Numa segunda edição publicada no próprio dia 25 de agosto, o DN destacava: "Um vulcão de labaredas arrasou o Chiado". Logo a abrir o texto, uma afirmação do então Presidente da República, Mário Soares, sublinhava um sentimento geral: "Isto é uma catástrofe!".Estava-se longe de imaginar o que seria a longa recuperação do Chiado. Recuperamos e atualizamos parte de uma reportagem de 2013, quando dos 25 anos do incêndio, que contava com os protagonistas de 1988 para recuperar o filme dos acontecimentos desse dia..05.19.A bobina não engana - foi às 05.19, nem antes nem depois, que soou o telefone no quartel do Regimento de Sapadores Bombeiros com o primeiro alerta para o incêndio no Chiado, nos Armazéns Grandella. Mas é difícil estimar a que horas terá começado, por ser uma zona então pouco habitada e com muitos testemunhos contraditórios à época. Os jornais do dia dão conta dos relatos de quem, às 03.30, já dava conta de fumo e "umas explosões esquisitas". "A combustão terá sido lenta, esteve ali a moer, com fumo mas sem chama", dizia ao DN o chefe principal Alcino Marques, dos Sapadores..Já sobre a hora do alerta, tem a certeza: "Houve vários testemunhos a dizer que tinham telefonado mais cedo, mas para aqui não foi." Aqui era o quartel da 1.ª Companhia, na Av. D. Carlos I, onde o então chefe de 2.ª classe fazia serviço. Estava em casa quando, às 05.30, lhe ligaram da central telefónica a alertá-lo. "Vou entrar hoje de férias", justificou-se, perante o telefonema. Mas era um "incêndio fora do normal", responderam-lhe. Saiu de Chelas, onde morava, para ficar a coordenar os meios que vinham de fora..05.27.Na TSF, a madrugada já ia agitada. Às 05.27, Sena Santos entra na antena com duas frases simples: "Fogo na Baixa de Lisboa. Em direto, o repórter Nuno Roby." "Mesmo assustador, as chamas saem dos Armazéns Grandella, sobem a Rua do Carmo, atravessam mesmo esta rua. Os telhados são bocas-de-fogo. Os bombeiros já cá estão, mas acho que vão ser precisos bastantes mais, isto vai ser um verdadeiro braseiro", antecipava o jornalista que, da janela da sua casa, na Calçada de Santana, estava como que num balcão sobre a Baixa - e o Chiado em chamas. "Era um balcão privilegiado de observação", recordou ao DN Nuno Roby Amorim. Tinha 25 anos na altura do incêndio e era jornalista profissional há um ano.."Ouvi um barulho estranho, estava acordado e liguei para a rádio. Estive em direto das 04.00 às 08.00, pelo menos", lembra. Ao telefone, Nuno Roby foi contando para a rádio o que via, na estação aproveitou-se para se lançar uma cobertura que valeria um prémio - horas de emissão, jornalistas na rua. "A cobertura do Chiado projetou a TSF", resume. A estação de rádio, que tinha nascido meses antes, fazia aquilo que a RTP, em tempos de televisão única, só arriscaria a sério também nesse dia com diretos. Há um redator de um jornal que, ao chegar ao local, comentou que "já tinha visto aquelas imagens na TSF", recorda Nuno Roby. Eram tempos em que os jornalistas se socorriam das cabinas de telefones de moedas ou pediam para usar os aparelhos em lojas e cafés para transmitirem as notícias..06.00.Ilda Cardoso da Silva morava ali perto, na Rua Oliveira ao Carmo. Um vizinho acordou-a aos gritos, de que ardia o Quiosque do Carmo, propriedade do marido. O fogo chegaria ali perto, nas traseiras da Escola Veiga Beirão, mas a polícia já só deixaria o marido ("Que Deus o tenha") tirar o tabaco e a máquina do totoloto. A mãe estava na terra e, manhã cedo, veio estrada fora buscar o pão. Soube pelo padeiro. "O