"As mães calam os abusos sobre as filhas na Nicarágua"
O nome Sergio Ramírez é mais conhecido da política da América Latina do que da literatura, afinal foi vice-presidente de Daniel Ortega na Nicarágua até se ter desiludido com o caminho da revolução sandinista que derrubou o ditador Somoza. Exilou-se e dedicou-se à literatura, um segundo exílio em que experimentou o conto, o romance e a escrita de algumas memórias, livros que o tornaram reconhecido e premiado várias vezes: Casa de Las Americas em 2000, José Donoso em 2011 e Cervantes em 2017.
O seu registo mais recente é o policial, onde coloca o inspetor Dolores Morales em investigações numa Nicarágua não muito distante do presente, mas severamente fustigada pelo sandinismo. Já Ninguém Chora Por Mim foi traduzido para a língua portuguesa e já chegou às livrarias, sendo o segundo volume de uma provável trilogia (ou tetralogia) que Ramírez tem vindo a escrever. O escritor esteve no encontro literário das Correntes d'Escritas para divulgar o seu policial.
Para o autor, a vida política da Nicarágua é um ótimo cenário para um policial: "Enquanto escritor é ideal porque não estou interessado em tratar da vida política do meu país". Por isso, acrescenta, "prefiro o policial, que permite estar distanciado e evitar as tentações. O detetive Morales dá-me a oportunidade de usar o meu sentido de humor e a a realidade que mais me agrada. É um veículo de intermediação".
Para Ramírez o grande atrativo nestes policiais é retratar a Manágua dos novos ricos, que não são discretos como os ricos anteriores. Para tal, utiliza o inspetor Morales, que conta com a ajuda um personagem "fantasma" que persegue o inspetor Morales e o pressiona para que respeite a ética: É a voz da consciência porque Morales é pobre e deixa-se tentar pelo dinheiro."
O policial é um bom registo para fazer o ajuste de contas com o seu passado?
Sim, principalmente com aquela parte do passado em que queria ajustar contas enquanto protagonista e não pude e comigo mesmo. A situação da Nicarágua é boa para ser tratada com humor negro porque como o 'meu' inspetor entrou numa revolução que chegou ao seu fim, ficou num mundo bastante diferente do que esperava e não o aceita. Essa inconformidade é o que traduzo com ironia e o referido humor negro.
Esse ajuste de contas já não estava em Adios Muchachos?
Sim, mas num policial é diferente. Em Adios Muchachos a questão era mais sentimental porque o que faço é uma confissão sobre o que é ter deixado tudo para participar numa revolução, deixando a família, o trabalho e entregar-me a uma vida de que não me arrependo. Que agora vejo sob uma forma crítica e mesmo com nostalgia porque foi a minha juventude.
Essa visão sentimental faz parte de um tempo em que os heróis da América Latina, como Che Guevara, eram inspiradores. Como convive com a redução da importância desses heróis?
Quando era jovem a situação era muito simples: de um lado a direita maligna, com Franco, Salazar, Pinochet...; do outro lado estava a esquerda idealista e romântica, a que era boa e ia mudar o mundo. Em certo momento as revoluções puseram-se em marcha e foram confrontadas com a vida real, sendo o resultado um sonho que se descompôs. E não há nada pior que um sonho tornar-se burocrático e começarem as deceções. Eu vivi a esquerda que queria transformar os regimes e não estava preocupada com a democracia, apenas com a revolução e a vanguarda, até que as pessoas de esquerda cansaram-se e as revoluções populares perderam o povo. Tanto que agora encontramos na América Latina situações que afetam tanto os governos de esquerda como os de direita: a corrupção.
Um bom exemplo é o Brasil?
Sim, até porque o Brasil é o grande foco de contaminação de corrupção em todo o continente com a empresa Odebrecht que, num governo PT, corrompeu como se fosse de direita.
Enquanto escreve policiais, gostaria que o cenário da História fosse mais perfeito?
É preciso respeitar a realidade porque é ela que suporta da imaginação. A subversão da realidade subverte sempre a imaginação.
Os seus livros já podem ser lidos na Nicarágua?
Sim, essa situação não é problema porque os ditadores latino-americanos preocupam-se pouco com os escritores. Só dão atenção à rádio e televisão e agora às redes sociais. As ditaduras são bastante ignorantes e consideram que a literatura não tem poder subversivo.
O ter recebido o Prémio Cervantes também não os preocupou?
O que fizeram foi manter silêncio e nem uma única palavra - é o mais cómodo.
No discurso que fez na cerimónia referiu que hoje os jovens lutam através de ideais e sem armas. É bastante diferente do seu tempo?
Existe uma situação nova e que revoluciona a Nicarágua, onde houve 50 mil mortos nas últimas décadas, daí que os jovens se tenham rebelado e preferirem lutar sem armas e através das redes sociais. Essa será a grande derrota do regime de Ortega: ser abatido por jovens desarmados. Pode ser um momento muito importante para se verificar uma grande mudança e, sem armas, não corremos o risco de ter um novo comandante da guerrilha triunfante ou um caudilho que se instala no poder. É uma oportunidade para reorganizar o país e tenho muita fé nisso.
O 'seu' detetive também usa o twitter. É a grande arma?
Sim, é uma grande arma para um país que só tem seis milhões de habitantes e ao mesmo tempo o mesmo número de smartphones. 80% dos aparelhos estão na mão de jovens, de um jardineiro ou de um trabalhador, e essa é uma arma devastadora para uma ditadura por ser difícil de controlar. Não se pode fazer às redes sociais o mesmo que às televisões, às rádios e aos jornais, que são fechadas ou ficam sem abastecimento de papel.
O abuso sexual está presente, o que não é muito normal nos policiais sob a forma que o faz?
Porque esse é um dos grandes problemas da sociedade latino-americana, com frequentes abusos por parte dos pais sobre as filhas e que a sociedade oculta. As próprias mães calam os abusos sobre as suas filhas na Nicarágua.
Não foi uma forma de recordar um episódio grave destes que aconteceu com Ortega?
Mas não foi só com ele, a sociedade patriarcal em que vivemos está cheia desses abusos constantes.
Pretende com este detetive descrever a atual Nicarágua ou o objetivo do policial é o prazer da escrita?
Não sou um escritor de romances policiais e escrevo habitualmente noutros géneros, mas neste caso era a melhor forma de chegar à vida quase contemporânea do meu país. É o melhor método para o que queria contar e ainda quero escrever um terceiro romance.
Foi-lhe fácil mudar para este registo?
Eu sou um leitor de policiais clássicos - Dashiel Hammett ou Simenon - e sempre fui fascinado por esse género porque lhe davam um estatuto de segunda categoria literária. Eu não concordo e acho que é uma grande literatura. Quanto a escrever policiais, é uma outra técnica que se tem de aprender. É como um sapateiro não especializado em todos os tipos de calçados. Além disso, posso usar os diálogos e a conversa entre personagens e, como se vê, é o que faço ao longo de todo o livro.
Já Ninguém Chora Por Mim
Sergio Ramírez
Porto Editora, 312 páginas