"Sonhei, na noite passada, que voltara a Mandarlay", escreve Daphne du Maurier na abertura do seu mais famoso romance, Rebeca, adaptado ao cinema por Alfred Hitchcock. Mas o sonho é, na verdade, um pesadelo, feito de quartos fechados à chave, segredos vergonhosos, gritos que atravessam a noite como um vento de morte. O tema da mulher de comportamento desviante, escondida (ou mesmo aniquilada) pela família, como nódoa em toalha de linho, é recorrente na literatura ocidental dos séculos XIX e XX. Mas não se tratava apenas de uma fantasia literária. O horror aos socialmente inconvenientes "nervos" das mulheres transformaram Rosemary Kennedy num "vegetal", depois da lobotomia decidida pelo pai, o todo-poderoso patriarca do clã Kennedy, levaram ao internamento compulsivo da atriz Frances Farmer por ordem da mãe ou de Maria Adelaide Coelho da Cunha pelo marido. E tantas como elas, jovens ou não, ricas ou pobres, realmente enfermas ou apenas desobedientes, cujas histórias ficaram por contar..O tema foi literariamente consagrado por Charlotte Brontë no clássico A Paixão de Jane Eyre, publicado em 1847 sob o pseudónimo masculino de Currer Bell. A protagonista, que dá título à obra, é uma jovem órfã, sem recursos mas escolarizada, que é colocada como precetora de uma menina num palacete sombrio e isolado, onde o proprietário, Mr. Rochester, é pouco mais do que uma presença fantasmagórica. Sensível, Jane não tardará a compreender que algo, ou alguém, muito estranho se oculta no sótão da casa. Mas o silêncio aterrorizado dos criados vai impedindo que ela conheça uma verdade que só lhe será revelada em trágicas circunstâncias. O segredo tinha um nome e um corpo: era a própria mulher de Mr. Rochester, que ele conhecera durante uma viagem à Jamaica e que alegadamente teria enlouquecido já em Inglaterra..A autora não hesita um instante na justeza de tal diagnóstico. A seus olhos, a mulher já perdera qualquer vestígio de humanidade e a compaixão vai toda para o sofrido marido, mesmo quando este tenta casar-se com uma segunda pessoa, com a mulher ainda viva e encerrada na casa de família. A voz que "ouvimos" é sempre a dele: "Fiquei feliz de a ver finalmente instalada em Thornfield, em segurança, naquele quarto do terceiro andar que ela transforma há dez anos no antro de um animal selvagem, num abrigo demoníaco. Tive dificuldade em lhe arranjar guarda, tinha de escolher uma que fosse de fidelidade a toda a prova, porque o meu segredo ia ser inevitavelmente traído pelas suas divagações; para mais tinha períodos de lucidez durante uns dias, por vezes de semanas, em que passava o tempo a injuriar-me." Finalmente, encontrou Grace Poole, mas, ainda assim, todo o cuidado era pouco pois, acrescenta, "a louca é matreira". Penalizada, Jane Eyre apaixona-se pelo patrão a quem tal desdita transformara "num fogo-fátuo, num vagabundo, num judeu errante". E casa-se com ele, depois de um incêndio ter destruído o último andar da mansão e a sua habitante. Nesses últimos momentos, Brontë acentua ainda o carácter animalesco da criatura: "Gritaram-lhe que ela estava no telhado, onde se mantinha de pé, agitando os braços por cima das ameias, e uivando de tal maneira que se ouvia a uma milha de distância (...). Era uma mulher enorme, com longos cabelos negros que flutuavam por cima das chamas.".E se esta não fosse toda a verdade sobre um drama que marcou profundamente o cânone literário e o imaginário de milhões? E se Mr Rochester (como Max de Winter em Rebeca) não fosse apenas uma vítima das circunstâncias? Esse é o tema de Vasto Mar de Sargaços, escrito por Jean Rhys (1890-1976), autora natural das Caraíbas, como a própria Mrs. Rochester. Construído como uma prequela de A Paixão de Jane Eyre, recuará ao tempo em que o futuro casal se conhece, se relaciona e decide casar-se. Ela encantá-lo-á com a sua sensualidade de mulher de trópicos (que começa por o seduzir e mais tarde por o horrorizar) mas também pelo vasto património de que é herdeira. Ele conquistá-la-á com os seus modos de cavalheiro inglês. Já casados e em viagem para Inglaterra, compreenderão que ambos estavam, afinal, iludidos nestas expectativas e o que deveria ser um laço transforma-se numa grilheta. A constatação de que o marido procura apropriar-se dos seus bens mergulhá-la-á