Chiado anda todo a arder", disse-lhe o homem..Em Arouca a notícia saía certinha, noutras paragens havia quem exclamasse que era Lisboa que ardia. "Só ao fim do dia consegui falar para a terra", recorda Ilda. Para acalmar os seus. Mas não se acalmava ela. "Fomos dormir a Marvila, a casa da minha mãe." Durante anos tremia quando falava do dia. E também por isso recusou-se a passar no passadiço que foi instalado entre a Rua do Carmo e a Garrett, para permitir a ligação direta entre as duas ruas. "Nunca consegui lá passar", diz ao DN. Ouvindo a história de vida percebe-se melhor a emoção que o dia lhe provoca. A 1 de agosto fez 56 anos que veio para o Chiado, vender café ao peso, ali na entrada da Brasileira, do lado oposto à tabacaria onde hoje vende jornais e revistas. "A Amália dava-me dez escudos de gorjeta", diz com um brilho nos olhos..06.45.Eduardo Ruiz, que aos 48 anos é chefe da PSP na esquadra de Santa Marta, chegou à do Rossio pelas 06.45. "Já havia labaredas complicadas, já apanhavam o prédio da frente", diz, enquanto se desculpa pela memória que o atraiçoa. Mas descreve com minúcia o dia, que começou, no final da Rua do Carmo, a interditar o acesso das pessoas que ali passavam naquela quinta-feira e a facilitar a entrada e a saída de bombeiros. "Os agentes que estavam de serviço da noite já não saíram", os que entraram não tiveram horas de saída. Ao longo da manhã, "o perímetro foi aumentando porque o fogo foi alastrando" e a meia dúzia de elementos da PSP foi crescendo para garantir um anel de segurança em torno do fogo..07.00.Para quem hoje sobe a Rua Garrett, a Casa Pereira é a primeira loja que sobreviveu a 1988 - ao incêndio e à crise. Já no segundo quarteirão, cruzada a Calçada do Sacramento, onde o fogo se extinguiu, entra-se na loja de cafés e chás, onde se anunciam "bolachas e chocolates". Junte-se a garrafeira, introduzida há coisa de 25 anos, e temos o retrato desta casa de "mercearias finas", que ficava logo a seguir à Casa José Alexandre, que fechou portas naquele dia e não mais voltaria ao Chiado. É nesta fronteira entre o Chiado de hoje e aquele que existia a 24 de agosto de 1988, que José Lemos, há 35 aqui, conta como ao chegar ao Rossio já não pôde passar. Por trás de balcões de madeira e vitrinas que expõem os produtos, o seu pai - que trabalha ali desde 1945 e é hoje sócio gerente - vai anuindo ao relato. Estava em casa, eram 07.00 quando soube. "Andei pelo Largo do Carmo a pé", e como ele muitos lisboetas, mirones a ver o fogo a atiçar-se ao bairro que tinha sido chique. Conta que, no dia seguinte, a porta da casa estava aberta de novo - mas sentiram na pele o tempo longo da recuperação, os anos penosos da ruína a céu aberto. Mais tarde, o passadiço na Rua do Carmo veio ajudar a zona a retomar a vida. Mas nunca mais seria o mesmo. O choque entre épocas é resumido por José Lemos. "Há de tudo, hoje em dia, em quase todo o lado, antes o Chiado é que tinha tudo.".07.30.António Cardoso tem mais de 50 anos de Chiado. Por isso, também fala com propriedade daquelas ruas que são suas. "Não sou saudosista, a Baixa era uma zona chique, não havia esta caldeirada que há hoje. Que é mais democrática, aparece de tudo", diz entre trinadas de guitarras. É pelas suas mãos que o Chiado ouve fado, instalado no carro ícone da zona, ou não fosse fotografado por quase todos os turistas que passam. São esses estrangeiros que alimentam o negócio, assegura..Em 1988 trabalhava na Discoteca do Carmo, um dos estabelecimentos que resistiram ao incêndio mas não aos escombros