As mulheres à conquista da Matemática

Habituámo-nos à ideia de que a Matemática é um feudo masculino. As raparigas, se seguem a área de Ciências, preferem Medicina, Biologia ou outra disciplina relacionada com as ciências da vida. Mas isso está a mudar.
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Imagine o leitor que está num concurso televisivo de cultura geral e lhe pedem que enuncie nomes de matemáticos famosos. Ocorrer-lhe-ão decerto Pitágoras, Newton, Fermat ou Alan Turing, mas muito dificilmente recordará o nome de uma mulher. Muito a custo, talvez se lembre de Hipátia de Alexandria, Katherine Johnson (a matemática que desenhou a rota da Apollo 11, da Terra à Lua) ou a iraniana Maryam Mirzhakhani. E, no entanto, elas existem, cada vez mais presentes por direito próprio nos departamentos das melhores universidades, embora a um ritmo bem mais lento do que o verificado noutras áreas de estudos.

Há dois anos a Sociedade Portuguesa de Matemática (que acaba de comemorar 80 anos de existência) desafiou os seus associados a questionar o porquê de diferenças como esta ainda persistirem. Ana Casimiro, associada da SPM, investigadora e professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, recorda ainda a surpresa - e até uma certa resistência - causada por este repto: "Este tema das mulheres na matemática já é muito debatido fora de Portugal, mas, de facto, cá era uma total novidade. Inicialmente muitas pessoas (homens e mulheres) que contactámos mostraram uma certa relutância, dizendo que não sentiam qualquer discriminação ou desigualdade, mas acabou por correr tudo muito bem. Tão bem que vários desses reticentes voltaram a inscrever-se no segundo encontro sobre o tema, que promovemos online no passado dia 27 de janeiro."

Ana está muito consciente, senão de discriminação, pelo menos de uma diferença clara patente logo na adolescência: "Vou dar-lhe um exemplo: embora tenhamos boas alunas nesta disciplina no 3.º ciclo do ensino básico e no secundário, são muito poucas as que se inscrevem nas Olimpíadas Portuguesas da Matemática (campeonato anual organizado pela SPM, em colaboração com as escolas de todo o país, do 1.º ciclo ao 12.º ano). Porque é que isto acontece? É um fator genético ou cultural? Porque é que, chegada a hora da decisão, os rapazes vão mais para Ciências e as raparigas para Letras e Humanidades? Não sabemos. Importava fazer estudos interdisciplinares sobre a questão."

Esta não é, todavia, uma realidade exclusivamente portuguesa. Ana Rodrigues, atualmente professora associada da Universidade de Exeter, em Inglaterra, tem uma longa experiência fora de Portugal que lhe permite afirmar que, nesta matéria, o nosso país não é dos piores: "Formei-me na Universidade do Porto e, embora não estivéssemos em maioria, estava longe de me sentir isolada. No doutoramento tive uma orientadora (a professora Ana Paula Dias) e não fui a primeira doutoranda que ele teve." Uma realidade mais animadora do que a que viria a encontrar fora de Portugal: "Na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, onde fui fazer o pós-doutoramento, era uma tal raridade que me encheram de mimos, mas na Suécia, onde estive depois, havia mulheres ligadas à Educação Matemática mas nenhuma investigadora." Desde 2013 no departamento de Matemática da Universidade de Exeter, Ana sente que há uma diminuição evidente do número de alunas à medida que se avança nos graus universitários: "Quando lá cheguei já havia duas professoras mas creio que fui a única a fazer uma evolução na carreira académica, nesta área, dentro do departamento. O que se passa é que temos um bom número de alunas na licenciatura (talvez na ordem de 40%), mas depois, quando avançamos para o doutoramento, é o descalabro. Desaparecem."

Curiosamente (ou talvez não), Ana Casimiro nota a mesma tendência nas universidades portuguesas: "Temos um razoável número de alunas a entrar nas nossas licenciaturas, mas, no final, elas vão trabalhar em empresas ou para o ensino básico e secundário. Ainda fazem mestrados mas são geralmente os rapazes que progridem para o doutoramento e, como tal, para uma carreira académica." Por outro lado, acentua, "nas conferências internacionais sobre Matemática a esmagadora maioria de oradores convidados são homens, embora as coisas comecem a mudar muito lentamente". Como exemplo desta realidade, Ana Casimiro refere o caso do Brasil, onde as mulheres matemáticas têm uma extrema dificuldade em evoluir na carreira: "O Instituto de Matemática mais importante do país - o IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada do Rio de Janeiro) - tem apenas uma mulher investigadora, o que é muito significativo."

O que falta para alterar este panorama? Ana Rodrigues admite que a ausência de modelos inspiradores possa dissuadir as jovens: "Sempre que organizamos alguma coisa para tentar chamar as mulheres à Matemática vamos buscar umas figuras do século XIX, fazemos uns cartazes muito bonitos, mas não é realmente estimulante. Inspirador seria haver mulheres de hoje, bem reais, com vidas não muito diferentes das nossas, mas com trabalho de investigação efetivamente exaltante para a comunidade." De resto, os próprios departamentos de Matemática ainda não se prepararam para uma presença feminina constante e massiva: "Ainda tenho de dar uma volta muito grande, nos corredores da faculdade, para encontrar a casa de banho das meninas", brinca Ana Rodrigues.

Comum a estas duas matemáticas foi a consciência precoce de que este era o seu caminho. No Porto, Ana Rodrigues brincava com a tabuada na idade em que a maior parte dos alunos a abomina e, em Lisboa, Ana Casimiro foi fortemente influenciada, na sua escolha, por uma professora do ensino secundário: "A primeira ideia", diz, "era seguir a via de ensino na Faculdade de Ciências de Lisboa, onde me inscrevi, mas depois tomei o gosto pela investigação, o que me levou a fazer o mestrado no Instituto Superior Técnico e depois segui para doutoramento, em Salamanca." Hoje, com um prazer que evidencia ao longo da conversa, acumula o ensino e a investigação, salientando o papel que um bom professor pode ter na desmitificação do eterno "monstro" da Matemática. Mas os tempos não estão de feição: "Sem as aulas presenciais muitos podem desmobilizar-se. Há que estar ainda mais atento."

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