mesmo num desespero sem retorno. Mas Jean Rhys não se limitará a imaginar o que aconteceu antes do encerramento compulsivo no sótão - dará voz à mulher assim condenada: "Pensei que fosse por um dia, dois dias, talvez uma semana. Pensei isso quando o vi e lhe falei que seria sábia como uma serpente, inofensiva como uma pomba. Dou-te tudo o que tenho livremente, teria eu dito, e não te incomodarei mais se me deixares ir embora. Mas ele nunca veio." Quem chegou foi Grace Poole, a guardiã com demasiado apego ao álcool e uma existência infernal: "Acordo cedo neste quarto e fico deitada a tiritar porque ele é muito frio. Por fim, Grace Poole, a mulher que toma conta de mim, acende uma lareira com papel, gravetos e pedaços de carvão. Ela ajoelha-se para soprar o fogo com os foles. O papel encarquilha-se, os gravetos estalam e faíscam, o carvão arde e brilha sem chama. Por fim, as chamas saltam e são belíssimas. Saio da cama e aproximo-me para as observar e tentar adivinhar por que razão me trouxeram para cá. Porquê? Tem de haver uma razão. O que é que eu preciso de fazer?".O desvio à norma na escrita.Charlotte Brontë, como vimos, publicou sob pseudónimo masculino, como, aliás, as suas próprias irmãs, Anne e Emily. O mesmo fizeram Mary Ann Evans e a francesa Amandine Dupin, conhecidas respetivamente por George Eliot e George Sand. A poetisa britânica Elizabeth Barrett Browning, mantida em clausura doméstica até aos 40 anos por um pai abusivo, dedicou apaixonados poemas ao marido, mas, temendo as reações dos seus contemporâneos, fê-los passar por poemas traduzidos do português, já que, na forma e no conteúdo, lhes encontrava semelhanças com os sonetos de Camões. Uma mulher que escrevia era à partida suspeita e exposta ao julgamento da família e da sociedade. Não era confiável. Não daria uma boa esposa e mãe. Não seria sequer uma solteirona respeitável..Esta realidade foi profundamente analisada por um clássico dos Estudos de Género publicado em 1979 por Sandra Gilbert e Susan Gubar: As Loucas no Sótão. Ao longo de mais de 700 páginas, as autoras demonstram como a representação das mulheres na literatura (mesmo na escrita por elas próprias) oscila entre os seráficos anjos do lar e as demoníacas ensandecidas, perdidas para si mesmas e para os seus semelhantes. Como exemplos, as autoras davam as próprias irmãs Brontë, Jane Austen, Christina Rossetti, Emily Dickinson , Mary Shelley e a já referida Elizabeth Barrett Browning. A consciência desta amarga realidade teria levado muitas autoras, tanto na prosa quanto na poesia lírica, tanto em contos góticos como em novelas neogóticas, a desenvolver a metáfora da "louca da casa". Quantas vezes as mulheres no sótão não eram, afinal, elas próprias, tão pouco coadunáveis com o que figurino social lhes exigia?.Para a investigadora brasileira Norma Telles, "a metáfora implica que a arte das mulheres contém um traço escondido e persistente, de incontrolável loucura, decorrente da ansiedade, da desobediência às regras sociais definidoras da mulher e dúvidas da possibilidade de ser criadora. Ao livrar-se do modelo de como deveria ser, ao tomar da pena e escrever, a mulher consciente ou inconscientemente rejeitava valores sociais. Por isso, mesmo não criticando abertamente a sociedade, e em geral no século XIX não o faziam, as escritoras contestavam os padrões da sociedade que gerara o paradigma. As escritoras criaram, sem cessar, personagens, as mais das vezes secundárias, que encenaram a sua ansiedade e raiva reprimidas e encobertas. Elas projetaram os impulsos subversivos que sentiam e a energia do seu desespero em personagens grotescas, deformadas, paralíticas, apaixonantes ou melodramáticas"..Lentamente, muito lentamente, o século XX foi alterando este estado de coisas. Mas Karen Blixen começou por assinar como Isak Dinesen. E Virginia Woolf, combatendo um exército de demónios interiores, bateu-se arduamente pela cidadania mental da mulher escritora. Antes de esperarmos grandes feitos artísticos e literários das mulheres, dizia, havia que consolidar a sua autonomia cívica e económica. E atribuir-lhes, sem outras intenções, os meios de que todo o espírito necessita para frutificar. Não um canto na mesa de cozinha ou uma cadeira na sala de estar, mas todo um quarto que seja seu.
