacífico Livre e Aberto". O Indo-Pacífico, embora distante de Portugal, é uma vasta região que se estende desde a Ásia Pacífico, através do Oceano Índico, até ao Médio Oriente e África, contando com a metade da população mundial, e constitui o núcleo do dinamismo mundial. Ao mesmo tempo, porém, o Indo-Pacífico é uma região de interação complexa entre o poder dos países envolvidos e de relações de poder em rápida mudança. Também é uma região em que se enfrentam uma série de ameaças, incluindo pirataria, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça, catástrofes naturais e operações ilegais. A estratégia "Indo-Pacífico Livre e Aberto" é a ideia de construir uma ordem internacional baseada em determinadas regras na região "Indo-Pacífico", e enraizar os princípios da liberdade comercial e de navegação, e do Estado de Direito, que são essenciais para a realização de estabilidade e prosperidade nesta região. Durante a sua visita a Portugal em Setembro de 2020, o Sr. Motegi, então Ministro dos Negócios Estrangeiros do Japão, e o seu homólogo português, Dr. Santos Silva, estiveram de acordo sobre esta perspetiva. Portugal, tal como o Japão, é uma nação de comércio marítimo, e a manutenção da ordem marítima é, evidentemente, um assunto de grande relevância para Portugal. Tem vindo a crescer o interesse no "Indo-Pacífico" dentro da União Europeia, e em Janeiro do ano passado, o então ministro Motegi, no cargo de ministro dos negócios estrangeiros do Japão, participou, pela primeira vez, numa reunião online do Conselho dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, informando a União Europeia e os respectivos ministros dos negócios estrangeiros, sobre a mencionada Estratégia. Com a publicação pela U. E. da "Estratégia para a Cooperação no Indo-Pacífico" em Abril de 2021 e, em seguida, o "Comunicado Conjunto sobre a Estratégia para a Cooperação no Indo-Pacífico" em Setembro do ano passado, encontramo-nos agora, o Japão e Portugal, numa fase em que a questão centra-se em como poderemos realizar a cooperação conjunta na região Indo-Pacífico..Relações Japão-Portugal 1.0.O encontro entre os dois países é muito interessante, começando com a chegada dos portugueses à Ilha Tanegashima em 1543. Os portugueses já tinham chegado a Macau e estariam algo familiarizados com aspetos asiáticos, mas, para os japoneses dessa época, os ocidentais com rosto "saliente" eram provavelmente uma novidade, e podiam ter suscitado curiosidade da parte dos japoneses através, não só das características fisionómicas, mas também dos seus hábitos e costumes e da sua tecnologia avançada. Os japoneses eram, e continuam ainda a ser, "Otaku" da tecnologia. Para tal, ficaram particularmente interessados na espingarda de fecho de mecha, que podia atingir um alvo à distância com um rugido. Tanegashima Tokitaka, o então senhor da Ilha de Tanegashima, adquiriu duas espingardas, ordenou aos seus vassalos que aprendessem qual a composição de pólvora, para que o seu ferreiro de espada fizesse dezenas de cópias, tendo sido muito bem sucedido. Os portugueses devem ter ficado surpreendidos com a rapidez com que conseguiram produzir cópias das suas armas. De facto, passados cinquenta anos após a introdução da espingarda, o Japão tornou-se o maior produtor mundial desta arma. É fácil imaginar que o alto nível atual da tecnologia industrial do Japão teve os seus alicerces já nesses tempos. Quanto à pólvora, o povo japonês já a tinha conhecido no local de batalha na altura das duas invasões mongois (Genkō), e já tinham passado cerca de 500 anos desde a sua invenção na China durante a Dinastia de Song; é provável que existisse um certo nível de conhecimento sobre a pólvora no Japão dessa época. Embora o Japão já usasse a pólvora no fabrico de petardos (e não no de armas de fogo), este processo de utilização da pólvora no fabrico de armas pode ter sido bastante exigente..Para além das armas, o aspeto mais "relevante" na fase inicial da história do intercâmbio entre os dois países talvez tenha sido o grande "boom" da cultura portuguesa no Japão nessa época, conhecida como cultura "Namban". O impacto deste primeiro encontro com o Ocidente foi imenso, e a influência do estilo "Namban" na arte, artefactos