O que é que fazem as Equipas Multidisciplinares Especializadas (EME)? O nosso trabalho, muitas vezes, é desconstruir o medo que as vítimas têm dos Órgãos de Polícia Criminal (OPC), o que pode estar associado às vivências dos países de origem, às ameaças dos exploradores. O objetivo é que se sintam com capacidade para colaborar com o processo judicial. E acompanhamos no acolhimento e proteção..Qual é o perfil das vítimas? Tenho dificuldade em fazer um perfil tanto da vítima, como do agressor. Todos podemos ser alvo de uma proposta fraudulenta, um logro. Fala-se muito da vulnerabilidade associada às vítimas de tráfico de seres humanos, mas esta vulnerabilidade é altamente subjetiva. Numa situação de desemprego, de maior fragilidade psicológica, posso não ver todos os indícios presentes numa oferta de emprego, de um relacionamento amoroso, de uma viagem. Pelas minhas mãos, passaram centenas de presumíveis vítimas, têm perfis, níveis socioeconómicos, vivências e experiências de vida muito distintas..Pode ser o nosso vizinho? O espírito é mesmo esse. É muito importante estarmos atentos, no supermercado, nos semáforos, ver se existem indícios de tráfico de seres humanos e, na dúvida, sinalizar..Quanto tempo estão nos centros? É outra pergunta difícil. Está previsto um ano de acompanhamento, mas pode ser prorrogado. Há vítimas que estão dias, semanas, meses, e há quem esteja anos em CAP (Centro de Acolhimento e Proteção). Os processos judiciais não terminaram ou a vítima não tem capacidade para uma autonomia total. O projeto de vida é muito diferente de uma vítima para outra. Há quem tenha saído há anos e continuamos a acompanhar, seja devido ao processo judicial, há ainda risco, uma alteração que voltou a trazer o stress pós-traumático..Fala-se em pagamentos de dívidas que os traficantes exigem. Estamos a falar de quanto? Há situações em que uma viagem que custa 500 euros pode significar uma dívida de dois mil, três mil, quatro mil euros, pode ir aumentando. Há situações que envolvem quantias enormes, 19 mil euros ou mais. Na exploração sexual é muito frequente a vítima ter um caderninho onde aponta tudo: gastos na viagem, alimentação, roupas, "atendi dez clientes, recebi X e paguei , continuo com esta dívida". A exploração laboral é exatamente igual. São registos importantes em matéria de prova criminal..Quem são os menores não-acompanhados que acolhem? Só em 2018 foi criado o Centro de Acolhimento para Crianças e Jovens desacompanhados, mas desde 2008 que os acolhíamos. No início, eram vítimas para fins de exploração sexual (entre os 12 e 16 anos), para a mendicidade forçada, crianças vendidas pelos próprios pais, casamentos precoces [Roménia]. Também grávidas cujos bebés eram para adoções ilegais, associadas a casamentos precoces e forçados. O fenómeno da servidão doméstica tem vindo a crescer, mas é muito invisível. Ultimamente, temos acolhido crianças e jovens para o futebol, para exploração laboral, para exploração sexual..Onde são detetados? A maioria no aeroporto, em trânsito, crianças desacompanhadas, com documentação fraudulenta ou com pessoas que não são seus familiares. A intenção não é ficarem em Portugal, mas chegarem a outros países, o que dificulta a perceção do fim a que se destinam. Acreditamos, também, que há intenção de aproveitamento dos subsídios sociais nos países de destino..A pandemia provocou alterações no funcionamento das redes? Percebemos que o tráfico para exploração sexual passou a estar mais camuflado, menos nas ruas, mais em apartamentos, pensões, bares de alterne, o que se mantém. O número deste tipo de tráfico é mais diminuto em Portugal do que em outros países, o que está a ser estudado ["melhorar os sistemas de pre- venção, assistência, proteção e re(integração) para vítimas de exploração sexual"]..Somos um país apetecível para as redes de tráfico operarem? Há um conjunto de orientações e regras para a concessão de Autorização de Residência e a forma como o sistema está organizado que tem facilitado às redes operarem em Portugal, seja para os migrantes ficarem ou para chegarem a outros países. Há vítimas que fazem o Pedido de Asilo completamente doutrinadas e que, depois, desaparecem, estão em trânsito..Defende alterações à lei? Sou a favor da abertura de fronteiras. É importante o controlo, a assistência, profissionais com competência e experiência, como é o caso do SEF. Os seus inspetores devem continuar a intervir nesta matéria porque faz toda a diferença. Sou a favor de mais recursos humanos, mais capacitação. Se conseguirmos mais punições, mais casos em julgamento, vamos limitar a atuação das redes criminosas..Por que é que há poucas confirmações do crime de tráfico, comparativamente com as sinalizações? Muitas destas vítimas têm dificuldade na colaboração. A vítima está instável, com medo, não acredita nas entidades, sejam as polícias ou as sociais. É preciso que se sinta segura para se darem testemunhos mais fidedignos, mais capazes e robustos em matéria de prova..Quais são as maiores dificuldades para quem presta acolhimento? Não haver mais vagas em CAP e profissionais capacitados: juristas sensibilizados. O tráfico de seres humanos ainda não faz parte dos currículos de muitas destas especialidades, seja da área social, da saúde, da jurisdição. É também uma grande dificuldade a forma como os tribunais estão organizados, muito distantes da população. Tem evoluído - videoconferências, audição para memória futura, proteção da vítima no tribunal - mas, em alguns casos, ainda se sente esta dificuldade. A forma como as vítimas são questionadas, a presença de algum preconceito, estereótipo, uma pergunta mal feita, com preconceito associado, pode fazer com que a vítima se sinta julgada e deixe de colaborar..Quem são os traficantes? O que conhecemos é pela voz das vítimas. Há redes muito organizadas, com ramificações em Portugal e noutros países e, depois, temos situações de exploradores mais independentes, clãs , grupos, até pessoas individuais e famílias que exploram outros..Pouco são efetivamente condenados por tráfico de pessoas. Tem havido mais condenações, mas ainda estamos muito aquém do que seria desejado. Há mais casos em investigação e processos para acusação, mas ainda há muitos que se iniciam no tráfico de seres humanos e que terminam na prática de crimes conexos, como auxílio à imigração ilegal, lenocínio. A matéria de prova de tráfico que se obtém é muito diminuta, o que faz muita diferença.