"Sonhei, na noite passada, que voltara a Mandarlay", escreve Daphne du Maurier na abertura do seu mais famoso romance, Rebeca, adaptado ao cinema por Alfred Hitchcock. Mas o sonho é, na verdade, um pesadelo, feito de quartos fechados à chave, segredos vergonhosos, gritos que atravessam a noite como um vento de morte. O tema da mulher de comportamento desviante, escondida (ou mesmo aniquilada) pela família, como nódoa em toalha de linho, é recorrente na literatura ocidental dos séculos XIX e XX. Mas não se tratava apenas de uma fantasia literária. O horror aos socialmente inconvenientes "nervos" das mulheres transformaram Rosemary Kennedy num "vegetal", depois da lobotomia decidida pelo pai, o todo-poderoso patriarca do clã Kennedy, levaram ao internamento compulsivo da atriz Frances Farmer por ordem da mãe ou de Maria Adelaide Coelho da Cunha pelo marido. E tantas como elas, jovens ou não, ricas ou pobres, realmente enfermas ou apenas desobedientes, cujas histórias ficaram por contar..O tema foi literariamente consagrado por Charlotte Brontë no clássico A Paixão de Jane Eyre, publicado em 1847 sob o pseudónimo masculino de Currer Bell. A protagonista, que dá título à obra, é uma jovem órfã, sem recursos mas escolarizada, que é colocada como precetora de uma menina num palacete sombrio e isolado, onde o proprietário, Mr. Rochester, é pouco mais do que uma presença fantasmagórica. Sensível, Jane não tardará a compreender que algo, ou alguém, muito estranho se oculta no sótão da casa. Mas o silêncio aterrorizado dos criados vai impedindo que ela conheça uma verdade que só lhe será revelada em trágicas circunstâncias. O segredo tinha um nome e um corpo: era a própria mulher de Mr. Rochester, que ele conhecera durante uma viagem à Jamaica e que alegadamente teria enlouquecido já em Inglaterra..A autora não hesita um instante na justeza de tal diagnóstico. A seus olhos, a mulher já perdera qualquer vestígio de humanidade e a compaixão vai toda para o sofrido marido, mesmo quando este tenta casar-se com uma segunda pessoa, com a mulher ainda viva e encerrada na casa de família. A voz que "ouvimos" é sempre a dele: "Fiquei feliz de a ver finalmente instalada em Thornfield, em segurança, naquele quarto do terceiro andar que ela transforma há dez anos no antro de um animal selvagem, num abrigo demoníaco. Tive dificuldade em lhe arranjar guarda, tinha de escolher uma que fosse de fidelidade a toda a prova, porque o meu segredo ia ser inevitavelmente traído pelas suas divagações; para mais tinha períodos de lucidez durante uns dias, por vezes de semanas, em que passava o tempo a injuriar-me." Finalmente, encontrou Grace Poole, mas, ainda assim, todo o cuidado era pouco pois, acrescenta, "a louca é matreira". Penalizada, Jane Eyre apaixona-se pelo patrão a quem tal desdita transformara "num fogo-fátuo, num vagabundo, num judeu errante". E casa-se com ele, depois de um incêndio ter destruído o último andar da mansão e a sua habitante. Nesses últimos momentos, Brontë acentua ainda o carácter animalesco da criatura: "Gritaram-lhe que ela estava no telhado, onde se mantinha de pé, agitando os braços por cima das ameias, e uivando de tal maneira que se ouvia a uma milha de distância (...). Era uma mulher enorme, com longos cabelos negros que flutuavam por cima das chamas.".E se esta não fosse toda a verdade sobre um drama que marcou profundamente o cânone literário e o imaginário de milhões? E se Mr Rochester (como Max de Winter em Rebeca) não fosse apenas uma vítima das circunstâncias? Esse é o tema de Vasto Mar de Sargaços, escrito por Jean Rhys (1890-1976), autora natural das Caraíbas, como a própria Mrs. Rochester. Construído como uma prequela de A Paixão de Jane Eyre, recuará ao tempo em que o futuro casal se conhece, se relaciona e decide casar-se. Ela encantá-lo-á com a sua sensualidade de mulher de trópicos (que começa por o seduzir e mais tarde por o horrorizar) mas também pelo vasto património de que é herdeira. Ele conquistá-la-á com os seus modos de cavalheiro inglês. Já casados e em viagem para Inglaterra, compreenderão que ambos estavam, afinal, iludidos nestas expectativas e o que deveria ser um laço transforma-se numa grilheta. A constatação de que o marido procura apropriar-se dos seus bens mergulhá-la-á