e mobiliário foi incontestável. Através das obras de arte, como, por exemplo, os biombos que retratam achegada dos navios portugueses e do desembarque dos marinheiros no Japão, patentes no Museu do Oriente e no Museu de Arte Antiga em Lisboa, e na coleção de Soares dos Reis no Porto, podemos, ainda hoje, reviver uma parte das experiências partilhadas pelos portugueses e japoneses no momento do encontro. Os navios portugueses começaram a entrar no porto de Hirado, onde Luís de Almeida, o primeiro a introduzir a medicina ocidental no Japão, deixou as suas pegadas, e mais tarde no porto de Yokoseura, onde Luís Fróis, o autor de "História do Japão", desembarcou, antes de finalmente passarem ao porto de Nagasaki. Em Nagasaki, o "Kasutera", uma espécie de bolo criado com base na receita do Pão de Ló de Portugal, ficou famoso e tornou-se popular para o povo japonês. Acrescentamos ainda que a palavra "bōro", que é utilizada para descrever a famosa confeitaria "maru-bōro" na prefeitura vizinha de Saga, também vem da palavra portuguesa "bolo". Para além do acima referido, foram também introduzidas no Japão várias outras novidades trazidas de Portugal nessa altura, tais como "pan" (pão), "kompeitō" (confeito), "koppu" (copo), "botan" (botão), "shabon" (sabão), "karuta" (carta) e "bīdoro" (um tipo de brinquedo de vidro), sendo ainda utilizadas na língua japonesa..Relações Japão-Portugal 2.0.Em Julho de 1860, Portugal tornou-se o sexto país europeu a assinar o Tratado de Paz, Amizade e Comércio com o Japão, cujo primeiro artigo diz "Sua Majestade El Rei de Portugal e Sua Majestade o Imperador do Japão, desejando estabelecer entre os dois Países relações de amizade permanente..." Esta foi a primeira vez que os fundamentos da amizade entre os dois países, que permaneceram inalterados até os dias de hoje, foram explicitamente expressos. Em 2020, celebrámos os 160 Anos deste Tratado, mas infelizmente, devido à pandemia do novo coronavírus, não nos foi possível realizar uma série de eventos comemorativos. No entanto, em Setembro desse mesmo ano, como anteriormente referido, o então Ministro dos Negócios Estrangeiros Japonês, Sr. Motegi, visitou Portugal pela primeira vez em 18 anos como ministro em funções dos negócios estrangeiros e trocou opiniões com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o Ministro dos Negócios Estrangeiros português Santos Silva sobre as relações bilaterais e a cooperação concreta na arena internacional..O intercâmbio entre os dois países e as suas transações comerciais fazia-se, durante a Era das Grandes Navegações, através de Goa na Índia, e Malaca na Malásia, e depois de 1860, através de Macau. Ainda hoje na região "Indo-Pacífico", existem países da língua oficial portuguesa e também membros da CPLP, como Moçambique virado para o Oceano Indico, e Timor-Leste na zona de transição entre os Oceanos Índico e Pacífico, recordando-nos as atividades marítimas ativas dos portugueses durante a referida Era. Quanto à CPLP, o Japão tornou-se um país observador desta organização em 2014, e a presença da CPLP na comunidade internacional continua a crescer à medida que o número de países observadores aumenta, agora para 28 países + 4 organizações..Ora, existe uma personalidade que continuou a relatar sobre o Japão desse período (2.0) do ponto de vista de um cidadão português. Em 1899, pouco antes da viragem do século XX, Wenceslau de Moraes assumiu um posto diplomático no recém-inaugurado Consulado Português em Kobe, Japão, onde continuou a escrever sobre o Japão para a imprensa portuguesa. Após a sua reforma, ficou em Tokushima, a cidade natal da sua esposa Yone, onde escreveu vários livros, tais como "O Bon-Odori em Tokushima", "Ó-Yoné e Ko-Haru" e "Relance d'alma japonesa". Neste sentido, ele foi uma ponte valiosa entre o Japão e Portugal numa altura em que os dois países estavam efetivamente muito afastados e a informação mútua era bastante escassa. Mais tarde, a cidade de Tokushima celebrou o protocolo de cidades geminadas com Leiria há 51 anos, o primeiro entre o Japão e Portugal, e a rua em Tokushima onde Moraes viveu passou a chamar-se "Rua Moraes", em homenagem ao diplomata português. .Relações Japão-Portugal 3.0.Agora, na era de 3.0, em 