Rápidas e letais. As epidemias que deixaram marca na história

Rápidas e frequentemente letais, as grandes epidemias são um desafio para a medicina. Alimentam-se da insalubridade, das carências alimentares e da mobilidade da espécie humana.
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Famílias demasiado aterrorizadas para sequer pensarem em luto. Cidades inteiras paralisadas de medo. Assim descreve o escritor e jornalista brasileiro Nelson Rodrigues nas suas Memórias - A Menina sem Estrela o ambiente no Rio de Janeiro durante o pico da epidemia conhecida por pneumónica ou gripe espanhola (ver texto página 24).

"Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe (...)."

Estávamos em 1918, nos últimos meses da maior guerra que a humanidade conhecera até aí. Talvez não a mais longa, mas, sem dúvida, a mais generalizada e com a maior capacidade de destruição de militares e civis. A 4 de março desse ano, num campo de treino de soldados no Kansas, um soldado adoece e o médico que o assiste identifica uma nova estirpe de gripe, extremamente resistente. Esse parece ter sido o primeiro caso diagnosticado, mas, em poucos meses, a doença, de origem desconhecida, tornar-se-ia a epidemia mais letal da história, dando várias vezes a volta ao mundo, deixando um rasto de morte tanto nas grandes metrópoles como nas mais recônditas ilhas do Pacífico. Muito mais mortífera do que os quatro anos de guerra, a epidemia pode ter dizimado perto de 5% da população mundial.

Em Portugal, tudo começou em clima de graçola. Chamava-se "espanhola" à gripe? A revista Ilustração Portuguesa brincava, a 1 de Julho de 1918, na rubrica O Século Cómico: "Começa uma pessoa por exagerar o que diz, em segunda é atacado por um grande amor às castanholas e às pandeiretas, depois sente-se neutral, tem dor de cabeça, pigarro, vai para a cama, febre alta a cantar malaguenhas e peteneras - e dali a dias levanta-se fraquíssima, mas liberta da influência de Castela." Este tom jocoso perder-se-ia nas semanas seguintes, à medida que a doença varria o país, encontrando na fome e na escassa salubridade das habitações fortes aliados.

No nosso país, estima-se hoje, a pneumónica terá matado em meses cerca de 60 mil pessoas, entre as quais os pintores Amadeo de Souza-Cardoso e Guilherme de Santa-Rita, o pianista António Fragoso e dois dos protagonistas das aparições de Fátima, os pastorinhos Jacinta e Francisco Marto. A taxa de maior incidência recaía sobre os adultos jovens (entre os 20 e 30 anos sobretudo), considerando hoje muitos epidemiologistas que a população mais velha pode ter adquirido defesas durante outro grande surto de gripe (conhecido por gripe russa) de alguma dimensão, ocorrido em 1890 e 1891.

Em Portugal como na generalidade dos países envolvidos na Grande Guerra, a censura prévia imposta à imprensa tentava evitar o alarmismo e só esporadicamente surgiam notícias que indiciassem a dimensão trágica do acontecimento.

Na Europa ocidental só na neutral Espanha a imprensa falava sem restrições sobre a evolução da doença, incluindo as notícias da convalescença do rei Afonso XIII, que, em maio de 1918, foi infetado. Dessa liberdade de noticiar nasceria, na opinião pública mundial, a perceção errada de que a pneumónica tinha origem espanhola.

Lá vai água...

Pela sua capacidade de destruição, a pneumónica foi rapidamente comparada à peste negra, que, no século XIV, atingiu a Europa com extrema violência. Vinda de leste (propagada talvez pelos invasores mongóis, talvez pelos comerciantes que trilhavam a Rota da Seda), o certo é que atacou com particular intensidade os pontos do continente onde o comércio internacional era mais animado, nomeadamente a Flandres e as cidades portuárias de Itália. Na Península Ibérica, a Catalunha, a Andaluzia e a cidade de Lisboa foram, talvez pela mesma razão, os pontos mais afetados.

Propagada inicialmente pela pulga do rato (o que tornou os gatos muito populares durante os principais surtos), a epidemia, nas formas bubónica e pulmonar, espalhou-se com uma velocidade surpreendente para a Idade Média e matou um terço da população europeia entre 1346 e 1353. Em consequência, a expansão urbana do século anterior sofreu um forte retrocesso, as principais rotas comerciais foram desativadas e o medo das populações semeou a violência mais irracional. Em várias regiões, como a Alemanha ou a Catalunha, cresceu o boato de que tinham sido os judeus a envenenar os poços de água, o que "justificou" expedições punitivas às judiarias e assassínios em massa.

A Igreja, por sua vez, exortava os fiéis à penitência, o que provocou o crescimento da Ordem dos Flagelantes. Favorecida pelas fomes sazonais, pelas guerras e pela insalubridade reinante, a peste foi-se tornando visita frequente das populações urbanas. No último quartel do século XIV, o rei D. Fernando viu-se forçado a tomar medidas excecionais para repovoar Silves. No Mosteiro de Lorvão, Penacova, a abadessa queixava-se de que, em poucos meses, morreram "a maior parte das donas" que ali viviam. E, em 1384, para algum alívio dos que resistiam, a peste dizimou boa parte do exército castelhano que cercava Lisboa.