que se arrastaram em tapumes durante anos. Na voragem das chamas, a música calou-se. A Custódio Cardoso Pereira, uma loja de instrumentos, a Valentim de Carvalho e o seu arquivo sonoro, ou a Discoteca Melodia foram locais que se perderam para sempre na manhã do fogo. A Amália da gorjeta generosa para a menina da Brasileira ecoa nas colunas do carro da Fundação Manuel dos Santos. "Silêncio, cantam guitarras", lê-se no carro. António Cardoso naquela manhã só ouvia sirenes, eram 07.30 quando acordou no bairro da Bica, ali perto. "Mas não liguei muito", só quando saiu e viu "fuligem" e um "intenso cheiro a fumo" é que percebeu que era perto e grande o incêndio. Foi travado na Brasileira. "Dei a volta pela Rua Augusta, onde encontrei o meu patrão" e dali foram tentando saber como estaria a loja de discos, que ficaria semanas sem abrir..08.00.Alcino Marques esteve no Rossio, "na zona de receção de reforços" de bombeiros, até ficar sem comunicações. "Eram 08.00, 08.30, quando fiquei sem comunicações e aquele posto já não fazia sentido. Fui comandar a frente de fogo, nos cruzamentos da Rua Nova do Almada, Escadinhas de São Francisco e Rua Ivens." Foi ali montado na cobertura de um edifício um dispositivo. "Houve uma ordem direta do Presidente da República, o Dr. Mário Soares, para conter o fogo, porque havia ali um edifício do Ministério das Finanças que era preciso salvaguardar", recorda..11.00."Às 11.00 dei o fogo como circunscrito, havia uns 150 veículos de combate", calhou a Alcino Marques dar a notícia para o comando. O incêndio já não atingiria mais edifícios, mas deixava atrás de si 18 edifícios ardidos, dezenas de feridos e dois mortos: um bombeiro e um morador, que só 58 dias depois foi retirado dos escombros. E ajudava a mudar o combate aos incêndios, na prevenção de edifícios e na proteção de segurança dos bombeiros. "Foi a partir daí que se mudou a legislação de segurança para centros urbanos antigos, lojas, parques de estacionamento", afirma o bombeiro.."Hoje em dia é impensável não usar casaco, calças, luvas, aparelho respiratório, mas eu tinha 12 anos de casa - entrei em 1976 - e não se sabia o que era um casaco de fogo." No quartel dos Sapadores, hoje, as botas estão prontas a calçar ao lado das viaturas, os fatos alinhados com os capacetes, com o nome do bombeiro e o seu grupo sanguíneo. À entrada do antigo convento, uma placa homenageia os "mortos em serviço". De um total de 16 mortos, o primeiro dos quais a 13 de agosto de 1865, Joaquim Catana Ramos, subchefe, é o último. Morreu no "incêndio do Chiado em 25-08-1988"..16.00."Às quatro da tarde o incêndio foi dado como extinto", lembra o chefe Alcino. O rescaldo demorou 58 dias, depois os bombeiros acompanharam várias operações de remoção de escombros e os projetos de recuperação do Chiado. Tinham uma ordem. Fazer um levantamento da Baixa pombalina, onde havia situações muito complicadas: ligações internas entre edifícios diferentes, um restaurante cujo acesso à cozinha se fazia por um alçapão, águas-furtadas habitadas em prédios comerciais ou vazias. Era assim o Chiado e a Baixa daqueles anos. Praticamente um barril de pólvora..É cliché gasto, esse de renascer a partir do fogo, mas o incêndio há 31 anos significou de facto - mesmo com a tragédia da destruição, a perda de dois mil empregos, a ruína prolongada - o renascimento do Chiado. Dispensem-se adjetivos ingleses e modernaços e veja-se a cidade intercultural que ali vive, se exprime e se passeia. É a maior herança do incêndio. E o bem maior desse renascimento.