1945, o Japão passou pela derrota da Segunda Guerra Mundial, que causou enormes danos e sacrifícios a nível interno e externo, e fez uma promessa nacional de nunca mais iniciar outra guerra. O "novo" Japão retomou a sua vida como uma nação pacífica, e assim o tem realizado até aos dias de hoje. É natural que o Japão possua as capacidades militares necessárias para a autodefesa e participe nas Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas e outras operações estrangeiras, mas as Forças de Autodefesa do Japão nunca dispararam uma única bala real fora do Japão. Ao aplicar os seus esforços e recursos prioritariamente aos aspetos económicos, o Japão conseguiu uma recuperação e crescimento milagroso das cinzas do pós-guerra para se tornar a segunda maior economia do mundo. Nestas décadas, durante a época da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a Ex-União Soviética, o Japão pertenceu ao Bloco Ocidental, e deu uma importante contribuição na arena internacional como um país que partilha, como Portugal, os valores fundamentais, designadamente a "liberdade", "democracia", "respeito pelos direitos humanos" e o "Estado de Direito". Com a queda do Muro de Berlim em Novembro de 1989, o mundo entrou rapidamente numa era de globalização. Nos anos 90, o crescimento económico do Japão abrandou, e o país foi frequentemente criticado pelos seus "20 anos perdidos". É verdade que foram necessários dez anos para liquidar as dívidas incobráveis, associadas ao rebentamento da bolha económica dos anos 80, e que se registou, devido ao agravamento do envelhecimento da sociedade nos anos posteriores, um baixo crescimento referente ao índice do valor de produção per capita, ocupando, assim, o último lugar na produtividade laboral dentro dos países da OCDE. No entanto, se tivermos uma visão positiva do facto de sermos o primeiro país a responder ao envelhecimento da população, que é um desafio inevitável para todos os países no mundo futuramente, podemos ser chamados de um país líder nos "desafios" vindouros. A este respeito, o Japão caracteriza-se pelo desenvolvimento e introdução de uma vasta gama de robôs para compensar a sua mão-de-obra em declínio e para apoiar tarefas de trabalho fisicamente exigentes e progressivamente envelhecidas..Por outro lado, Portugal tem realizado um desenvolvimento e crescimento constantes como membro da UE. Nos primeiros 10 a 20 anos após a adesão à CE em 1985, Portugal desfrutou de uma elevada taxa de crescimento, graças a um longo período de investimento em infra-estruturas financiado pelos fundos centrais para a reforma estrutural. Os últimos dez anos têm sido relativamente calmos, mas a realidade é que o país tem investido estrategicamente no desenvolvimento de recursos humanos, tecnologias digitais e ecológicas, e deve avaliar-se positivamente pela sua qualidade e não pela quantidade. Em particular, a excelência da geração mais jovem é reconhecida não só pela indústria de arranque, mas também pelos grandes capitais internacionais. Acreditamos também que o Japão tem muito a aprender sobre o desenvolvimento da indústria do turismo de Portugal. Ademais, visto que os portugueses estão a desempenhar um papel de liderança em várias organizações internacionais, por exemplo na ONU, com o Secretário-Geral, Dr. António Guterres, Portugal posiciona-se como um dos parceiros mais importantes para os japoneses, partilhando os mesmos valores fundamentais..Este ano, celebramos os 161 anos de relações diplomáticas entre os dois países, e em 2023 iremos assinalar os 480 anos de intercâmbio entre os dois povos, desde a chegada de portugueses à Ilha Tanegashima. Portugal, histórico e consistentemente um país amigo do Japão, é talvez o primeiro país que fez com que o Japão tenha começado a sentir a expansão da região Indo-Pacífico através do comércio "Namban" e outros intercâmbios humanos e materiais. A nossa relação de amizade, validada por uma longa história de 500 anos, continua a se desenvolver em vários campos, tais como na economia, cultura e nos assuntos internacionais. No que nos diz respeito, envidaremos todos os nossos esforços para que a relação entre os dois países continue a crescer nos próximos 500 anos..Embaixador do Japão em Portugal