Preocupado com os efeitos devastadores da peste, o rei D. Duarte fala sobre as formas de a evitar no seu livro, O Leal Conselheiro. Totalmente "democrática" no contágio, a doença entrara no Paço, vitimara sua mãe, D. Filipa de Lencastre, e matá-lo-ia também a ele, aos 46 anos.

"Lá vai água... suja" era o anúncio mais ouvido, manhã após manhã, nas vilas e cidades de toda a Europa. Das janelas das casas mais humildes como das mansões senhoriais despejavam-se "vasos de noite" diretamente para a via pública, produzindo um odor que os nossos narizes, alterados como mutantes pelo saneamento moderno, nem sequer conseguem "imaginar". Nestas condições de insalubridade, apesar dos progressos da medicina, as "visitas" das epidemias foram, até ao século XIX, tão regulares como as dos cobradores de impostos. Às pestes ou pestilências (o que designava genericamente um largo espetro de doenças) somavam-se outras, não menos desastrosas, como a lepra, a varíola, a febre tifoide e a cólera. No Portugal oitocentista, em menos de 25 anos, e em dois surtos, a cólera causaria dezenas de milhares de mortos: cerca de 40 mil em 1833, um terço dos quais na capital, e aproximadamente nove mil em 1855-56.

Em 1857, Lisboa seria igualmente afetada por um surto de febre-amarela, que terá contagiado entre 16 e 17 mil pessoas (perto de 10% do total da sua população). Quatro anos depois, o tifo entraria bruscamente no Palácio das Necessidades, matando, aos 24 anos, o rei D. Pedro V e dois dos seus irmãos, os infantes D. João e D. Fernando. Embora esta e outras epidemias tendessem a perder a sua perigosidade no final do século XIX, a mudança seria lenta. Ainda em 1923, Ricardo Jorge, médico e durante largos anos (incluindo os da pneumónica) diretor da Inspeção-Geral de Saúde, considerava Lisboa "uma das cidades mais infectamente tíficas da Europa".

Trocas malsãs

Se as movimentações globais de tropas exigidas pela Grande Guerra são consideradas um fator de peso na rapidez com que a pneumónica correu o mundo, não era, na verdade, a primeira vez que grandes deslocações militares transportavam consigo vírus de enorme perigosidade. Na Idade Média, a irresistível ofensiva mongol desencadeada pelo mítico Genghis Khan (e continuada pelos seus sucessores) só seria travada pelo Danúbio gelado, na Hungria. Nas mochilas, os homens que tinham conquistado boa parte da Euroásia traziam o fascínio da melhor seda, várias inovações tecnológicas mas também a peste bubónica (que, desde o princípio do século XIV, matara cerca de 35% da população chinesa) e o gado que os acompanhava parece ter contagiado os rebanhos europeus com uma nova estirpe de peste bovina.

Mas a Europa não foi apenas o destino de ameaças externas. Também os europeus levaram o caos e novas doenças a outras paragens. Quando o conquistador espanhol Fernando Cortez chegou a território hoje mexicano em 1519, calcula-se que vivessem na América Central entre 15 e 30 milhões de índios. No final do século XVI, mal restavam dois milhões. Embora a brutalidade dos combates entre espanhóis e ameríndios (ao contrário dos primeiros, sem armas de fogo) tenha causado muita destruição, foram sobretudo as epidemias que causaram maiores estragos: nada no sistema imunitário dos ameríndios os preparara para doenças como a varíola, o sarampo, a papeira, a febre-amarela, a tosse convulsa ou a gripe.

A destruição foi imensa nas regiões mais povoadas do antigo Império Maia, mas também nas ilhas das Caraíbas, muitas das quais ficaram praticamente desertas depois da passagem dessas "novas" doenças. O desalento entre os naturais era total. À impiedade geral somava-se o descaso na doença. Horrorizado, frei Pedro de Córdoba indigna-se com os seus compatriotas e escreve longas cartas para Espanha, endereçadas ao imperador Carlos V e à sua mulher, Isabel de Portugal: "Não querendo entristecer Vossas Altezas, digo-lhes que não sei de nação nenhuma, nem ainda de infiéis, que tenha feito tantos males e crueldades como sofre, de cristãos, esta pobre gente."

A principal causa de morte neste período pode não ter sido estas doenças perfeitamente identificadas no Velho Continente. De acordo com estudos feitos em necrópoles quinhentistas no México, na origem da maior devastação parece estar um tipo de salmonela. Embora não se saiba se esta já existia na América pré-colombiana, a verdade é que já existia na Europa muito antes de Cristóvão Colombo se ter feito ao mar, o que sugere uma possível origem europeia também deste mal.

Estas trocas malsãs não se fariam, todavia, só num sentido. Nos seus navios, os homens de Cortez e Pizarro trouxeram ouro e prata como a Espanha nunca vira. Mas, com eles, vinha também um desagradável passageiro clandestino: a estirpe mais agressiva de sífilis que a Europa conhecera.

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