mesmo num desespero sem retorno. Mas Jean Rhys não se limitará a imaginar o que aconteceu antes do encerramento compulsivo no sótão - dará voz à mulher assim condenada: "Pensei que fosse por um dia, dois dias, talvez uma semana. Pensei isso quando o vi e lhe falei que seria sábia como uma serpente, inofensiva como uma pomba. Dou-te tudo o que tenho livremente, teria eu dito, e não te incomodarei mais se me deixares ir embora. Mas ele nunca veio." Quem chegou foi Grace Poole, a guardiã com demasiado apego ao álcool e uma existência infernal: "Acordo cedo neste quarto e fico deitada a tiritar porque ele é muito frio. Por fim, Grace Poole, a mulher que toma conta de mim, acende uma lareira com papel, gravetos e pedaços de carvão. Ela ajoelha-se para soprar o fogo com os foles. O papel encarquilha-se, os gravetos estalam e faíscam, o carvão arde e brilha sem chama. Por fim, as chamas saltam e são belíssimas. Saio da cama e aproximo-me para as observar e tentar adivinhar por que razão me trouxeram para cá. Porquê? Tem de haver uma razão. O que é que eu preciso de fazer?".O desvio à norma na escrita.Charlotte Brontë, como vimos, publicou sob pseudónimo masculino, como, aliás, as suas próprias irmãs, Anne e Emily. O mesmo fizeram Mary Ann Evans e a francesa Amandine Dupin, conhecidas respetivamente por George Eliot e George Sand. A poetisa britânica Elizabeth Barrett Browning, mantida em clausura doméstica até aos 40 anos por um pai abusivo, dedicou apaixonados poemas ao marido, mas, temendo as reações dos seus contemporâneos, fê-los passar por poemas traduzidos do português, já que, na forma e no conteúdo, lhes encontrava semelhanças com os sonetos de Camões. Uma mulher que escrevia era à partida suspeita e exposta ao julgamento da família e da sociedade. Não era confiável. Não daria uma boa esposa e mãe. Não seria sequer uma solteirona respeitável..Esta realidade foi profundamente analisada por um clássico dos Estudos de Género publicado em 1979 por Sandra Gilbert e Susan Gubar: As Loucas no Sótão. Ao longo de mais de 700 páginas, as autoras demonstram como a representação das mulheres na literatura (mesmo na escrita por elas próprias) oscila entre os seráficos anjos do lar e as demoníacas ensandecidas, perdidas para si mesmas e para os seus semelhantes. Como exemplos, as autoras davam as próprias irmãs Brontë, Jane Austen, Christina Rossetti, Emily Dickinson , Mary Shelley e a já referida Elizabeth Barrett Browning. A consciência desta amarga realidade teria levado muitas autoras, tanto na prosa quanto na poesia lírica, tanto em contos góticos como em novelas neogóticas, a desenvolver a metáfora da "louca da casa". Quantas vezes as mulheres no sótão não eram, afinal, elas próprias, tão pouco coadunáveis com o que figurino social lhes exigia?.Para a investigadora brasileira Norma Telles, "a metáfora implica que a arte das mulheres contém um traço escondido e persistente, de incontrolável loucura, decorrente da ansiedade, da desobediência às regras sociais definidoras da mulher e dúvidas da possibilidade de ser criadora. Ao livrar-se do modelo de como deveria ser, ao tomar da pena e escrever, a mulher consciente ou inconscientemente rejeitava valores sociais. Por isso, mesmo não criticando abertamente a sociedade, e em geral no século XIX não o faziam, as escritoras contestavam os padrões da sociedade que gerara o paradigma. As escritoras criaram, sem cessar, personagens, as mais das vezes secundárias, que encenaram a sua ansiedade e raiva reprimidas e encobertas. Elas projetaram os impulsos subversivos que sentiam e a energia do seu desespero em personagens grotescas, deformadas, paralíticas, apaixonantes ou melodramáticas"..Lentamente, muito lentamente, o século XX foi alterando este estado de coisas. Mas Karen Blixen começou por assinar como Isak Dinesen. E Virginia Woolf, combatendo um exército de demónios interiores, bateu-se arduamente pela cidadania mental da mulher escritora. Antes de esperarmos grandes feitos artísticos e literários das mulheres, dizia, havia que consolidar a sua autonomia cívica e económica. E atribuir-lhes, sem outras intenções, os meios de que todo o espírito necessita para frutificar. Não um canto na mesa de cozinha ou uma cadeira na sala de estar, mas todo um quarto que seja seu.